Se as mulheres se viram mais vulnerabilizadas durante a pandemia – seja pela falta de proteção social, pelo acúmulo de responsabilidades e, em última instância, pela violência doméstica –, são elas, segundo Debora Diniz, que vão conduzir a transformação para um mundo mais humano.
Na linha de frente da luta feminista, a antropóloga e pesquisadora dedicou boa parte de sua carreira à defesa das mulheres. Formada em ciências sociais pela Universidade de Brasília, onde fez mestrado e doutorado, Debora saiu do país após sofrer ameaças de morte em 2018, quando liderou uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) pela descriminalização do aborto até a 12ª semana de gravidez. Hoje morando em Rhode Island, nos Estados Unidos, onde trabalha como pesquisadora na Universidade Brown, a alagoana continua engajada em sua luta. A seguir, ela fala sobre a condição das mulheres brasileiras e dá sua opinião esperançosa – e não otimista, como ressalta – sobre o que será o mundo pós-pandemia.
Quando as mulheres se unem e se movimentam, causam tanto susto que despertam essas reações violentas. Mas a resposta ao autoritarismo bolsonarista vai vir das mulheres
O Brasil é o único país que, num intervalo de cinco anos, viveu duas emergências sanitárias: zika vírus e coronavírus. Quem esteve no centro das duas? As mulheres e as meninas. A Covid-19 parece sem gênero, mas o Brasil é o epicentro da morte materna pela doença no mundo
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Sua carreira é bem ampla, mas seu trabalho tem um viés muito forte das pautas feministas. Quando foi que você começou a enveredar por esse caminho?
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Neste momento, estou escrevendo um livro chamado 12 Verbos Feministas: a Esperança Feminista, com a teóloga católica Ivone Gebara. Então, vou responder a essa pergunta com o que escrevi no livro: eu queria ter um mito de origem que explicasse minha história com o feminismo, mas não tenho. Não fui criada em uma casa patriarcal tradicional nem em uma casa feminista. Eu ia para escola católica, não para escolas de consciência feminista. Na universidade, já éramos uma geração pós-redemocratização, então a gente tinha estudos dos problemas brasileiros, educação moral e cívica, mas não tinha teoria feminista. Na vida pessoal também nunca sofri violência. Então, fico pensando: que história original aconteceu? Acho que foi um caminho natural. A Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero – não foi fundada em 1999 como organização feminista, muito embora praticasse organicamente o feminismo. Quando começamos nosso trabalho lá, as mulheres estavam indo à corte pedir para interromper a gravidez em casos de anencefalia e elas se viam obrigadas a seguir com a gravidez, a viver essa tortura até o fim. E a Anis começou a compilar evidências, dados, ciência, a trabalhar nessa frente. Então, eu diria que foi uma interpelação do poder patriarcal, e talvez seja assim com todas as mulheres.
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Você sempre esteve envolvida com a pauta da legalização do aborto. Teve alguma vivência pessoal com o tema?
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Nunca fiz um aborto nem nunca ajudei ninguém a fazer. As minhas agendas de luta política são por um comprometimento com as liberdades, com o que deveria ser uma democracia. O tema do aborto ganhou uma centralidade em toda a minha trajetória, tanto de pesquisa quanto de intervenção judicial, porque toca não só na reprodução biológica, mas na reprodução social da vida. Quando uma mulher decide como, com quem e de que forma ela vai ter filhos, falamos do futuro da reprodução social de onde vivemos.
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Você se viu pressionada a deixar o país por causa das ameaças de morte em 2018. Como foi essa decisão?
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Quando saí do Brasil, a pergunta iminente não era apenas sobre a minha segurança, mas havia uma ameaça de massacre à universidade, aos meus colegas. E quando uma ameaça é difusa, ela é persistente e ganha conotações de riscos iminentes à integridade. Estamos no país que mais mata defensores de direitos humanos da América Latina. Então, jamais diria que essa é uma situação fácil, só que a intenção da persistência de ataques como esse é a introjeção do medo. E o medo é paralisante. Então, sinto que agora estou num lugar onde posso existir, cada vez mais ativa.
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Como você acredita que a realidade que estamos vivendo hoje afeta as mulheres?
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O governo violento foi uma camada anterior ao desamparo causado pela pandemia do coronavírus. O Brasil é o único país do mundo que, num intervalo de cinco anos, viveu duas emergências sanitárias: zika vírus e coronavírus. Quem esteve no centro das duas? As mulheres e as meninas. No caso do zika, parece autoevidente, né? Uma mulher em idade reprodutiva vive uma epidemia que impacta sua vida familiar. E então vamos para a Covid-19, que parece uma doença sem gênero. E descobrimos que o Brasil é o epicentro da morte materna por Covid-19 no mundo. Além disso, na quarentena, estamos com picos no índice de mulheres que sofreram violência doméstica. Podemos dar inúmeros exemplos de quando uma emergência sanitária não pensa que os corpos têm gênero, têm raça, têm rosto. São majoritariamente mulheres que estavam num emprego doméstico, num emprego de saúde e que estavam na linha de frente dessa pandemia em condições muito precárias.
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Na sua opinião, como estão essas mulheres um ano depois do início da pandemia no Brasil?
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Curioso você me perguntar isso hoje [a entrevista aconteceu em 22 de fevereiro] porque a ministra Damares lançou o Plano Nacional de Enfrentamento ao Feminicídio. A mim parece uma incoerência, já que se há alguma preocupação no que diz respeito às mulheres no momento é a liberação de quatro armas por cidadão no Brasil. Um ministério de direitos humanos que se preocupa com a vida das mulheres deveria estar preocupado em desarmar a população. Há estudos suficientes que mostram que mulheres morrem mais nas suas relações afetivas dentro de casa e que a existência de uma arma torna a matança ainda mais terrível e mais rápida. Então, o que aconteceu com essas mulheres um ano depois da pandemia? Elas são cada vez mais impactadas na base com o desamparo para proteção social do governo Jair Bolsonaro. Eu não diria que isso é uma consequência do confinamento. O confinamento poderia ser uma política de proteção à saúde, se ele viesse associado a mecanismos de proteção social. Mas, como as respostas do governo foram o negacionismo da pandemia e um total isolamento das políticas de proteção social, hoje o desamparo das mulheres é ainda maior.
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E o que você entende como um futuro pós-pandemia para as mulheres?
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Quando as mulheres se unem e se movimentam, causam tanto susto que despertam essas reações violentas. Mas a resposta ao autoritarismo bolsonarista vai vir das mulheres. E nós vamos encontrar uma forma de fazer essa multidão. As argentinas nos mostraram que é possível botar 1 milhão de mulheres na rua, inclusive com temas sensíveis como o aborto. Nós não temos a mesma tradição de ocupar as ruas, que nunca foram espaços seguros para as mulheres brasileiras. Então, não podemos comparar movimentos políticos dessa maneira, mas, se a nossa aproximação do feminismo vem por uma ferida causada pelo patriarcado, uma violência, um aborto clandestino ou uma perseguição, nós produziremos a resposta.
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Todos nós fomos atingidos pela pandemia, mas de formas diferentes. Como isso se dá entre mulheres de classes sociais distintas?
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A pandemia aumentou a distância entre as nossas chances de sobrevivência. Não só pela doença, mas pelas condições sociais. As que mais morrem são as mulheres mais vulneráveis. Estamos numa concentração das perversões das desigualdades de gênero, de classe e de raça. Agora há o que atravessa todas nós: essa localização da reprodução social da vida das mulheres. Mulheres com seus filhos, nas funções domésticas, em teletrabalho ou trabalhando fora experimentaram essa anomia, essa ruptura do cuidado e das instituições sociais. Todas as mulheres viveram, nesta pandemia, a exacerbação do desamparo do cuidado. Mas, quanto mais vulnerável é essa mulher, menores suas chances de fuga. E a fuga é uma categoria central para a vida das mulheres.
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O que evoluiu nos últimos anos em relação ao comportamento das mulheres? Somos realmente mais livres, mais autônomas e mais unidas?
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A geração atual é muito melhor do que a anterior. Vocês foram capazes de duvidar das histórias contadas por um só lado, de fazer perguntas que as gerações anteriores não fizeram. Criaram laços de reconhecimento mútuo e duvidaram das histórias que dizem que as mulheres não acreditam umas nas outras. Vocês usam o feminismo com outra vitalidade, outro conteúdo. Mesmo com todas as formas de perseguição e de perversão aos corpos femininos, as mulheres hoje podem ter mais prazer e mais liberdade. Sem dúvida, aconteceram transformações importantíssimas. Não tenho nenhum saudosismo, não faço parte dos que acreditam que o passado foi uma coisa melhor, porque não foi. E, sempre, em resposta às tentativas de se estabelecer um poder hegemônico e autoritário, é dos cantos mais escondidos das mulheres que a criatividade surge.
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- debora diniz,