Heitor Dhalia está em cartaz com “Tungstênio”. O cineasta discute a violência das periferias de Salvador, o racismo estrutural, relações amorosas abusivas e saudosismo da ditadura no filme, estrelado por Fabricio Boliveira. Em entrevista ao Glamurama, Heitor fala da importância de escalar negros – na contramão da novela “Segundo Sol” -, explica por que cortou uma cena de estupro do longa e conta episódios de violência extrema que vivenciou de verdade, no set do filme. Vem ler! (por Michelle Licory)
Glamurama: Esses temas abordados no longa não poderiam ser mais atuais… É de propósito escolher falar do que está no centro dos debates atuais? Qual desses temas mais te assusta?
Heitor Dhalia: “Na verdade, nada disso me assusta. É preciso fazer filmes que retratem e discutam questões do mundo. Se seu trabalho dialoga com temas contemporâneos, ganha relevância, contribui para o debate. A gente rodou há 2 anos, baseado em uma história em quadrinhos do Marcelo Quintanilha. Ele é um cara que mora na Europa há 15 anos e tem uma trajetória brilhante e premiada porque descobriu uma coisa obvia: o Brasil é um país não branco. Ele mostra um Brasil profundo, da exclusão, que produz um caldeirão muito tenso e violento nas periferias. Uma população que é assassinada. Nós, classe média, temos medo de uma violência hipotética. As periferias vivem a violência como base cotidiana, o que é bem diferente. Ele também aponta essa questão da discussão de gênero, das relações abusivas, especialmente para a mulher negra, que é bem diferente do machismo sofrido por mulheres brancas. É outro grau. O tema mais surreal de todos é o saudosismo da ditadura. Na época em que filmamos, a gente via como ironia de um personagem quase cômico, exagerado… E um ano e meio depois o país assustadoramente aponta pra isso. A piada deixou de ser piada, virou serio. A gente realmente vive uma possibilidade real de entrar numa regressão política anticivilizatória”.
Glamurama: Sobre essa questão do racismo estrutural: o Fabricio também está na novela das nove, “Segundo Sol”, que foi muito criticada por ter pouquíssimos atores negros e se passar em Salvador [como o seu filme], conhecida como a cidade mais negra fora da África. Já você abriu mão de ter nomes mais conhecidos no elenco e correu atrás, em infinitos testes, de novos talentos negros que fossem fieis aos perfis dos personagens. Por quê?
Heitor Dhalia: “A gente cada vez mais tem acordado pra isso. Todo esse ativismo tem nos alertado para mudar hábitos, comportamentos, formas de pensar. A gente quer melhorar, ser pessoas melhores, uma sociedade melhor. Essa questão do racismo estrutural, essa herança escravocrata que a gente não consegue se livrar é um ponto urgente que tem que ser debatido. Nas nossas pequenas ações temos que lutar contra isso e tentar incluir uma população inteira que vive em exclusão há 500 anos, que não tem opção, chance, oportunidade. Existe um movimento no audiovisual do mundo inteiro de tentar trazer essa representatividade. A luta dos ativistas negros tem que ser de todos nós. É um aprendizado: precisamos nos solidarizar, cada um com sua parte. E é muito mais legal ter um casting diverso. Depois que você toma consciência disso, fica sempre no seu radar e não desliga mais. Começa a reparar, por exemplo, que só tem gente branca nas arquibancadas dos estádios da Copa. Foi muito prazeroso, intenso e enriquecedor trabalhar com esse elenco. A Samira [Carvalho] nem era atriz, era modelo. O Wesley [Guimarães] era de um grupo de teatro lá da periferia”.
Glamurama: Mas não é mais fácil escalar só quem já é consagrado? Um cineasta respeitado como você poderia ter só estrela no elenco…
Heitor Dhalia: “Pessoalmente, e isso é uma questão individual minha, sem dizer se é certo ou não: não me pauto por fama na hora de escalar. Claro que, por uma questão comercial, é importante ter alguém mais famoso. Mas não acho que seja por aí! Nada contra famosos, grandes atores são famosos, mas tem pessoas que nem são atores e podem defender brilhantemente um papel… O que o personagem pede? O cinema é muito parecido com a vida então tem que achar alguém parecido com aquele personagem. Quando encontro, abraço com prazer e com coragem – porque tem que ter coragem… Em ‘Tungstênio’, dois protagonistas não eram atores antes, então eu estava arriscando metade do filme. Cada vez mais eu penso na importância dos testes, de achar pessoas”.
Glamurama: E por que trabalhar com o Fabricio?
Heitor Dhalia: “Ele é um grande ator, sou fã, e é baiano, tem a ver com aquela realidade, aquele acento muito forte, com muita presença… O personagem é um antiherói absoluto, um policial que tem que resolver o que o estado não resolve, que convive com a violência mais brutal que existe. A nossa polícia mata muito e morre muito. E ele tem essa relação abusiva com a mulher, interpreta a lei de um jeito todo errado… Ele está ali de um lado certo, mas todo errado. Um personagem complexo, cheio de contradições. Quando você tem um protagonista que não é mocinho, precisa ser alguém muito carismático para defender, ou fica insuportável. Em ‘Cheiro do Ralo’ foi a mesma coisa, um antiherói, e coloquei o Selton Mello, que é muito carismático, no papel. Assim o espectador fica mais aberto a tentar compreender o personagem. Você pode não concordar em nada com ele, mas tem a disposição de acompanha-lo e refletir sobre a realidade dele de alguma maneira”.
Glamurama: É verdade que, durante as filmagens, a equipe passou por situações violentas da vida real no set?
Heitor Dhalia. “Sim, a realidade é bem pior do que a ficção. A gente passou por lugares bem mais violentos do que a gente mostra. É muito chapa quente o que acontece nas periferias. Sou do Recife, sei o que é lá e vi em Salvador igual. É muito punk, vivemos numa bolha e não entendemos o quanto é dramático! A gente estava filmando no forte e começou uma briga de gangues, duas facções, 60 jovens, 30 de cada lado. O pau comeu. Um menino fugiu pelo mar, o outro pulou atrás pra pegar ele. O que estava perseguindo começou a se afogar. A equipe resgatou os dois, juntos! Ficou um olhando pra cara do outro: surreal. Lá é aquele caos de verdade, uma tensão que não é alegórica como parece ser nos quadrinhos. São situações do cotidiano dessas pessoas. Era gente passando armada pelo set, um clima de ameaças assustador. São realidade muito agudas, um estado de violência desesperador, infelizmente”.
Glamurama: Na obra original acontece um estupro, que foi cortado do longa. Qual foi o motivo?
Heitor Dhalia: “Não quis tocar nesse assunto, um dos temas mais delicados que existem. O estupro estava dúbio nos quadrinhos, mas no cinema ficaria muito violento. Mostramos para algumas mulheres e veio a recomendação de tirar essa cena. Eu não quis entrar nessa discussão porque não conseguiria aborda-la de forma pertinente. A cena ia ficar muito pesada e eu não estava a fim disso. Teria uma implicação muito grande nos personagens, um tema complexo que eu não conseguiria discutir de forma satisfatória no filme, então tiramos fora”.
Glamurama: “Serra Pelada”, outro longa seu, acabou sendo exibido na Globo em formato de série. Não pensa em fazer TV?
Heitor Dhalia: “Tenho projetos de série em desenvolvimento com alguns canais, penso, sim, em fazer, só que meu lugar de origem é o cinema. Já fiz 8 longas. Estou nessa jornada e é o que mais curto fazer. Filmes têm repercussão internacional, viajam o mundo inteiro”.
Glamurama: Qual será o assunto de seu próximo filme?
Heitor Dhalia: “Filmei no ano passado e já está pronto pra sair um longa sobre uma relação de assédio entre um diretor de teatro e uma atriz. E vou fazer um sobre funk, guerra de milícias e esse novo ativismo das periferias, atualizando ‘Cidade de Deus’. Sim, tem a ver com Marielle [a vereadora do PSOL assassinada no Rio]. Ela representa essas novas periferias que surgem a partir das inclusões sociais, com muitas pessoas indo para as universidades e vivenciando esse fenômeno das redes sociais. Vamos traçar esse painel do Rio que neste exato minuto está em guerra civil aberta entre três ou quatro facções do tráfico, as dezenas de milícias, e ainda tem a intervenção militar. São vários grupos disputando o poder em um estado em ruínas. É bem triste e uma covardia com essa cidade incrível”.
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