Ela é empresária, advogada, produtora cultural e uma das principais defensoras das causas negra e feminista do país. Seja na periferia paulistana, no universo musical ou político, virou referência com sua trajetória inspiradora
por Carol Sganzerla fotos Claudio Edinger
“Ventava tanto lá em cima que a Beyoncé ia ficar com inveja”, diz Eliane, rindo, referindo-se aos cabelos esvoaçantes, uma das marcas registradas da cantora americana em seus shows. Por causa das imposições do isolamento social, a foto de capa desta edição foi regida por uma dupla surgida na quarentena: o fotógrafo Claudio Edinger e seu drone, que encontrou nossa personagem no terraço do edifício onde mora, na Vila das Belezas, zona sul da capital paulista. Foi ali, em seu apartamento, que passou os mais de 100 dias cumprindo as restrições necessárias. Trocou – ou melhor, somatizou – a agenda de empresária e produtora musical pelo gerenciamento da rotina de casa. Ela, que sempre contou com a ajuda de uma funcionária para as tarefas domésticas, passou a ficar na função 24 horas por dia. “Saía cedo e não tinha a responsabilidade de ir para o fogão fazer almoço. Não lavava uma louça havia dez anos”, conta. “De repente, me vi fazendo tudo.”
No caso de sua família, formada pelo companheiro, o rapper Mano Brown, e os filhos Jorge, 24 anos, e Domenica, 21, a demanda inclui pensar em refeições personalizadas. “Minha filha já não comia carne vermelha, mas resolveu parar de comer frango na pandemia; o Pedro Paulo não come glúten, lactose, manteiga… como que fica?”.
Abraçar as tarefas da casa nem de longe significou colocar o trabalho de lado. “As mulheres estão muito sobrecarregadas; não podemos abrir mão do profissional, em contrapartida, quem tem filhos precisa dar atenção, ensinar, manter a cabeça da criança sadia. Já os homens são fracos, desestruturados e desequilibrados, buscam o nosso ombro”, pontua. Nesse período, Eliane também estava preparando o lançamento da Yebo, marca de roupas de streetwear feminino que lança em julho ao lado da filha, Domenica, e mais duas mulheres. Teve três picos de ansiedade seguidos de tontura. “Fico ansiosa porque me cobro muito. Estou aqui, mas sei que tenho que fazer outra coisa, são quatro, cinco coisas acontecendo ao mesmo tempo.”
Ouvindo ela falar, em uma entrevista via celular, nem parece que Eliane Dias é a CEO da Boogie Naipe, produtora musical que agencia dez artistas, entre eles, os Racionais MC’s, o maior grupo de rap do país, e a recém-contratada Liniker, e que no fim do ano passado colocou de pé uma dúzia de shows da banda liderada por Mano Brown, o que exigiu a logística de rodar o país com uma trupe de mais de 50 pessoas. Como empresária do grupo ela está há sete anos e, desde então, Mano Brown decolou em carreira solo, ganhando uma indicação ao Grammy Latino 2017 pelo álbum de estreia, e fez sua primeira participação no Carnaval de Salvador em fevereiro.
O talento de Eliane não se restringe ao universo da música. Advogada por formação, ingressou na faculdade quando Jorge e Domenica tinham 6 e 2 anos, respectivamente. “Colocava um filho em cada perna e lia o Código Penal em voz alta para eles dormirem”, relembra. Trabalhou na Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, teve escritório próprio, atuou na área do direito autoral, mas passava 12 horas fora de casa e sentiu que o primogênito, entrando na adolescência, precisava de mais atenção. “Sendo filho de quem é, ele sofria muita pressão para usar drogas, por exemplo. E nada teria valor se eu o perdesse. Estudei sete anos seguidos e larguei tudo para ficar com ele. Mas foi a melhor coisa que fiz”, diz. Além da criação exemplar que deu ao casal, ela comemora o fato de ter promovido uma mudança na sua família. “Eu me formei, mudei meu pensamento e meus filhos já fizeram universidade. Já tem aí uma geração de negros com formação, com intelecto.”
Criada na periferia de São Paulo, nasceu nos fundos de um barraco e não teve a mesma criação que pôde dar a seus filhos – sua mãe tinha 16 anos à época e nenhuma condição de vida depois de ser expulsa de casa pelos avós. Morou por oito meses na rua até ser resgatada por uma tia, que as levou à casa de família onde trabalhava. Na adolescência, foi empregada doméstica e teve a sorte de cruzar com uma psicóloga que apresentou a ela os livros, abrindo novos caminhos. A vontade de cursar Direito veio justamente por “querer entender as palavras”. Eliane, no entanto, relembra seu início na faculdade. “Eu chorava porque não entendia o que um professor dizia, parecia que falava inglês. A minha leitura era tão superficial que na terceira semana de aula não conseguia entender o que significava a matéria introdução ao estudo do direito e o professor era um desembargador do Tribunal de Justiça”, diz.
Sua história de vida e as experiências que a moldaram ela divide com meninas e meninos presentes nas palestras que dá em escolas da periferia, e acabam se tornando uma referência para eles. “Só agora que vemos negras na TV, a Domenica não se enxergava em nenhum programa quando era criança. A gente teve o direito de usar o cabelo do jeito que queríamos só agora, só nos aceitamos como somos agora”, diz Eliane. “Nos EUA, eles entenderam seus direitos há mais tempo. Conforme vamos tendo consciência do nosso poder, da nossa força, as coisas vão caminhando. É tudo uma questão de cultura, de conhecimento”, conta, em uma época que as manifestações antirracistas tomaram conta das ruas no Brasil e no mundo.
Por dois anos, Eliane coordenou o programa SOS Racismo dentro da Assembleia Legislativa de São Paulo, onde acolhia denúncias de todas as ordens. Ainda que tenha recebido diferentes tipos de história e defenda as causas negras, não é qualquer pauta que ela suporta. “A cada 23 minutos tem uma mãe negra chorando seu filho, isso é desolador, é uma família que está sendo destruída. Eu não consigo nem falar dessa pauta”, desabafa, no único momento em que chora durante a conversa. “Eu não aceito essa dor e as pessoas me cobram um posicionamento.”
Eliane também faz parte da Comissão de Igualdade Racial da OAB e da Associação Nacional da Advocacia Negra. Ingressou na política como assessora parlamentar da deputada Leci Brandão e transita na classe política com desenvoltura – tem o ex-senador Eduardo Suplicy como um de seus apoiadores. “Vamos conseguir mudar alguma coisa para as mulheres, para os negros, para os gays a partir do momento em que estivermos em posição de poder. Enquanto não pudermos pegar uma caneta e assinar um documento, um projeto de lei, nada vai mudar. O poder está na caneta”, opina. Vontade não falta e ela prevê que uma hora vai acabar acontecendo. “Neste momento está muito tóxico, não tenho essa vontade. É um enfrentamento muito grande, para você ser político precisa ter um grau enorme de vaidade.”
Raio X
UMA MANIA Lutar contra o sono
HÁBITO QUE ADQUIRIU NA QUARENTENA Organizar a geladeira
MÚSICA QUE TEM OUVIDO NO REPEAT São duas: uma lembra um momento lindo na África do Sul, “Fall”, do cantor Davido; a outra, “Anjos” (pra quem tem fé), d’O Rappa
O QUE ADMIRA EM VOCÊ? Que meu desejo é uma ordem, amar e ser amada
QUAL É A SUA MAIOR EXTRAVAGÂNCIA? Skincare
SEU PERTENCE MAIS ESTIMADO O anel da profissão de advogada. Até chorei quando entrou no meu dedo
O QUE TE DEIXA DE MAU HUMOR? Qualquer coisa que acontece antes de estar duas horas acordada. Preciso de duas horas, depois de abrir os olhos, para me conectar com este universo
MULHER QUE ADMIRA Uma só não tenho. Carolina Maria de Jesus, em primeiro lugar, seguida por minha mãe, minha Ialorixá; Camila Pitanga; Djamila Ribeiro; Oprah Winfrey; Clarice Lispector; Marilena Chaui, Madonna; Dandara
TALENTO QUE GOSTARIA DE TER Saber matemática, leitura dinâmica e saber dançar
SUA MAIOR CONQUISTA? Meus filhos, Kaire Jorge, Ayomi Domenica e ter fé
QUEM SÃO SEUS HERÓIS NA VIDA REAL? São sempre heroínas. Mulheres negras mães solteiras
ONDE MAIS GOSTARIA DE MORAR? Sempre quis morar em SP. Amo viajar para sentir o prazer de voltar
SEU MAIOR ARREPENDIMENTO Ter demorado para entrar na universidade e deixar minhas coisas para depois
MOMENTO MAIS DIFÍCIL DA SUA VIDA Nascer
EM QUAIS OCASIÕES VOCÊ MENTE? Tenho preguiça de mentir. Não gosto de poupar ninguém, todos têm que aprender a lidar com as frustrações
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QUAL SUA OCUPAÇÃO FAVORITA? Amo sair sozinha, ver filmes ruins (fotografia ruim, roteiro ruim), amo ver autópsia de famosos, ler, rezar, viajar
QUAL É O SEU LEMA? “Seu desejo é uma ordem, cuidado com o que deseja”
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