Todo dia eu acordo às seis horas da manhã: sou uma das tantas equilibristas do nosso tempo. Sou muitas, na verdade, mas vou me apresentar aqui como quatro. Natalia, Natalia, Natalia e Natalia. Tudo bem com vocês?
Antes, quando nós Natalias ainda não tínhamos nascido ― quando provavelmente vocês que me lêem tampouco tinham nascido, as mulheres éramos quase todas invisíveis e ficávamos da porta de casa para dentro. Hoje, somos superpoderosas, um jeito bonito de dizer que somos exploradas pelo mundo que passamos a dividir com os homens ― mas exploradas principalmente por nós mesmas. É assim que consigo ser psiquiatra, escritora, doutoranda, mãe. É assim que não me dou descanso. Que não tenho paz. É assim que administro meu caos: organizando-o em tarefas, em realizações, sem as quais eu talvez fosse tragada pelo meu próprio vazio. É assim que lido com minha grande insuficiência, dividindo-a em outras menores, a culpa por não me entregar inteira a nenhuma das minhas atividades como único denominador comum a cada uma delas. E no entanto, preciso de todas, todas me sustentam enquanto eu finjo que quem as sustenta sou eu.
A Natalia psiquiatra nos sustenta não só financeiramente: é a ela que dizem que é calma. De todas que sou, é quem mais sabe escutar, quem organiza a semana com os horários de atendimento e a vida com alguma estrutura de pensamento. A Natalia psiquiatra ocupa um espaço enorme (espaço que no decorrer da vida significa tempo), mas é quem menos se mostra. E não só: ela insiste para que as outras também fiquem quietas, escondidas, ela insiste em ser só um olhar e um ouvido e uma boca que fala sobre o outro mesmo quando fala sobre si mesma. Ela jamais assumiria que falar sobre o outro é sempre também falar sobre si: que cuidando do outro, está cuidando dela.
A Natalia escritora, ainda que também se alimente da psiquiatra, briga bastante com ela, principalmente para demandar o tempo de que a outra dispõe. Das quatro que apresento aqui, foi a primeira a nascer, me habitava na infância, seguiu em mim a vida toda, pedindo, pedindo, pedindo para ser. Costuma ser uma bela disputa: a psiquiatra não costuma se expor, enquanto a escritora está sempre falando de si, por texto, por voz, se mostrando ― nos mostrando. (A Natalia mãe pediu licença e foi avisar o filho mais velho pela terceira vez, já irritada, que passou da hora de tomar banho. (…) Pronto, voltamos). A Natalia sozinha, se olhando no espelho, talvez seja mais escritora que qualquer outra coisa, mas no dia em que seu filho mais novo se acidentou e precisou levar quatro pontos no nariz, ninguém nem lembrou que a escritora existia.
A Natalia doutoranda decidiu estudar literatura para encher os seus dias de livros. Talvez pelo dilema entre se mostrar e se esconder que as duas anteriores representam é que ela tenha ido se debruçar justamente sobre Karl Ove Knausgård e Elena Ferrante, o autor que se mostra e a autora que se esconde. Ela é a mais sonhadora: sonha com tardes inteiras no sofá, sonha com semanas de quatorze dias, sonha principalmente com o silêncio, questionando dia sim, dia sim, as escolhas da Natalia mãe.
A Natalia mãe é a que mais sente culpa. Deve haver alguma língua em que mãe e culpa têm a mesma raiz. Ela às vezes quase explode de amor pelos filhos (embora tantas outras exploda com eles), e se justifica pela ausência dizendo a si mesma que seus meninos precisam desse exemplo de mulher, a mulher que trabalha, que realiza seus sonhos, que é também outras coisas que não a mãe deles. E no entanto foi depois que eles nasceram, que o primeiro deles nasceu, que ela começou a fazer esse monte de coisa, como se a força para isso, o ímpeto, a coragem, tivesse vindo dali, de ser mãe. Talvez porque, no susto do primeiro filho, ela tenha feito uma descoberta importante. Ali naquele caos de leite e exaustão, sentindo que não teria mais tempo para nada, que o filho lhe exigiria todas as horas do dia, da vida, a Natalia mãe percebeu ― ou todas perceberam juntas ― que o tempo passa para todo mundo, mas os filhos escancaram sua passagem. Claro que filhos tomam, de fato, muito de nosso tempo; mas os filhos, entre dentes nascendo, graus de febre, centímetros ganhos, concretizam algo que se dá o tempo todo e que talvez, sem eles, fosse mais difícil de perceber. Talvez depois de ser mãe eu tenha começado a fazer tantas coisas porque ter filhos apurou meu senso de urgência: a vida passa, a vida é só uma, e é agora.
Enquanto se degladiam pelas escassas 24 horas do dia, as Natalias todas pensam sobre o tempo, sobre o nosso tempo. Sobre literatura, sobre ficção, sobre a internet, sobre como vivemos. Sobre privilégios, sobre desigualdades, sobre maternidade, sobre solidão. É sobre tudo isso que escreverei por aqui, com a contribuição de todas as Natalias que me habitam.
Natalia Timerman é psiquiatra, doutoranda em literatura pela USP e autora de livros como “Copo Vazio”, “Rachaduras” e “Desterros”. + @nataliatimerman
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