Foi depois de uma viagem à China que o designer Gustavo Silvestre começou a pensar o projeto que mudaria totalmente seu caminho profissional — e a realidade de muita gente. Àquela altura dono de seu ateliê, após estudar design de moda em Florença, na Itália, e vencer um concurso para jovens estilistas, ele se viu em uma crise com o consumo e a necessidade de achar caminhos mais sustentáveis para a moda.
“Passei a perceber que alguma coisa na conta do fast-fashion não fechava. Então quando voltei para o Brasil encerrei minha marca, ainda sem saber o que iria fazer”, lembra o designer de 42 anos. Nascido no Recife, Gustavo lembrou de uma cena familiar, das mulheres de sua família se reunindo durante sua infância para abrir suas caixinhas e “crochetar” enquanto batiam papo.
“Eram verdadeiros tesouros que elas tiravam dali”, lembra. Quando se deu conta, as linhas e agulhas já haviam se tornado suas companheiras inseparáveis – no trabalho, em casa, em seus deslocamentos pela cidade. E passaram a compor boa parte das peças que passou a produzir.
A virada viria tempos depois, após uma conversa com Chiara Gadaleta, estilista referência em cadeia de moda sustentável, sobre o papel das pessoas no mundo da moda. Notando seu interesse, Chiara o convidou a trabalhar com ela no projeto “Mãos do meu Brasil”, que mapeia iniciativas artesanais pelo país.
Gustavo encontrou no crochê uma forma de ressignificar seu trabalho com a moda, descobrindo que a técnica poderia ser também uma ferramenta de educação. Em 2015, ficou sabendo de uma iniciativa de ensino de artesanato na penitenciária masculina Desembargador Adriano Marrey, em Guarulhos (SP), para a qual foi convidado para dar uma aula de crochê.
“Tudo aconteceu muito rápido. Em uma semana, preparei e apresentei o projeto, na semana seguinte já estava lá”, conta o designer, que se surpreendeu de como o crochê foi bem aceito desde o início num dos ambientes mais violentos da sociedade. “Dentro do presídio eles têm muito tempo disponível e precisam se ocupar, ter uma perspectiva de reintegração.”
Assim nascia o Ponto Firme, projeto que se cristalizou em uma coleção de moda criada pelos alunos, apresentada na abertura da 45ª edição da São Paulo Fashion Week, a mais importante semana de moda do país.
“O SPFW serviu para mostrar as potencialidades que existem em uma penitenciária, do ponto de vista artístico, de trabalho e esperança não só para a sociedade, mas para os próprios detentos, do que eles são capazes com uma linha e uma agulha”.
Liderado pelo estilista, o projeto leva afeto, estética e design para dentro da prisão, promovendo transformação social a partir do crochê, além de contribuir para a redução da violência. “Muita gente acha que é só crochê, mas não, é uma revolução manual silenciosa. É design transformando vidas”, define Gustavo.
Vestindo Marquezine, Anitta e Pabllo
Com a Escola Ponto Firme em plena atividade desde novembro do ano passado, a ideia é unir desde ex-detentos, mulheres trans em situação de vulnerabilidade, até pessoas que de alguma forma tiveram problemas com trabalhos análogos à escravidão, e desenvolvê-los para que tenham cada vez mais autonomia e consigam, através da moda e de trabalhos manuais, gerar renda.
“Eu me esforço semanalmente para encontrar trabalho para eles, porque a concorrência com o crime é pesada”, afirma Gustavo. Hoje a Ponto Firme coleciona conquistas, como ter sido a primeira iniciativa social a participar do calendário oficial da São Paulo Fashion Week, onde já apresentou cinco coleções de roupas e acessórios em crochê criados pelos detentos. Além disso, suas peças já vestiram famosos como Bruna Marquezine, Anitta e Pabllo Vittar.
Com os detentos, a marca não só atravessou os muros do presídio como as fronteiras do Brasil. Um dos trabalhos recentes produzidos no presídio foi a produção de meia tonelada de crochê que se transformou nas cortinas dos provadores da primeira loja da Farm em Nova York.
“Esse trabalho foi desenvolvido com ex-detentos, pessoas que tiveram contato com o curso dentro do presídio e me procuraram com a expectativa de continuar os trabalhos manuais aqui fora e gerar renda”, conta.
“É algo memorável conseguir atravessar o oceano com um trabalho que foi feito todo à mão, com tantos sonhos envolvidos.”
O trabalho virou até filme, o documentário “O Ponto Firme” dirigido por Laura Artigas, que acompanhou o processo de desenvolvimento da primeira coleção dentro do presídio (veja trailer abaixo). Gustavo espera que cada vez mais pessoas consigam encarar a prisão como lugar de potência e criação.
“O meu convite é que a sociedade olhe para esse ‘lixão humano’ que é a cadeia, onde depositamos os problemas que não queremos resolver como sociedade. Como diz o Drauzio Varella, a penitenciária só serve para punir, ninguém sai melhor dali. Precisamos olhar melhor para isso.”
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