Chloé Calmon teve que mudar completamente sua rotina por conta da pandemia de Covid-19. Sem campeonatos até pouco tempo atrás (ela ficou em terceiro lugar no Circuito Mundial de Longboard feminino, na terça [12.10], em Malibu, Estados Unidos), a surfista de 26 anos saiu do mar para se dedicar a outras áreas em sua vida. Com isso, o mar, seu ambiente de trabalho, foi redescoberto com mais liberdade e menos pressão.
“Tem sido bem diferente, um grande momento de experiência e aprendizado. Estou conhecendo um lado da Chloé que era desconhecido. Tem sido muito bom para eu me dedicar em áreas da minha vida, que ficavam sempre em segundo plano já que meu foco principal eram as competições, o circuito mundial.”
Chloé Camon
A atleta começou a surfar aos 12 anos por incentivo do pai, o também surfista Miguel Calmon. No mesmo ano, começou a competir e, por não haver divisão em sua idade, sempre competiu na categoria Open, com atletas bem mais experientes. Ainda jovem, a esportista carioca passou a se consolidar no longboard aos 14 anos. Um ano depois, recebeu a vaga para participar do Campeonato Mundial de Longboard, na época em Biarritz, sudoeste da França, para representar o Brasil. Em conversa com o GLMRM, Chloé reflete sobre como o espírito do esporte mudou sua vida por completo e sua relação com o mundo.
“Até hoje, recebo alguns olhares tortos por estar pegando mais ondas que alguns homens na água, mas isso não é culpa minha (risos)”
Chloé Calmon
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Como estava sendo sido sua vida sem competições?
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Neste tempo off, aproveitei para redescobrir o prazer de surfar sem pressão do resultado, realmente só para me divertir. Com isso, entra a oportunidade de surfar com pranchas diferentes, de buscar um lado diferente do surf. Estou me divertindo muito. Também aproveitei para focar na faculdade, eu faço Administração à distância na Universidade Estácio de Sá, então tenho conseguido, pela primeira vez em muito tempo, criar uma rotina de estudo, o que para mim, foi muito bom. Aproveitei para estudar francês e até focar em outros projetos que sempre quis fazer, mas ficava para depois das competições, como o meu surf camp. Desta vez, vai ser voltado apenas para mulheres, estou muito feliz. No começo da pandemia, fiquei pensando o que eu ia fazer, o que ia ser da minha vida sem viajar e sem competir, mas hoje eu olho para trás e penso que foi super produtivo, consegui aflorar várias áreas.
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Foi assim em todo período de isolamento?
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Tiveram os momentos mais difíceis, eu cheguei a ficar três meses sem surfar. Acho que todo mundo passou por aquela fase de pensar o que vai ser da vida de cada um, aquela incerteza. Isso me trouxe muita ansiedade. Ano passado, eu estava com muito problema para dormir por conta disso. O esporte ensina muito isso, de você não deixar se abater, não se abalar muito por conta de cada diversidade, você segue para frente. O esporte me fez perceber o que dá para tirar algo de positivo mesmo em cada situação. Fiquei pensando o que poderia fazer para otimizar esse tempo. Penso que foi isso também, essa capacidade de não me deixar ficar parada.
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Conta mais sobre o surf camp…
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Tenho esse sonho há muito tempo, de ter o meu próprio surf camp e poder passar um pouco da minha experiência para mulheres de todas as idades. A ideia é que o surf consiga tocá-las de um jeito especial, assim como me tocou. Também é uma maneira de poder devolver um pouco das alegrias que o surfe trouxe para a minha vida. Onde estou hoje em dia é graças ao esporte. Aproveitei esse período para tirar esse plano do papel. O primeiro surf camp começou na praia de Praia do Itamambuca, em Ubatuba, litoral de São Paulo. Nesta primeira edição, foquei em um grupo menor e só no público feminino. Na próxima edição, quero que seja para todos os gêneros, não apenas para um nicho, seja para homens e mulheres, outro para a garotada. Quero mostrar que o surf é para todo mundo.
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Normalmente, as meninas não são tão encorajadas a seguir no esporte como os meninos. Você acha que esse cenário mudou ou continua o mesmo?
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Na realidade, o surf sempre foi um esporte predominantemente masculino. O número de atletas e praticantes sempre foi menor em relação aos homens, mas nos últimos anos estamos vendo o esporte feminino evoluir bastante. Já entrei no mar e me deparei com a cena de ver mais mulheres que homens dentro da água. Isso é muito legal porque mostra que elas podem conquistar o espaço delas mesmas com todas as dificuldades. Há dois anos, a WSL (Liga Mundial de Surf) igualou a premiação entre homens e mulheres, o que foi um marco!
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Você já sofreu algum preconceito por ser mulher?
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Comecei no mar por influência do meu pai, foi ele quem me ensinou tudo. Essa diferença de terem poucas mulheres quando eu comecei nunca foi uma barreira muito grande porque, como sempre tive o apoio do meu pai, ele me levava para surfar com os amigos dele, que me davam dicas sobre postura, leitura do mar e tudo mais. Sempre fui muito acolhida. Além disso, o universo do longboard, onde escolhi ficar, é muito unido. Comecei a sentir [a diferença de gênero] quando fui viajar, surfar em outras praias que não eram as minhas habituais.
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A pandemia mudou seu foco, já que as competições foram paralisadas?
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Atleta trabalha com meta, né? Então, eu já começava o ano tendo o meu calendário organizado de viagem, de competição e, com isso, uma política de treinamento. Ano passado, fiquei três meses sem surfar, e, durante esses meses em casa, assim como muita gente, não imaginei que fossemos ficar tanto tempo com o mundo parado. Pensava que em qualquer momento tudo fosse voltar ao normal, então eu ficava a louca do treino em casa, fazia treino online, yoga e treinava de novo, fazia várias coisas para queimar um pouco da minha ansiedade e me manter ativa, para manter meu pique de treino, de preparo físico. Quando percebi que a pandemia não fosse passar tão cedo, aproveitei para treinar de outros modos, com pranchas diferentes, viajei para dentro do Brasil, conheci a Pororoca no Maranhão, que é um fenômeno natural. Enfim, várias coisas que não tinha tempo, nem energia para fazer porque estava focada nas competições. Tento aproveitar o máximo que posso para me manter motivada, mas sem a mesma fórmula de sempre. O mundo mudou, a gente mudou, então não tem como continuar fazendo as coisas como fazíamos. A ideia é levar esse ar mais renovado no retorno das competições.
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A saúde mental dos atletas é um assunto que está muito em alta. Você passou por algum episódio onde seu mental foi afetado?
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Em 2019, bati na trave e perdi o título mundial. Após isso, senti que tive um burnout gigante, porque foi o ano todo me preparando, treinando, viajando, competindo com resultados bons e na hora que eu mais precisava… Enfim, sabia que em algum momento iria ver aquela situação como evolução, mas foi muito difícil aceitar na época. Por mais que o surf seja a minha vida, ele é o meu trabalho. Quando voltei de viagem, peguei férias e nem queria tocar na prancha e eu moro em frente à praia. Era muito difícil de me desvincular e não pensar no surf. Foi difícil. Em fevereiro de 2020, teve o retorno do circuito mundial, não sentia que eu estava 100%, mas falei para mim mesma que estava, e foi um campeonato muito difícil de eu conseguir passar. Eu surfava, mas quando chegava em casa era uma montanha-russa de emoções. Acabei ficando em terceiro e logo quando voltei teve a pandemia. É tão doido porque eu estava precisando tanto de um momento off do surfe que não senti falta nesses três meses. Meu pai é surfista e ele é fissurado, me chama para ver as coisas. Já pedi desculpas para ele porque não quis falar de surf naquele momento. Há anos venho me dedicando, o esporte é a minha vida e eu não me arrependo de nada, porque é isso que me faz ser uma pessoa forte. No primeiro dia que fui para a praia, após esses três meses de pausa… Nossa, só de sentir o pé na areia, o vento no rosto, o sol queimando a pele, o primeiro mergulho na água salgada. Foi como se eu reaprendesse a surfar. Vi quanto tempo fazia que não surfava por diversão. Foi o maior aprendizado que tirei, precisava disso, dessa pausa no esporte, um tempo off.
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Muitas pessoas relatam que quando o hobby vira profissão, a paixão se perde. Imagino que para o esportista isso deve ser difícil…
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É uma vida que me exige muito. O atleta trabalha 24 horas por dia, 7 dias na semana, porque tudo que comemos influencia, as horas de sono, o mar, eu estou o tempo todo ligada no mar, no vento, nas ondulações. O meu pai sempre foi meu técnico-empresário, então vivemos isso aqui o tempo inteiro. Isso é a minha vida. Eu não passo um dia sem pensar nisso, até porque meus dias de descanso, eu penso como está o mar hoje. Até quando estou de férias, mais relaxada, ainda vou surfar. Eu não troco isso por nada, porque graças a isso, com muita dedicação, fui presenteada com viagens no mundo todo, surfar as melhores ondas, conhecer locais incríveis, fazer amigos de todos os lugares. A experiência que eu tenho viajando desde os 12 anos me trouxe uma bagagem gigante que nunca vou aprender em uma faculdade ou em outro trabalho.
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