Por Chico Felitti para a Revista PODER de agosto
Há um mês, Ludhmila Abrahão Hajjar completou 40 anos. Mas ainda não conseguiu pensar se a nova idade veio acompanhada por uma crise. Estava ocupada demais trabalhando. “Eu só pensei: ‘Será que já vivi metade da minha vida?’ Mas isso durou 30 segundos.” Pudera. Às 6h45, a cardiologista já está no Incor, Instituto do Coração, em São Paulo, onde é diretora clínica, chefe da UTI cirúrgica e coordenadora da pós-graduação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), que administra o hospital. Por volta do meio-dia, corre para o hospital Sírio-Libanês, onde chefia a UTI. A depender do dia, ainda passa no Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp), onde comanda uma UTI de 84 leitos. Repete essa rotina sete dias por semana. “Eu não desligo nunca. Nunca”, diz, com o sotaque de Goiás (vem de uma família de fazendeiros de Anápolis) e frases rápidas salpicadas com a palavra “top”. Enquanto conversava com PODER em uma sala de descanso do Sírio-Libanês, na Bela Vista, por exemplo, não desgrudava do celular, por conta de um transplante cardíaco que estava em curso.
Ela segue nesse ritmo desde 2005, quando terminou a residência. Em 12 anos de carreira passou de plantonista a chefe de dezenas dos melhores médicos do Brasil. Ludhmila atribui o sucesso a uma santíssima trindade. “Trabalho, pessoas certas e Deus.” A ordem dos fatores não parece ser coincidência para essa católica que não tem tempo de ir à missa faz alguns anos. Segundo ela, a pessoa mais certa que calhou de aparecer em sua vida tem nome: Roberto Kalil Filho, médico que cuida dos corações mais poderosos do Brasil e um dos nomes mais influentes nos dois maiores centros cardíacos — é diretor da Divisão de Cardiologia Clínica do InCor e diretor geral do Centro de Cardiologia do Sírio-Libanês. “Ele me deu as oportunidades de trabalho mais importantes da minha carreira.”
DANDO O SANGUE
Mas, além de corresponder à confiança, Ludhmila teve de costurar suas próprias relações. Como no episódio que diz ter mudado sua vida, em 2007. Foi chamada na sala da chefia do Incor e ouviu que muitos médicos mais velhos se queixavam dela — não de seu trabalho, mas de sua postura contestadora. “Reclamavam porque eu era jovem, porque eu era mulher, porque eu não aceitava o que todos os outros médicos queriam.” Ela saiu de lá decidida a se tornar uma pesquisadora faixa-preta.
Sua tese de doutorado, nascida naquela noite e apresentada três anos depois, analisou o uso de transfusão de sangue durante cirurgias cardíacas, e conseguiu provar que utilizar, em média, 30% menos de sangue melhorava o prognóstico. A descoberta foi parar nas páginas do Journal of American Medical Association (Jama), uma das principais publicações científicas do mundo, e acabou mudando o protocolo de transfusão sanguínea em cirurgias cardíacas. “A partir desse momento, eu passei a, pelo menos, ser cumprimentada na porta da UTI”, diz, rindo. Ela também ri das lendas que se formaram ao redor dela na época da graduação, na Universidade de Brasília. “Falavam que eu varava noites estudando na biblioteca.” E era verdade? “Não era mentira”, ri.
Hoje não é só cumprimentada, como procurada por médicos do mundo inteiro. E tem poder político para mudar áreas da saúde, como a de implantes de corações artificiais no país, por exemplo. Conseguiu verbas para financiar cerca de 40 implantes desse tipo de mecanismo por ano no sistema público. E, quando não consegue, faz por onde para trazer os pacientes para a filantropia do hospital particular. “A gente sempre dá um jeito.”
Além das vitórias na medicina, Ludhmila comemora pequenas (grandes, na verdade, para alguém que tem uma agenda como a dela) conquistas pessoais. A mais recente foi conseguir levar a sobrinha para passear. “Eu não vou ter filho mesmo. Então, ela é minha paixãozinha.” Em um domingo, entre as visitas aos pacientes, conseguiu três horas livres para levar a menina a uma festa junina no parque Villa-Lobos (“Não sabia nem onde era!”).
Nunca tira férias. “Como dou muitas aulas em congressos internacionais, estico as viagens dois, três dias.” As roupas discretas com que anda rapidamente pelos corredores dos hospitais em que trabalha ainda são compradas pela mãe. Mas ela garante ter zero arrependimento por levar uma vida tão ativa— aqui vale o trocadilho — quanto a do músculo cardíaco. “Eu amo minha rotina. Não faria nada diferente. Só queria ter mais de 24 horas por dia para me dedicar mais à pesquisa”.
DO LADO ESQUERDO DO PEITO
A médica mineira Luciana da Fonseca é tão encantada com a cardiologia quanto a Dra Ludhmila. “Me apaixonei duas vezes durante cirurgias cardíacas”, diz ela que é a primeira mulher a comandar um transplante de coração no Brasil. Luciana passou a amar o ofício quando viu uma operação de peito aberto, ainda nos primeiros anos da faculdade. “É uma cirurgia muito bonita”, diz, enchendo a boca. A outra paixão à primeira vista aconteceu quando já era a única residente de cirurgia cardíaca no hospital Beneficência Portuguesa, em São Paulo, e avistou seu instrutor (e hoje marido), o cirurgião José Pedro da Silva. Luciana não só se destacou na equipe dele, como foi uma das pioneiras dessa área no mundo. Hoje, aos 48 anos, já orquestrou 25 transplantes e centenas de outras cirurgias cardíacas. “Aquele momento em que a pessoa está sem um coração no peito é especial. Nunca perdeu a magia para mim”, diz ela, que conhece o nome e a história de cada paciente de cor.
Mas sua experiência fora da sala de cirurgia talvez tenha sido um desafio ainda maior. Quando ela terminou a graduação e um professor perguntou em que gostaria de se especializar, Luciana respondeu calmamente: “Cirurgia cardíaca”. Alguns colegas disseram se tratar de uma área era muito difícil para mulheres, tanto pela dificuldade em ser contratada quanto pela discriminação em sala de aula. Hoje, os mesmos colegas a parabenizam no grupo de WhatsApp da turma toda vez que leem uma notícia sobre ela. A mais recente bombou nas revistas científicas internacionais. É que ela aprimorou uma técnica que permite operar crianças e bebês por uma incisão feita na axila sem precisar abri o peito. Tudo sem diminuir o ritmo de trabalho, e ainda servindo como uma espécie de embaixadora para incentivar mais mulheres a abraçar a área. Em 2010, por exemplo, deu uma aula no Congresso de Cirurgia Cardíaca na Alemanha para incentivar as residentes a enveredar pela cirurgia, escolha que abraçou quando ainda estava se graduando na Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas Gerais. Também fundou uma tradição: um almoço anual só de mulheres no Congresso Brasileiro de Cirurgia Cardíaca.
Mais recentemente, porém, a Dra Luciana decidiu respirar fundo e ouvir o que seu próprio coração lhe dizia. Faz um ano e meio que a médica passa mais tempo nos Estados Unidos do que no Brasil — para onde ainda vem com alguma frequência quando tem que operar um paciente. Doutora pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), migrou para a Universidade de Pittsburgh, onde o marido leciona.
Atualmente, está fazendo uma revisão geral para uma série de quatro provas necessárias para validar a licença médica nos EUA. “Tive que reaprender muita coisa, mas foi um processo muito interessante. Porque estou com uma visão mais global do que quando saí da faculdade de medicina”, diz a mineira, que preserva o sotaque mesmo 25 anos depois de ter saído de Juiz de Fora. A mudança de país não teve nada a ver com crise na carreira. “Talvez tenha sido a condição política e econômica do país que me fez optar por isso.” A insegurança foi outro fator, já que ela teve o vidro do carro quebrado duas vezes no trânsito de São Paulo. Desde que diminuiu o ritmo da vida profissional, passou a usar as mãos hipertreinadas para cozinhar e cuidar do jardim, além de ter mais tempo para acompanhar o crescimento do filho, João, de dez anos. Enquanto conversa com PODER por chamada de WhatsApp, pergunta para o garoto se ele sabe o que quer ser quando crescer. “Médico não”, responde o menino. Ela ri. “Não dá para ter tudo.”
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