Se pensar no futuro dá uma certa vertigem, a produtora e diretora Gabriela Figueiredo conta em um texto pessoal que ela e as filhas se concentram em saudar os deuses das pequenas coisas no sítio da família, na Serra Fluminense.
A pandemia chegou gritando – vive com o que você tem, pessoas, livros, roupas e gavetas. Catastróficos previram o fim. Românticos viram como uma chance de sonhar novos sonhos.
Mães, sem tempo de elaborar, entenderam a mensagem – ajusta a realidade e vai. A minha bússola foi ajustada em direção ao mato. Decidimos fugir.
– Mãe, tá chegando?
Contei a elas que quando criança competia com minha irmã quem via mais Fuscas amarelos na estrada.
– Mãe, o que é Fusca?
Nunca mais foram à escola. Ficaram craques em lagartas, pedras e cupinzeiro. Aprenderam que coelho se multiplica, que a bolinha preta no lago vira sapo e que louva-a-deus junta as mãozinhas em oração.
– Mãe, me mostra uma foto de Deus?
Mesmo vítimas da minha culinária, elas cresceram. E perderam todos os sapatos. Uma bota e um chinelo foi o que restou. Para mim, um par de botas Pisa Forte, comprado na loja de material de construção local. Vamos nessa, faremos bolhas nos pés, andaremos descalças, teremos as unhas pretas de terra.
– Mãe, minhoca tem pé?
Agarramos um gosto por inventar e recontar histórias. Estela, mesmo com medo de escuro, diz que vai ser guardiã da floresta e que vai usar vagalumes para acender a noite. Meu coração se ilumina. Catarina é louca pelas mariposas pretas. Coisas de bruxa, ela diz. Não aprendemos a fazer pão, mas, distraídas, observamos a formiguinha pequena carregando folhas enormes, um passarinho à toa, a aranha tecendo uma teia. A vida pode ser grande, mas viver é pequenininho.
– Mãe, Deus é grande?
À noite, fazemos fogueira para aquecer e para deixar ir o que não é mais necessário. Queimamos ideias, trabalhos, desenhos e num ato libertador todos os meus sutiãs com bojo.
Olho pro céu procurando minha avó – ela estaria orgulhosa? Aproveito pra dizer a ela que “plantar batata” não é castigo!
E a vida que não para de acontecer o tempo todo, perto e longe dos nossos olhos – penso, enquanto salvo uma esperança, assino um contrato, choro pelo telefone, rio de um meme, tiro a couve-flor queimada do forno, emudeço o noticiário.
Não vou mentir, já planejei fugas. Idealizei minha solidão acompanhada de uma taça de vinho, que tomaria tranquilamente onde ninguém a derrubasse, onde os insetos passariam sem que eu tivesse que contar suas patas, onde não precisasse saber como descansa um beija-flor.
Mãe, por que a gente não se “camuflica” que nem o lagarto?
Mais uma taça pra mim, mais chocolate pra elas e seguimos, parceiras e exaustas de nós mesmas. Mas quando a casa se enche de silêncio, brindo a elas que me roubam e me devolvem a paz.
– Mãe, sabe a música do “Lindo Balão Azul”?… Se a estrada estava tão bonita, por que eles pegaram carona na cauda do cometa?
Às vezes choro no banho, pelas notícias e por ter perdido o primeiro dente que caiu. Imagino qual será o meu castigo, mas sou interrompida, ou salva.
– Mamãe, quer ouvir uma “engraçadez”?
Rio como se o mundo nunca tivesse perdido a graça e recebo um cafuné feito com dedinhos macios e minúsculos.
Se elas vão aprender que certeza é com z, não sei. Mas se pensar no futuro dá uma certa vertigem, por aqui concentramos, diariamente, em saudar os deuses das coisas pequenas.
– Mãe, o mundo tá colado no céu?… Nuvem cai?…
Com olhinhos cheios de amanhã, elas me perguntam o que vai ficar quando o vírus for embora. Não sei, tem muita gente com fome. De pão e abraços. Mas o mesmo mundo que tem tantas saudades tem também joaninha, luar e ataque de riso.
– Mãe, Deus ri?
Quando isso passar, e as certezas já não nos servirem mais, vamos ensaiar novos passos, pisando forte ou descalças, pela terra ou pelas pedrinhas portuguesas da cidade. E se vier uma tristeza, estaremos como a formiguinha – ocupadíssimas com a tarefa de viver a vida que nos atravessa, pequena, imensa, urgente e inadiável.