Baseada em pesquisas com dados alarmantes sobre a violência nas universidades brasileiras, a série “Rompendo o Silêncio” mostra histórias de personagens que sofreram abusos. Contextualizando os tipos de violência, conectando a narrativa pessoal com a situação nacional, a produção da HBO Max versa sobre trotes, violência sexual, assédio sexual, violência moral e psicológica e discriminação em cinco episódios com 60 minutos cada.
A série conta com a participação de especialistas, como a cientista política Djamila Ribeiro, o psicólogo e professor da UFSCar Antônio Zuin, a promotora de Justiça Silvia Chakian, o ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro, a professora e co-fundadora da Rede Não Cala USP Ana Flávia d’Oliveira, e do ex-ministro da educação José Goldemberg.
Em conversa com o GLMRM, Giuliano Cedroni, diretor da produção ao lado de Marina Person, comenta sobre os bastidores da série que invadiu os corredores das principais universidades do país. Ao papo!
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O que mais chocou você durante as gravações? Teve alguma curiosidade de bastidores que pode compartilhar?
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O mais chocante foi ver a quantidade e os requintes de crueldade que existem nos mais variados tipos de violência que acontecem dentro do ambiente universitário brasileiro. Em termos estatísticos, nossos campos vivem uma epidemia. Uma outra faceta que nos impressionou muito foi a coragem das alunas e alunos, e seus inúmeros coletivos feministas e/ou progressistas, em não se calarem ante tamanha violência, mesmo sofrendo recorrentes assédios, tentativas de expulsão e até ameaças anônimas de morte. Eu e Marina (Person) alternamos a maioria das diárias, mas compartilhamos a mesma equipe, o que foi muito interessante para o processo criativo. O material captado na entrevista de uma estudante que foi estuprada, por exemplo, sai diferente se a mesma foi conduzida por um diretor homem ou uma diretora mulher. E com muito respeito, usamos essa multiplicidade de olhares de forma delicada na série inteira.
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Teve algum outro documentário que te inspirou na pré-produção?
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O livro “Missoula”, de John Krakauer, mesmo autor de “Into The Wild”, foi uma referência que usei durante a fase do roteiro. Ali, aprendi que não devíamos necessariamente dar o mesmo espaço e reverência aos algozes – são as vítimas quem precisam ser mais ouvidas em um país como o Brasil. Quanto aos criminosos, suspeitos e autoridades coniventes, eles precisam ser responsabilizados. No caso do Brasil, estamos ainda em uma fase anterior onde precisamos primeiro detectá-los, pois nem isso as autoridades têm feito. É assustador o que se passa nos corredores pomposos das maiores universidades brasileiras.
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Como foi o convite para a participação da Djamila Ribeiro na obra?
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Djamila foi um nome óbvio desde o início dos trabalhos, na sala de roteiro. Sabíamos que sua tese de ‘lugar de fala’ seria necessária para a construção do tecido narrativo da série. Fora isso, ela tem uma extensa experiência do ‘viver a violência na academia brasileira’, e de diferentes formas. Quando explicamos o argumento da série, e que a HBO estava disposta a dedicar uma minutagem inédita no documentarismo brasileiro para esse tema, ela aceitou o convite na hora. Mas, igualmente importante, foi a participação de outros tantos intelectuais e professores, que se expuseram para nossas câmeras para relatar crimes cometidos dentro das mesmas instituições que pagam seus salários. Em muitos casos, ficou provado que esses crimes foram acobertados por ordens que vinham “lá de cima”.
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Você acredita que o colégio, onde o bullying começa a ser feito, é uma das raízes da violência nas universidades? Você foi vítima de algum?
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Sim e sim. Arrisco dizer que toda criança que vai para a escola sofre bullying. O que varia é o tipo, o tempo, a intensidade, e a estrutura emocional que aquela criança tem para lidar com aquela violência. No meu caso, tive minha fatia de constrangimento, agressão verbal e um ou outro soco e pontapé. Tenho vergonha em dizer que também promovi o bullying de forma verbal em outras crianças, fato que, hoje sei, trata-se de assédio moral. Me arrependo profundamente disso… As escolas são, sim, o terreno onde a violência universitária primeiro germina. Os professores, direção e pais têm responsabilidade nisso ao não encarar a questão de frente. Não é “normal” um menino espancar colegas periodicamente no ensino médio… Se isso não é crime, é certamente bastante inapropriado, e essa criança, juntamente com seus pais, deveriam sofrer algum tipo de punição da escola.
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Alguns estudantes ainda encaram a faculdade como “vencer na vida”. Acredita que a sociedade impõe esse discurso que, para ser alguém, precisamos de um diploma?
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Um dos pontos que mais me marcaram no fazer dessa série foi aprender o abismo de diferença que existe entre um jovem branco de classe média-alta receber um diploma, e um negro pobre de periferia receber o mesmo diploma. Quando uma gangue da atlética da medicina dopa e estupra uma menina negra no “cafofo de uma festinha da facu”, e a direção dessa faculdade não pune ninguém, eles não estão apenas traumatizando aquela pessoa para sempre… Se ela abandonar o curso simplesmente por não querer seguir estudando junto com seus estupradores – isso acontece mais do que imaginamos –, o crime, então, passa a impactar toda a família daquela aluna, tanto no presente como no futuro. Em muitos casos, são alunos que entraram na faculdade via cotas, ou seja, são parte da primeira geração de uma família a conseguir chegar tão longe nos estudos… E sim, nesses casos, ter um diploma de faculdade é a certeza de ter uma condição melhor de vida no âmbito financeiro, social, prático e emocional. Uma curiosidade: cursei três faculdades diferentes e não me formei em nenhuma, pois sempre precisei focar no trabalho, mas até hoje sinto algum nível de complexo de inferioridade por não ter um diploma.
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Na universidade, você passou por alguma situação delicada?
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O tradicional trote dos “bichos” já é algo bem pesado. Se as meninas são humilhadas e assediadas sexualmente, para os meninos a violência física é quase uma certeza. Lembro de ficar extremamente revoltado em saber que não havia outra alternativa a não ser deixar aqueles alunos maiores e mais velhos fazerem o que quisessem comigo durante uma semana – ou mais, caso assim o desejassem. Mas, mesmo revoltado, lá fui eu para ser humilhado e agredido nos semáforos de São Paulo. Quem defende isso como apenas um ‘ritual de passagem’ tem uma noção bastante distorcida e doentia sobre rituais. Não me atrevo a aprofundar, mas arrisco dizer que Freud explicaria em minutos. Talvez segundos.
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Como foi retratar essa série em um momento tão conturbado para a educação e o cinema brasileiros?
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A série foi criada e filmada logo antes desse governo federal tomar posse. Em nossas reuniões de pesquisa eu, Marina e equipe ficávamos perplexos com cada novo caso trazido para a mesa de roteiro. O que mais impressionava, além da intensidade da violência, era a postura negacionista dos diretores e reitores das universidades aonde o fato aconteceu. Imaginávamos que teríamos um diálogo de alto nível com essas “autoridades”. Afinal, estávamos navegando por entre as mais prestigiadas instituições do País, mas o que encontramos foi o desdém total pelos fatos, a prática horrorosa de duvidar das vítimas e não dos criminosos, e uma não tão velada política de abafamento dos casos, afinal, “um estupro poderia sujar o nome daquela faculdade para sempre…”, mas o que não poderíamos imaginar é que, apenas alguns meses depois da última diária de filmagem, veríamos essas mesmas práticas disseminadas de forma nacional através da mão pesada do governo federal. Quando o próprio presidente e seus tantos ministros defendem que devemos ter menos recursos para a Educação, quando extinguem o Ministério da Cultura e impedem o cinema independente de existir, é porque eles sabem o quão mais fácil é manipular uma sociedade ignorante. A História já provou isso inúmeras vezes, mas a tragédia irônica aqui é que nossa elite financeira não lê nem livros de história.
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Tem alguma coisa que não perguntamos e gostaria de acrescentar?
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Apesar de tudo o que vem acontecendo nesses quase três anos de distopia do ‘Brasil do Bolsonarrow’, como gosto de chamá-lo, posso afirmar que tem muita gente correta, talentosa e valente nesse nosso País. A série é dedicada a esses.
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