Identidade é a palavra-chave para descrever a música popular brasileira que se produz, aos borbotões, nestes anos 2020. É evidente que há um boom de novos artistas que podem ser classificados como pertencentes à nova MPB, e se fosse possível condensar essa cena em uma só figura, certamente seria uma mulher negra, cantora e compositora, talvez a vanguardista paulista Juçara Marçal, artista veterana que vem assinando seu nome em álbuns desde 2007 e permanece moderníssima na fusão que promove entre samba, candomblé e vanguarda musical paulista. A abolição de barreiras entre gêneros musicais é outra marca dessa cena, e na nova MPB se ajustam, sem incômodos, elementos de rap, funk carioca, arrocha, piseiro, etc
Lado a lado com Juçara, num tempo dominado pela produção virtual que remove empecilhos para o auto-lançamento de novos artistas a cada dia, ergue-se uma série impressionante de emergentes cantoras-compositoras pretas. Entre elas se destacam três jovens baianas que lançaram neste ano seus álbuns de estreia, todos marcados por vozes suaves e misturas musicais entre bossa nova, rhythm’n’blues e afro-jazz: Nara Couto, com o manifesto de título autoexplicativo “Retinta” (“convoco todas as mulheres da minha cor, eu convoco as retintas”, chama a faixa-título), Rachel Reis, em “Meu Esquema”, e Agnes Nunes, com “Menina Mulher.”
Elas se somam a artistas baianas conhecidas ao longo da última década, como Luedji Luna, Xênia França, Josyara, Larissa Luz e Jadsa, que ajudam a compor uma formidável diversidade regional, com a mineira Bia Ferreira (audaz criadora da “igreja lesbiteriana”), a pernambucana Doralyce, a brasiliense Ellen Oléria, as cariocas Iza, Mahmundi e N.I.N.A, as paulistas Tasha & Tracie (irmãs gêmeas renovadoras do hip-hop), MC Tha e Badsista, a gaúcha Saskia, e assim por diante, em uma galeria que parece tender ao infinito. A prevalência feminina se complementa com a ascensão do universo trans afrofuturista, da baiana Majur, das paulistas Liniker, Linn da Quebrada e Jup do Bairro, e da paraibana Bixarte (também uma militante feroz contra a gordofobia), entre várias.
A nova black MPB conta por fim com a adesão de novas e transgressoras masculinidades, com os baianos Totô de Babalong (que estreou em 2022 com o irreverente álbum “Contém1drama”), Giovani Cidreira, Bruno Capinan e Hiran; os cariocas insurgentes Caio Prado, Jeza da Pedra, Thiago Pantaleão e Ruxell (também produtor da drag queen paulista Gloria Groove); os pernambucanos introspectivos Zé Manoel e Ivyson; o maranhense experimental Negro Leo; os modernos pós-rappers paulistas Rico Dalasam, Edgar e Martte; o delicado pernambucano Martins; os rappers Oreia (Minas Gerais), Victor Xamã (Amazonas), Zudizilla (Rio Grande do Sul), e assim por diante.
Fora dos domínios multi-identitários do chamado afrofuturismo, a figura síntese é a mineira Marina Sena, egressa do grupo pop Rosa Neon, que causou furor no ano passado com o bem-humorado álbum solo “De Primeira”. O Nordeste fala alto pelas vozes da potiguar Juliana Linhares, que apresentou “Nordeste Ficção” no ano passado (“Nordeste ficção científica/ É pobre, é seca, é criança raquítica/ Nordeste invenção política”, insurge-se a faixa-título), as pernambucanas Duda Beat e Isadora Melo, e as baianas Lívia Mattos (também acordeonista), Livia Nery e Illy. E há ainda as cariocas Ava Rocha (filha do cineasta Glauber Rocha), Alice Caymmi (neta de Dorival Caymmi), Luana Carvalho (filha da sambista Beth Carvalho), Jana Linhares, Mãeana e a amalucada Ana Frango Elétrico, as paulistas Anna Setton, Mariá Portugal, Lazúli (a cantora-compositora da banda Francisco, el Hombre) e Ana Gabriela, a gaúcha Duda Brack, a mineira Luiza Brina, a catarinense Maria Beraldo, as paraenses Aíla, Luê e Lia Sophia (nascida na Guiana Francesa), a banda feminina paranaense Mulamba…
Entre os rapazes, a figura símbolo é o carioca Chico Chico, talentoso filho de Cássia Eller, e a lista também é corpulenta: do Rio, Zé Ibarra (à frente do celebrado coletivo Bala Desejo e fazendo os shows solo de abertura da turnê de despedida de Milton Nascimento dos palcos), Rubel, Castello Branco e Cícero; de São Paulo, Tim Bernardes e seu O Terno e o pós-sertanejo gay Gabeu; do Espírito Santo, Silva; de Pernambuco, Almério; de Minas Gerais, Bemti; do Pará, Jaloo e Keila; da Bahia, Teago Oliveira (e sua banda Maglore); do Piauí para o Ceará, o endiabrado Getúlio Abelha.
A nova MPB também pode ser pop e liderar paradas de sucessos, e provas disso são o duo Anavitória (formado pela goiana Ana e pela tocantinense Vitória), o paulista Jão, o brasiliense Tiago Iorc e o pós-sertanejo gaúcho Vitor Kley. Em territórios mais ásperos, é inquestionável o poder popular dos cariocas Anitta e Xamã, da maranhense Pabllo Vittar, e do paulista Vitão.
Esse terreno é fértil para as bandas, em geral inspiradas na meiguice e no bom comportamento silvestre da Anavitória: Lagum (Minas Gerais), Gilsons (trio carioca de herdeiros de Gilberto Gil), Melim e OutroEu (Rio de Janeiro). Aqui se destacam o incrível combo potiguar Luísa e Os Alquimistas, que acaba de lançar o gostoso “Elixir”, e a paulista Filarmônica de Pasárgada, que apresentou o engajado PSSP neste 2022.
Embora os saudosistas da velha MPB nem sempre gostem de vasculhar a música brasileira do tempo presente, o cardápio das novas gerações é vasto em termos de identidade, diversidade e riqueza musical.
A matéria faz parte da nova edição da Revista J.P.
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