O amor romântico, idealizado e sustentado na ideia de alma gêmea, existe mesmo? Ou é invenção de filmes, novelas e contos de fada? Dois livros aprofundam essas questões. “Por que Amamos – O que os Mitos e a Filosofia Têm a Dizer Sobre o Amor”, do doutor em filosofia Renato Noguera, e “Amor na Vitrine – Um Olhar Sobre as Relações Amorosas Contemporâneas”, da psicanalista e escritora Regina Navarro Lins, traçam um panorama de como a definição de amor é construída de acordo com a época e como o machismo e o patriarcado afetam as relações amorosas.
Me sinto amado? Me sinto desejado? Se a resposta for sim, está ótimo. O que a outra pessoa faz quando não está comigo não é da minha conta
Regina Navarro Lins
Somos ensinados a não chorar, a não ser frágil, a não ter medo. E esse cara pode virar um monstro
Renato Nogueira
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Por que as pessoas amam?
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Porque o ser humano é gregário. A gente ama e deseja ser amado. A criança pequena precisa dos cuidados físicos e emocionais da mãe, senão ela morre. Amar é um sentimento. Mas o comportamento amoroso é aprendido.
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O ato de amar está vinculado a nossa sobrevivência. Sem amor a gente não teria energia suficiente para se manter vivo. Afeto é essencial.
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O que é o amor romântico?
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O amor é uma construção social, em cada época se apresenta de uma forma. A partir do surgimento do cristianismo até o século 12, o amor só podia ser dirigido a Deus. Foi então que nasceu o amor romântico, que não podia entrar no casamento. Casamento era considerado muito sério para se misturar com amor. As pessoas se casavam por escolha da família. No século 19, o amor romântico no casamento passou a ser uma possibilidade, mas só se popularizou a partir de 1940, incentivado pelos filmes de Hollywood. Nesse tipo de amor, você conhece uma pessoa e atribui a ela características de personalidade que ela não possui. Com a convivência, a idealização se torna impossível de ser mantida e você acaba percebendo aspectos no outro que não lhe agradam. Você se sente enganado e passa o resto da vida tentando enquadrar o outro naquilo que idealizou. O amor romântico traz expectativas que não se cumprem, como a ideia de que os dois vão se transformar em um só, nada mais lhes faltando, de que a vida só tem graça se o amado estiver junto, que quem ama não sente tesão por mais ninguém… São mentiras horrorosas e que geram sofrimento; o que é muito prejudicial. Mas veja bem: não tem nada a ver com mandar flores, com jantar à luz de velas, com ser carinhoso… Isso tudo é uma delícia, mas trago uma boa notícia: o amor romântico está dando sinais de sair de cena. A busca pela individualidade vem crescendo, e não por egoísmo, mas como uma grande viagem para dentro de nós mesmos. Já o amor romântico propõe o oposto disso: a ideia de fusão entre os dois. Ao sair de cena está levando a sua característica básica: a exigência de exclusividade. Por isso estão surgindo novas formas de amar como o poliamor, as relações livres, o amor a três…
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O amor romântico é cultuado pelo cristianismo e pela classe média burguesa. É a ideia de que a nossa felicidade depende de estarmos apaixonados – e que somente uma pessoa é capaz de suprir isso. Mas é importante lembrar que é um projeto criado na Europa ocidental. A pessoa nunca vai ser como você quer porque ela é humana e cheia de medos. A decepção é grande. Em culturas africanas ou indígenas, por exemplo, o amor surge como a possibilidade de um encontro mais genuíno com a gente mesmo. Não é uma relação de poder ou de posse. O cerne da felicidade não é o outro, mas, sim, o autoconhecimento.
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A monogamia está com os dias contados?
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Acredito que sim. Cada vez mais as pessoas estão questionando se a monogamia realmente é melhor que a não monogamia. Acredito que, daqui a algumas décadas, menos pessoas vão querer se fechar numa relação a dois e mais gente vai optar por relações múltiplas. Não tenho nada contra a monogamia, desde que ela seja espontânea e não um imperativo. Muitos pensam que se houve uma relação extraconjugal é porque o casamento vai mal. Mas a maioria das pessoas tem relacionamentos fora do casamento por um único motivo: variar é bom. Em torno de 70% a 80% das pessoas têm relações extraconjugais ao logo da vida. Mas se você pergunta, todo mundo finge que é monogâmico.
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A tendência é coexistir diferentes formas de modelos afetivos. Cada um pode decidir o que quer num determinado período da vida. A monogamia pode ser, sim, uma prática mais fácil de gerenciar, mas, ao mesmo tempo, não podemos esquecer que temos desejos. De acordo com Morning Glory Zell – Ravenheart [autora que cunhou o termo poliamor], as pessoas não são naturalmente monogâmicas. A inclinação do ser humano seria amar várias pessoas. Com um você pode ter mais afinidade sexual, com outro, um relacionamento de cuidado, com outro, um projeto de vida, ou de criar filhos. Você não precisa encontrar tudo em uma única pessoa. Assim como uma mãe ou um pai pode amar vários filhos e filhas da mesma forma e com o mesmo cuidado. Nem por isso, a monogamia está com os dias contados, algumas pessoas ficam mais confortáveis em um relacionamento monogâmico, outras, não.
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Que tipo de amor as pessoas buscam nos dias de hoje?
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O condicionamento cultural é tão forte e o amor romântico tão entranhado, que chegamos à idade adulta e não sabemos o que desejamos realmente e o que aprendemos a desejar. Mas estamos no meio de um processo de profunda mudança das mentalidades, que é lenta e gradual. Cresce cada vez mais o número de homens e mulheres que desejam partir para uma relação não monogâmica. Nas minhas lives, as duas perguntas que mais recebo são: “Como digo para o meu par que quero abrir a relação?” e “Amo meu marido, não quero me separar, mas não tenho mais vontade de fazer sexo com ele”. O sexo no casamento é a grande tragédia vivida pelos casais. E não é problema de um casal específico, mas do modelo de casamento da nossa cultura, calcado no controle, na possessividade, no ciúme, no desrespeito da individualidade do outro.
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Penso que a gente está em um momento de transição. Sem dúvida, muitos jovens ainda estão imersos na cultura dos mangás e têm nos dramas de amor asiáticos um modelo afetivo romantizado. O amor romântico integra a sociedade patriarcal. Nosso formato de amor ainda é branco, hétero e cisgênero. Os homens precisam ser machões e as mulheres, bonecas. A mulher preta é a última a ser escolhida. O homem preto não é o modelo do príncipe encantado. Acredito que o tipo de amor que as pessoas buscam hoje, ontem e, talvez, amanhã, seja o amor como uma força que humaniza. Pode parecer simplista, mas elas procuram amor para se sentirem mais humanas. O formato vai depender de suas experiências e suas condições de amar, seus medos e suas dores.
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Quais as consequências do machismo nas relações amorosas?
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Antes de 5 mil anos atrás, não havia uma sociedade de dominação do homem sobre a mulher, havia uma sociedade de parceria. A mulher era reverenciada; só existiam deusas mulheres. Não se sabia que os homens participavam da procriação. A ideia de casal era desconhecida, e todos os homens transavam com todas as mulheres e vice-versa. Quando começaram a domesticar os animais, perceberam que a ovelha desgarrada não tinha filhote e logo caiu a ficha de que era necessário um macho para a procriação. Surgiu a propriedade privada: meu rebanho, minha terra. As mulheres foram aprisionadas porque os homens queriam ter certeza da paternidade para não deixar a herança para o filho de outro. O sistema patriarcal definiu com muita clareza o ideal masculino – força, sucesso, poder, coragem, ousadia – e o feminino, de submissão e obediência. Hoje, percebemos que o machismo também prejudica os homens. Um exemplo é um paciente de 26 anos que atendi no consultório que estava pensando em suicídio porque brochou três vezes. Mas já existem homens que estão se libertando desse mito da masculinidade. Eles estão mais aptos a estabelecerem uma parceria com as mulheres, inclusive no sexo. A fronteira entre o masculino e o feminino está se dissolvendo. Isso é ótimo; é uma precondição para uma sociedade de parceria.
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Os homens não sabem. Somos treinados para sermos ecos nos afetos, a nossa consciência afetiva é reduzida, de modo que vencer e ter sucesso significa não chorar, não ser frágil e não ter medo. E esse homem pode virar um monstro. Criamos homens controladores e violentos que não sabem lidar com as frustrações. Não à toa temos números altíssimos de feminicídio. O suicídio acomete muito mais os homens. Os meninos guaranis, por outro lado, passam por um ritual para que se tornem equilibrados. Você não vai vê-los atirando em coleguinhas, como nas culturas ocidentais. Assim como os guaranis e outros povos originários da América, em várias culturas africanas tradicionais, encontramos esse fenômeno de homens aprendendo a lidar com suas emoções como um ritual obrigatório. Em algumas culturas, um homem não pode ficar restrito à fantasia do guerreiro.
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Amor e ciúme caminham juntos?
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Ciúme sempre foi valorizado. Já atendi muita paciente que não se sentia amada porque o namorado não manifestava ciúme. Não tem nada a ver. Ciúme é aprendido. Criança pequena é possessiva e ciumenta porque se a mãe sumir, ela morre. Quando as pessoas entram em uma relação, reeditam inconscientemente essas necessidades infantis. Aí, o controle, a possessividade e o ciúme passam a fazer parte da relação e são encarados como naturais. Isso também pode gerar a violência doméstica.
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Depende da atmosfera ou do modelo de amor. No amor romântico, o ciúme faz parte da relação porque existe um pacto de exclusividade afetiva. Nesse modelo, aquela pessoa é fundamental para a minha felicidade. Mas ele pode ter vantagens, como, a partir dele, gerar vontade de se tornar uma pessoa mais admirável para a pessoa amada. No poliamor é diferente, não existe lugar para o ciúme. Haveria outra expressão que é a compersão, ou seja, um sentimento de felicidade por saber que a pessoa que a gente ama está feliz, mesmo com outros parceiros.
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O que a pandemia está fazendo com as relações amorosas?
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Imagina um marido e mulher que só se encontravam de noite, jantavam e iam dormir e agora passam 24 horas por dia juntos, sete dias por semana? Se antes da pandemia já não existia respeito à individualidade do outro, imagina agora…. Uma moça me escreveu dizendo que não aguenta mais o marido querendo o tempo todo saber com quem ela está falando ao celular, o que ela está fazendo no computador. A falta de respeito pela individualidade do outro, que já não havia, agora é exacerbada.
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A pandemia faz com que se perca a fronteira entre público e privado. Casais que estão em home office não estão sabendo lidar com os novos territórios. É como se a gente fosse almoçar no banheiro. Nossa casa, que antes era um lugar privado, se torna público com as lives e reuniões. Viver sem limites é um problema.
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É possível ser feliz sozinho?
Não tenho a menor dúvida. Basta a pessoa se libertar dos padrões impostos, que pregam que só é possível ser feliz se houver um par amoroso. Por isso tem tanta mulher desesperada para achar alguém. É possível viver muito bem sozinho se houver amigos, uma vida social interessante, hobbies, projetos…. É fundamental que todos desenvolvam essa capacidade de viver bem sozinho. Não é grave desejar um par amoroso, o grave é acreditar que só é possível viver bem se houver um par amoroso.
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Não tenho a menor dúvida. Basta a pessoa se libertar dos padrões impostos, que pregam que só é possível ser feliz se houver um par amoroso. Por isso tem tanta mulher desesperada para achar alguém. É possível viver muito bem sozinho se houver amigos, uma vida social interessante, hobbies, projetos… É fundamental que todos desenvolvam essa capacidade de viver bem sozinho. Não é grave desejar um par amoroso, o grave é acreditar que só é possível viver bem se houver um par amoroso.
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Sim. Depende do ideal de vida da pessoa, de seu projeto. Obviamente, uma companhia nos ajuda. Quando tudo desmonta, ter alguém para contar é bom porque não temos repertório para lidar com todas nossas angústias. Uma companhia pode oferecer uma presença, uma outra humanidade. Ficar só também pode cansar.
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Existe uma forma certa de nos relacionarmos?
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Acredito que a única forma satisfatória é haver total respeito ao outro, seu jeito de ser, de pensar, de se comportar, ter liberdade para ir e vir, ter programas separados, amigos independentes, e não haver controle. Muita gente é obcecada pela ideia de exclusividade, mas ninguém consegue controlar o outro. Ninguém deveria se preocupar se o amado transa com outra pessoa. Você precisa responder a duas perguntas a si próprio: Me sinto amado? Me sinto desejado? Se a resposta for sim, está ótimo. O que a outra pessoa faz quando não está comigo não é da minha conta. É uma maneira muito mais inteligente de viver. As relações amorosas podem ser vividas de várias formas diferentes. Claro que sempre vai ter algum conservador dizendo: “Ah, mas aí as relações são superficiais”. Isso não é verdade. Você pode ter vários amigos e ter relações muito profundas com todos eles. Não tem lógica.
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A primeira questão é a gente conhecer nossa subjetividade. Saber o que a gente gosta, quem somos e o que a gente precisa. Se a gente não sabe o que quer, pode estar levando gato por lebre em um relacionamento. Algumas condições são chaves: a pessoa tem a ver com sua trajetória? Sintonia total não terá nunca, mas o amor floresce melhor onde existe um certo encaixe.