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Tive a oportunidade e o privilégio de participar do 77º Festival de Cannes, considerado o mais importante festival de cinema do mundo. Um templo para os amantes do audiovisual. É por lá que costumam passar os astros e as estrelas do cinema, e os filmes selecionados para a Competição Oficial tendem a provocar muitos debates durante o ano. Muitos deles serão, inclusive, destaque no Oscar 2025.

Eu sou do interior do estado de SP, de uma pequena e charmosa cidade chamada Socorro, na Serra da Mantiqueira. Nos anos 1990, anos da minha infância, não havia uma sala de cinema no município. Lembro que, quando Titanic, de James Cameron, chegou ao Brasil, eu fui de van com uma turma assistir ao filme em Bragança Paulista, que fica a 40 minutos de distância de Socorro. Kate Winslet e Leonardo DiCaprio faziam um sucesso estrondoso e não se falava em outra coisa; tínhamos que ver o longa de qualquer jeito. Saímos baqueadas da sessão, em prantos. Eu tinha 11 anos e essa experiência foi marcante para mim. No início dos anos 2000, um empreendedor corajoso decidiu reabrir o cinema de rua de Socorro, o Cine Cavaliere Orlandi. Foram grandes momentos dentro daquela salinha pequena, com filmes que tardavam a chegar, mas que abriram meu apetite para o mundo cinematográfico. Me recordo de ter ido ao cinema com a escola ver o longa “Deus é Brasileiro”, de Cacá Diegues, e ter saído realmente fascinada com a experiência coletiva da sala e com o poder do audiovisual. Nessa época, eu já me encantava com os filmes, mas jamais imaginei trabalhar na indústria audiovisual. Algo ali, naquelas sessões no cinema de rua de Socorro, já me despertava uma paixão.

Vinte e poucos anos depois, tive o privilégio de pisar no Festival de Cannes. Desta vez, Bye Bye Brasil, de Cacá Diegues, também foi exibido restaurado no Cannes Classics. Uma feliz coincidência.

Meu namorado, ator que já teve a oportunidade de estar no Festival, já tinha me contado sobre o universo mítico de Cannes, mas eu jamais poderia imaginar que um dia estaria ali também. Graças à paixão pelo cinema, à Sinny, e à Paula Ferraz, amiga e sócia, que insistiu e me encorajou a ir, agora posso escrever um pouco sobre essa aventura.

Desde que me associei à Sinny Comunicação, há pouco mais de um ano, minha sócia falava muito sobre Cannes e insistiu até conseguir me convencer a ir para o Festival. Até que finalmente embarquei na ideia. Nos juntamos em cinco colegas jornalistas, planejamos tudo com certa antecedência para tentar reduzir os custos da viagem. Compramos as passagens aéreas, pesquisamos Airbnbs locais até encontrarmos um apartamento para locação e, de repente, voilà, estávamos juntos em Cannes, retirando nossas credenciais e comemorando os planos em grande estilo; nos preparando para duas semanas intensas, sem tempo para almoçar, pensando e discutindo sobre cinema.

Acordávamos todos os dias às 6h45 para entrar no site do Festival e reservar os ingressos para as sessões que eram destravadas online diariamente às 7h. Uma loucura, pois os bilhetes se esgotavam rapidamente, em poucos minutos. No desespero de não conseguir reservar os filmes mais disputados, era possível tentar a fila do “last minute” direto nas salas. Esse esquema costumava funcionar na maior parte das vezes, mas era preciso chegar com uma hora de antecedência para não correr riscos. A única vez em que ficamos de fora por muito pouco foi no filme do Coppola, na manhã seguinte à première, uma lástima.

Minha sorte nesse período foi estar ao lado de colegas cinéfilos que já conheciam bem o Festival e que indicavam os melhores horários, as melhores salas e, obviamente, os filmes imperdíveis.

Em 2024, 21 longas concorreram à Palma de Ouro, o prêmio máximo do Festival. Entre os selecionados, estavam Francis Ford Coppola, Sean Baker e David Cronenberg. Desses 21 filmes da competição oficial, apenas quatro eram dirigidos por mulheres: All We Imagine as Light, da indiana Payal Kapadia; Bird, da inglesa Andrea Arnold; Wild Diamond, da francesa Agathe Riedinger e The Substance, da francesa Coralie Fargeat.

O júri foi presidido pela cineasta e atriz Greta Gerwig, diretora de Barbie, recorde de bilheteria mundial em 2023.

Entre sessões de cinema, filas para ver filmes, reuniões de mercado, networking, pain au chocolat, croissants, seminários, cafés e muitas conversas sobre as obras vistas, vez ou outra encontrávamos uma estrela global. Tive a chance de tirar uma foto com o cachorro mais famoso da Croisette, o Messi, do filme Anatomia de uma Queda, que ganhou o Palm Dog em 2023. O encontro foi bastante inesperado. Estávamos saindo do Palais pela saída dos artistas e o avistamos com uma das treinadoras que havia saído para fumar. Demos sorte, pois não havia ninguém ao redor deles. Depois de pensar se valia ou não a pena pedir para tirar a foto com Messi, achamos melhor não perder a oportunidade para a posteridade…rs

Uma surpresa inesperada também aconteceu um dia quando caminhava pela orla. Entrei em um dos quiosques na praia para acompanhar um evento sobre cinema árabe e, de repente, percebi que a roda de conversa era liderada por ninguém menos que Cate Blanchett. Tive a sorte de acompanhar parte desse debate com a atriz australiana, que também é representante da ONU para o Acnur (Agência da ONU para os Refugiados), sobre as perspectivas cinematográficas do deslocamento de pessoas e as narrativas que se constroem com esse viés.

Avistei Zoe Saldanha, estrela do longa Emília Perez, de longe, posando para fotos no hotel Martinez; vi Adèle Exarchopoulos saindo do mesmo hotel para ir à première do filme Beating Hearts, de Gilles Lelouch (Competição Oficial), no qual ela interpreta uma das protagonistas.

Sempre era uma grande emoção quando esses encontros espontâneos e surpreendentes aconteciam, alguns deles até mesmo na Croisette, que é um lugar para brilhar antes das sessões diárias de gala. Looks inusitados, ousados, elegantes, sofisticados e, às vezes, até cafonas. Ali você encontra de tudo um pouco; é um local difícil de ficar entediado. Uma passarela a céu aberto. Muitas marcas apostam em modelos e famosos para usar seus modelitos nessa época do ano, irradiando brilho e chamando atenção.

Outro evento imperdível em Cannes é o Cinéma de la Plage, onde o Festival costuma montar uma estrutura para ver filmes a céu aberto com cadeiras de praia e um telão imenso. Este ano, a programação tinha nomes consagrados: Martin Scorsese, Brian De Palma, Jackie Chan e muitos outros. Uma das primeiras sessões que vimos nessa “sala ao ar livre” foi a do longa Trainspotting, restaurado em 4K. Foi como uma viagem no tempo!

Além do glamour, das celebridades, dos carros, iates e grifes de luxo, de todo o frisson e ousadia do carpete vermelho, o Festival conta também com o Marché du Film, mercado onde milhares de pessoas que trabalham na indústria se reúnem para fazer negócios, comprar, vender filmes, negociar coproduções e buscar financiamento. São centenas de estandes, representantes de vários países que buscam promover seus filmes, além de empresas do mercado. Produtores, distribuidores, cineastas, representantes de festivais, todos se juntam com o objetivo de fazer novos negócios.

O Brasil também marcou forte presença nesta edição do evento com seis filmes participantes. O cinema brasileiro, em recuperação após quatro anos de dificuldades, voltou com força, cores vibrantes, originalidade e grandes interpretações. A força de uma cinematografia nacional potente pode reverberar de tantas formas internacionalmente, criando um interesse pela cultura brasileira que incentiva e movimenta a economia criativa nacional. A Coreia do Sul nos mostrou recentemente a importância de investir no audiovisual nacional, com exemplos como Parasita e séries que viajaram o mundo.

Voltando ao Brasil, Motel Destino, de Karim Ainouz, se destacou na Competição Oficial; Baby, de Marcelo Caetano, na Semana da Crítica; A Queda do Céu, de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha, fez uma linda estreia na Quinzena dos Realizadores; e os curtas: A Menina e o Pote, de Valentina Homem (Semana da Crítica) e Amarela, de André Hayato Saito (que também concorreu à Palma de Ouro), nos encheram de orgulho.

Acompanhei a sessão de abertura de A Queda do Céu e vi Davi Kopenawa entrar na sala de cinema com Bruce Albert enquanto eram muito aplaudidos. Kopenawa falou sobre a necessidade de repensarmos nossa relação com a Terra, a necessidade de aprendermos a nos envolver com os nossos rios, florestas e montanhas. O documentário tenta reproduzir a sabedoria e a cosmologia Yanomami para além das telas!

Participei também da sessão de gala de Motel Destino e pude ver a equipe dançando com muito estilo e sintonia Aviões do Forró na entrada do Tapete Vermelho. Karim Ainouz fez o Ceará brilhar na tela. Com muito talento, ele conseguiu unir a torcida brasileira de todas as formas.

Também acompanhei a sessão de premiação da Semana da Crítica. Foi emocionante ver o ator mineiro Ricardo Teodoro recebendo o prêmio de ator revelação pelo filme Baby.

A Palma de Ouro deste ano, de acordo com os críticos experientes, foi inesperada. Anora, de Sean Baker, que muitos estão destacando como um conto de fadas do século XXI, levou o prêmio principal. O longa é divertido e comovente; a cena final é de encher os olhos de emoção. Um dos meus favoritos, certamente. Mas o Festival trouxe outros grandes destaques que surpreenderam: Emília Perez, de Jacques Audiard, um musical inusitado; Bird, de Andrea Arnold, que conta com uma narrativa envolvente e uma trilha sonora belíssima; The Substance, um suspense/terror perturbador com a estonteante Demi Moore. E teve, claro, o filme que era o favorito para ganhar a Palma de Ouro, o iraniano The Seed of the Sacred Fig, de Mohammad Rasoulof, um corajoso longa que critica abertamente o regime islâmico e usa potentes metáforas para contar uma história de empoderamento feminino.

Mas não é só de glamour que se faz o Festival de Cannes. Pelo contrário, 35 mil profissionais de diversos lugares do globo costumam frequentar o Festival todo ano, de acordo com a organização do evento. Mais de 4 mil jornalistas fazem a cobertura do evento. São pessoas de todas as nacionalidades que se reúnem para trabalhar, negociar, viver do cinema e da indústria cinematográfica e, sobretudo, sonhar.

 

Sobre Priscila Cunha de Oliveira Santos

Atualmente é sócia da Sinny Comunicação. Formada em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade de São Paulo (EACH-USP), foi produtora cultural no PONTOS MIS, programa de difusão audiovisual ligado ao Museu da Imagem e do Som, de 2014 a 2016. Atuou como produtora de lançamentos e coordenadora da distribuidora Pandora Filmes, de 2016 a 2020, além de ter trabalhado como gerente executiva no Ventre Studio durante dois anos.

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