Eu adoro podcasts, aprendo muito com eles. Sinto que estou sentado numa mesa de bar para trocar várias ideias enriquecedoras com pessoas interessantíssimas. A última conversa que pude acompanhar ainda está ressoando na minha cabeça, me fazendo refletir que talvez estejamos vivendo sob um zeitgeist (termo em alemão que significa espírito do tempo e representa o conjunto do clima cultural e intelectual de uma época) muito propriamente brasileiro.
No episódio “Que Ressentimentos Você Guarda?” do podcast Mamilos, Cris Bartis e Ju Wallauer receberam os psicanalistas Christian Dunker e Laura Bechara – autora de uma tese sobre ressentimento. Seja por sua percepção de aspecto amargo ou rancoroso, o ressentimento declarado é sempre varrido para debaixo do tapete por carregar representações não muito nobres e a falta de ferramentas que dispomos para lidar com seus efeitos. Ainda assim, escapa para a cena da vida cotidiana e, quando analisado com mais consciência, pode dizer muito sobre nós e aquilo que temos dificuldade de digerir.
O ressentimento é como uma constelação de afetos que se repetem, uma certa fixação ao passado que fica. Há um certo aproveitamento desse relembrar, até como uma forma de controle das lembranças afetivas a qual um acontecimento nos atravessou e só nós estivemos lá para testemunhar o estrago que fez dentro. É um tempo do luto que nos permite elaborar o ocorrido e nos permite dar um significado.
Também pode estar relacionado a algo presente, quando este envolve o desconhecido, algo incerto e os afetos do ressentimento cabem perfeitamente porque estão ligados a algo que eu já sei controlar. Como descreve Maria Rita Kehl, é como uma casa que a gente vai e decora da forma como a gente quer. Nesse sentido, suas manifestações são diversas, lidas até mesmo com generosidade, de forma positiva. A psicanalista que tem produções inéditas sobre o assunto na área, e que acaba de lançar uma nova edição pela Boitempo, afirma que quando não declarado, o ressentimento chega a ser visto como um valor e exemplos de personagens heróis em busca de vingança e reparação não faltam na literatura, nem no cinema.
Como afeto, o ressentimento pode ser partilhado socialmente e antecipa nossos encontros e é alimentado pelo indicador de culpa – minha, sua ou do outro. Nosso tempo está recheado de indícios do ressentimento individual expresso no coletivo (e não falo tão somente dos “tribunais da internet”). Algo ou alguém roubou o quinhão de felicidade que estava aqui e essa ‘culpabilização’ fermenta na ingestão de ofensas que não cessam, pois embrulhos como negacionismo, charlatanismo, coronavírus, os planos adiados com as expectativas não cumpridas e os catastrofismo são muito difíceis de definir. Por mais que tentemos, até das formas mais descabidas, como tempestades de chuva e vento, este ‘alguém’ não possui uma só cara, um só nome ou uma só forma capaz de ter seus cabelos alcançados pelas mãos.
Diante desse fenômeno, tornou-se comum, a quem tem esse privilégio, ignorar o noticiário para nem ter que encarar a realidade, abandonar o Doom Scrolling – ato de gastar uma quantidade excessiva de tempo na tela vendo notícias ruins. Na mesma toada, emerge também o Pessimismo Defensivo, o comportamento de ver tudo pelo lado negativo para não ser pego de surpresa e em que até a compaixão ficou cansativa, afinal, não é possível que tudo isso não passe.
Fato é que ninguém quer viver na dor. Para os participantes do episódio, a prescrição para o ressentimento num geral está no desafio de fazer o presente ser mais interessante do que a memória que está fixada. Seja na cultura ou no laço social, é fazer do presente esse lugar que vale a pena ser vivido. Frente a este desafio, está outro fenômeno identificado pela galera da Float Vibes como Otimismo Reprimido: Se de um lado a banalização da positividade pelo excesso #gratiluz mascara questões sociais, é difícil encarar a realidade sem perder a capacidade de ver e desejar construir novos futuros. Logo, há uma encruzilhada. “Mesmo com todas as tentativas de disfarçar traumas sociais e culturais com palavras bonitas, o desejo de positivar a vida (e a humanidade) persiste. O otimismo pode trazer um alívio cego e ingênuo, pois nos ajuda a escapar da violência da realidade”.
Ao meu ver, isso diz muito sobre o surgimento do languishing, um sentimento de apatia, um não-lugar entre o bem-estar e a depressão, onde você não está necessariamente triste ou feliz, afeto herdado da pandemia.
Para Dunker, é preciso adicionar um certo grau de agressividade, uma atitude mais enérgica na resposta ao ressentimento. No recorte mais coletivo a qual aqui falamos, isso sugere boas perspectivas para a atribuição de novos significados a este presente. Pois “o ressentimento também abriga uma esperança de o indivíduo lutar para instalar ou reinstalar o sentido da dignidade ferida”. Abre-se, portanto, uma janela para elaborar para onde endereçar a vida diante desses fatos.
“A memória da dor não implica a desvalorização do passado, nem a amnésia do traumático, nem mesmo a absolvição superficial do traumatizado, mas a aceitação com pena, ódio e dor pela situação imodificável pela perda sofrida, pela frustração vivida, o que possibilitaria o processamento de um luto normal. Entretanto, a pulsão de vida pode utilizar o não esquecimento como algo estruturante, como aprendizado para proteger o sujeito e evitar situações que poderiam ser evitadas. O passado pode ser transformado em uma experiência de aprendizado”.
Se de um lado, o episódio faz um convite para aprendermos sobre a presença do “outro, diferente e singular – e, portanto, não necessariamente disponível para atender às nossas expectativas, necessidades e desejos”, sobre ressignificar amores que não tiveram bons fechamentos ou acontecimentos inesperados, fico também com a reflexão de que esse abrir de possibilidade para a superação do ressentimento que impede o fluir da vida deve estar no direcionamento de uma parcela importante de energia para além de ações paliativas que pouco mudam a sua real natureza, ou seja, deve estar também para as estruturas que as sustentam.
Victor Brandão é bacharel em comunicação social e especialista em Cultura Material e Consumo na perspectiva semiopsicanalítica pela Escola de Comunicação e Artes da USP. Trabalha com pesquisas de comportamento e em estratégias de comunicação, marcas e negócios.
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