Caso falassem, os cachorros certamente estariam controlando o mundo. Se apenas latindo já são mais donos de seus tutores do que o contrário, imagina se dominassem o verbo? Um típico dog lover que, basicamente, vive para mimar seu cão, em algum momento, inevitavelmente soltará uma certa frase bastante familiar entre os orgulhosos “pais” desses filhos de quatro patas. Ao testemunhar algum truque novo ou uma ‘arte’ perspicaz de seu pet, é quase automático para muitos proclamar: “só falta falar!”.
Mas um desses ‘serumaninhos’ que expressam tão bem o amor apenas com o olhar acaba de fazer história ao garantir seu direito de ser ‘ouvido’ nos tribunais. Personagem mais inusitado e bem-vindo do noticiário nacional dessa quarta-feira (04), Tokinho é um simpático cachorro que vive em Ponta Grossa, no Paraná, sob a tutoria de um movimento local pela defesa dos direitos dos animais e ambientais, o Fauna, fundado na cidade em 1999. E, ainda por cima, é protagonista de seu próprio case de superação.
Por volta de junho, Tokinho, de 4 anos, teria sido agredido a pauladas por um ex-tutor – consta que o suposto crime foi gravado em vídeo por câmeras de segurança. Depois de denunciado às autoridades, o suposto incidente chegou aos ouvidos de ativistas do Fauna, que eventualmente o resgataram. O acusado da agressão, um homem de 25 anos, é quem Tokinho levará ao banco dos réus, depois que uma denúncia judicial feita em seu nome pelo Fauna foi aceita pela juíza Poliana Maria Cremasco Fagundes Cunha Wojciechowski.
Ao fazê-lo, a magistrada oficializou a entidade como polo ativo do processo, agindo em representação de Tokinho. Essencialmente, isso fez dele o acusador cujo ‘pleito’ foi claramente entendido pela Justiça, que agora irá investigar sua denúncia. E o cão vai ‘pedir’ indenização: R$ 5.820,00 por danos morais resultantes de maus-tratos. O caso é inédito em Ponta Grossa e raro em outras jurisdições nacionais. Mas denota uma tendência, já que tanto o poder público quanto profissionais do Direito estão utilizando estratégias como essa para garantir os direitos subjetivos de animais de estimação.
Enquanto cães têm sido nossos leais companheiros por mais de 15 mil anos, estamos presenciando uma revolução silenciosa nos corredores dos tribunais e nas assembleias legislativas ao redor do mundo. O antigo paradigma que considerava animais de estimação simplesmente como bens está se desvanecendo. Em seu lugar, surge um novo entendimento, respaldado por descobertas científicas significativas.
Pesquisas contemporâneas têm lançado luz sobre o fascinante universo interior de muitos animais, revelando que seres como os cães não só percebem o mundo de maneira complexa, mas também vivenciaram emoções com nuances que antes acreditávamos ser exclusivas dos humanos.
A convivência milenar ao lado dos homens, em vez de apenas domesticá-los, parece ter ampliado sua capacidade de empatia e entendimento, formando um laço que transcende a simples relação de dependência. Intrigantemente, mesmo com essa proximidade e influência humana, eles parecem manter uma pureza de espírito, uma ausência de malícia, que frequentemente nos faz questionar: quem, de fato, é o ‘ser racional’ nessa coexistência?
Essa transformação teve início sutil. Ao longo dos anos, discussões sobre a guarda compartilhada de animais em divórcios litigiosos se popularizaram. Ao ponto de também gerarem batalhas jurídicas entre ex-casais pela guarda integral dos herdeiros peludos. Nossa crescente paixão por esses animais de carências bem parecidas com as nossas não é apenas emocional, mas também econômica. E o dinheiro gasto com seu bem-estar e para paparicá-los se tornou uma evidência palpável dessa conexão profunda.
De quebra, também influenciou a conquista do reconhecimento dos seus direitos de seres secientes. A Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação (ABINPET), representante do setor pet brasileiro, destaca o Brasil como o terceiro maior mercado pet do mundo, com R$ 34,4 bilhões movimentados em 2022. No cenário global, essa ‘pet industry’ é um colosso de US$ 125 bilhões (R$ 645 bilhões) anuais, conforme dados da World Pet Association (WPA). E dentro desse gigantesco mercado, um nicho tem se destacado: o ‘pet luxo’. O mercado de alto padrão para os pets, com produtos e serviços de alta classe, gerou US$ 15 bilhões (R$ 77,4 bilhões) no ano passado.
Essas cifras não são apenas números. Aqui, ambas representam a personificação de um ‘habeas corpus’ simbólico, e testemunho do quanto valorizamos nossos respectivos melhores amigos. Através de cada compra extravagante, concedêssemos a eles lugares de honra na nossa sociedade, que valoriza muito um lustre assim, ao contrário das deles. Em compasso com esse florescimento da indústria pet, marcos notáveis no campo das leis refletem a forma como os vemos. Um caso emblemático aconteceu em 2015, ano em que Sandra, uma orangotango nascida em um zoológico argentino, se tornou um símbolo internacional de direitos animais.
Na época, o sistema judiciário dos Hermanos concedeu a ela o reconhecimento inovador de ‘ser não humano’, categorização que, embora soe técnica, carrega um profundo significado. Maior até que um veredito, a decisão sinalizou uma crescente compreensão global da necessidade de reconhecer a seciência e os direitos inerentes dos animais.
E ainda muito antes de Sandra, o mundo já havia sido tocado pelo pioneirismo de Hachiko, um cão Akita dos anos 1920 que comoveu o Japão, e mudou de forma significativa o cenário dos direitos dos animais. Por quase dez anos, todos os dias e no mesmo horário, Hachiko surgia na estação de metrô Shibuya, homônima do bairro central de Tóquio, na esperança de avistar o dono, já falecido, saindo de um dos vagões. E cumpriu o ritual até seu próprio fim, ganhando o respeito e a admiração dos japoneses, que o homenagearam com uma estátua no local e lembram de sua história até hoje.
Uma ainda que simboliza esse laço milenar tão especial, e influenciou muito na discussão pública sobre o bem-estar animal no Japão. Isso resultou em debates sobre a matéria, que terminaram com a criação de leis mais rigorosas contra crueldade e a abertura de mais abrigos para animais. Seu legado permanece alerta na estátua da estação Shibuya, mas foi seu amor imortal pelo dono a herança que nos presenteou.
O Japão é um país onde o elo entre as pessoas e os animais está profundamente enraizado em sua cultura. O amor e o respeito pelos animais são visíveis em sua arte, literatura e até nas crenças religiosas locais. O tratamento dado aos animais por lá, sobretudo os de estimação, tem sido parte da identidade cultural japonesa por séculos. E isso diz muito sobre o sucesso social e financeiro do país que o mundo inteiro respeita.
A lealdade de Hachiko ecoa na construção da relação do homem com pets. Eles moldaram culturas e comportamentos, e desafiaram nossas noções de justiça e moral. E merecem o direito à coexistência harmônica com os donos. Da parte deles, sempre foram bem guiados – por Hachiko, por Sandra, por muitíssimos outros, e agora pelo serumaninho ponta-grossense da hora, Tokinho. Um ‘salvador da pátria’!
O pequeno cão que, alegadamente, foi vítima de uma chocante crueldade, vai, civilizadamente e como autor de uma peça jurídica, preservando assim um direito fundamental – até mesmo para aquele apontado como seu algoz – o princípio sagrado da presunção de inocência. Quase divino, e sobretudo quando sua invocação se torna profundamente desafiadora.
Na cadência daquele passo que manca, Tokinho emerge não apenas como um representante dos animais, mas como um mestre silencioso, ensinando empatia, respeito e coexistência aos humanos. Valores intrínsecos à nossa humanidade, e cuja importância e necessidade ele vem nos lembrar, abanando o rabo. Inocentemente pensando ser, ele, o sortudo que foi resgatado.
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