Você já parou para pensar que pode estar sendo autocrítica demais? É fato que essa é uma questão inerente do ser humano, assim como o pertencimento. Temos necessidade de pertencer a um grupo e nos adequamos a padrões para isso. “Somos seres gregários. Precisamos do outro – e da aceitação do outro – para sobreviver”, explica Desirée Cassado. Psicóloga, especialista em terapia comportamental, mestre em psicologia experimental e professora da The School of Life, ela analisa as alterações nas mentes das pessoas em tempos de pandemia e redes sociais: “Conviver com o feed do Instagram pode ser insuportável. Tem pessoas com ‘burnout’ por não conseguirem lidar o tempo todo com o fato de a vida dos outros ser muito mais legal que a delas”.
Somos seres gregários e precisamos do outro e da aceitação do outro para sobreviver.
J.P: Como e em que momento surgiu a autocrítica para o ser humano?
DESIRÉE CASSADO: A partir do momento em que adquirimos a capacidade de linguagem, de relacionar eventos, de comparar o passado com o futuro, de olhar para o outro e comparar com quem somos, temos o mel e o fel. O lado incrível disso é que podemos criar, prever, antecipar, construir… E o lado terrível é que somos capazes de nos compararmos o tempo inteiro. Estamos o tempo todo categorizando, hierarquizando e isso nos faz sofrer. Para piorar, somos seres gregários. Precisamos do outro – e da aceitação do outro – para sobreviver. Ao longo da nossa história como espécie só chegamos até aqui porque fomos capazes de cooperar em grupos. Isso quer dizer que a rejeição por parte do grupo sempre foi muito arriscada.
J.P: Em que momento a autocrítica e a necessidade de pertencimento se encontram?
DC: Temos um organismo que reage à solidão, à rejeição, até com dor física. Já escutei relatos de pessoas que tiveram uma perda grande, por causa de morte ou término de relacionamento, que sentiam dor física. Estudos indicam que quem se sente sozinho, morre mais cedo. Tem mais prejuízos físicos que fumantes, sedentários, obesos… Se juntarmos as pontas, vamos ver duas coisas: temos a capacidade de fazer comparação e categorizar o tempo todo, e, do outro lado, temos uma necessidade muito grande de pertencimento. Somos capazes de fazer
qualquer coisa para pertencer. Aí entra a autocrítica. É como se fosse um mecanismo
interno que vai garantindo que a gente pertença àquele grupo. Por consequência,
todos nós somos fadados a conviver com a autocrítica para o resto da vida. Por isso,
precisamos ter vários pontos de referência sobre nós mesmos, que nos lembrem de
quem somos e o que temos de melhor. Se a gente se prende à autocrítica, deixa de viver o aqui, agora. Fazer o que importa dói e causa muito desconforto, mas vale a pena para viver uma vida plena.
“Socializar é como um músculo que ficou um ano e meio sem ser exercitado. Então, temos que começar devagar a voltar com os compromissos sociais”
J.P: Os jovens sofrem mais?
DC: Temos estudos que mostram que a juventude hoje nunca esteve tão ansiosa e deprimida. E um dos aspectos complicadores é o acesso às mídias sociais e à comparação sem limites. Se antigamente a gente se comparava com a vizinha ou com a colega de escola, agora os jovens – e adultos também – se comparam com milhares de pessoas diferentes. Na palma da mão, temos acesso a pessoas com muito mais sucesso, muito mais beleza, muito mais amigos, muito mais histórias do que nós. As possibilidades são infinitas. Todos nós sofremos com isso nos dias de hoje. Adolescentes – especialmente garotas – são mais suscetíveis porque têm menos recursos emocionais para lidar com isso.
J.P: As redes sociais elevaram os índices de autocrítica?
DC: Conviver com o feed do Instagram pode ser insuportável. Tem pessoas com burnout por não conseguirem lidar o tempo todo com o fato de a vida dos outros ser muito mais legal que a delas. Nesse período da pandemia, as redes tiveram um papel importante, se transformaram na janela para o mundo, mas, por outro lado, geraram muita frustração.
J.P: Como podemos nos blindar dessa influência que nos força a ter uma meta irreal?
DC: Com duas frentes de trabalho. É superimportante termos um controle real, sensato, do acesso às mídias, que seja feito de uma maneira muito consciente. A faxina nas redes pode ajudar, eliminando perfis que disparam gatilhos, mas estudos mostram que o que conta mesmo é tempo e disposição. Uma boa estratégia seria diminuir o tempo de exposição a esse tipo de mídia. Internamente, precisamos observar que pensamentos aparecem na nossa cabeça sobre quem somos. Se descobrirmos o padrão, a forma, o momento e o jeito que eles aparecem, já vamos nos descolando da autocrítica. Também temos que entender o que perdemos quando nos concentramos nela. Quando somos paralisados pela autocrítica, deixamos de fazer coisas que são importantes. Esse é o lado perverso. É necessário saber que quando decidimos bater de frente com a autocrítica, essa atitude vai vir carregada de sofrimento. Sempre. Não é porque a gente aprende a lidar que ela desaparece. Tudo de importante que fazemos vem cheio de autocrítica. É como se tivéssemos um guardião dentro da gente para garantir o tempo todo que vamos ser aceitos pelos outros.
“Se antigamente a gente se comparava com a vizinha ou com a colega de escola, agora [com as redes sociais]nos comparamos com milhares de pessoas diferentes, com muito mais sucesso, muito mais beleza, muito mais amigos, muito mais histórias do que nós”
J.P: No ambiente de trabalho, como lidar com as inevitáveis cobranças e comparações?
DC: Nem toda autocrítica nasce com a gente. Muitas vezes, ela nasce em outro lugar e de repente se torna nossa porque estamos sendo olhados dessa forma pelos outros. Alguns ambientes são mais tóxicos que os outros. Em alguns locais de trabalho, falta tanta clareza que o feedback vem em forma de rejeição. Então, não é só sobre você saber lidar com a autocrítica, as corporações também precisam aprender que existe espaço para educar, para formar um funcionário sem rejeição, ser afetivo e impor limites, ser cuidadoso e ensinar. Por outro lado, é impossível viver em uma sociedade capitalista sem se sentir inseguro, onde realizações individuais são muito valorizadas. Sempre vai haver chefes e pessoas que vão colocar você num lugar difícil. É importante não basear o conceito de quem você é e qual valor tem só no feedback do trabalho. Seu senso de pertencimento deve estar bem distribuído entre amigos, família… É fundamental também ter clareza nas relações de trabalho. Se sentir que está sendo passado para trás ou injustiçado, exponha o sentimento. Quando a gente fala sobre o que sente acaba descobrindo que o outro também passa pela mesma coisa. Todos temos as mesmas sensações de angústia, de insegurança, só que algumas pessoas guardam para si, o que as fazem se sentir ainda mais solitárias. Também é essencial ter aliados por perto, quem não tem se torna mais vulnerável e sofre mais.
J.P: E a crítica, como recebê-la de forma positiva?
DC: Vou começar falando da pessoa que faz a crítica. Para que a crítica seja benéfica, ela tem que ser feita de uma forma construtiva. Deve estar focada em um determinado comportamento e não fazer julgamento ou ataque à pessoa. Precisa garantir que ela (a temida crítica!) e o que está acontecendo são coisas diferentes. Aí, sim, você passa a bola para a pessoa chutar para o gol. Dessa forma, evita-se o embate e o criticado provavelmente terá mais facilidade de aceitar o que está sendo dito. A crítica que te inclui como pessoa e que mistura as coisas corre o sério risco de se tornar autocrítica com o passar do tempo. Não é alguma coisa que você fez e, pode reparar, o erro se torna você!
J.P: A solidão aumentou com a pandemia, como reverter isso no pós-pandemia?
DC: Com bastante autocompaixão. Socializar é como um músculo, que ficou um ano e meio sem ser exercitado. Então, temos que começar devagar a voltar com os compromissos sociais. Temos visto uma coisa muito triste acontecendo com os adolescentes. Eles vivem uma fase vulnerável da vida e passaram todo esse tempo longe da escola, dos amigos, das festinhas… A incidência de depressão e ansiedade é enorme. E essa volta foi acompanhada de todo o tipo de dificuldade, crises de pânico, medo, fobias. Durante esse período em que ficamos em casa perdemos habilidades socioemocionais. Crianças e adolescentes chegaram a regredir em suas questões. O que temos que fazer agora é ter consciência de que problemas como esses podem acontecer, que ao sair de casa podemos sentir mais preguiça, ansiedade, insegurança a mil, e temos que ter autocompaixão para compreender esse momento. A única coisa que não deve acontecer é desistir, porque quanto mais tempo a gente paralisa diante da ansiedade, mais ansiosos ficamos. A ansiedade se alimenta da nossa paralisia, assim como a autocrítica. Meu conselho para quem está com dificuldades de voltar a socializar é… insista!
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