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TEMPO, TEMPO, TEMPO

É evidente a influência de Samuel Beckett (1906-1989) em “A Restauração das Horas”, que rendeu a Paul Harding o Pulitzer de ficção em 2010, e chega ao Brasil pela editora Nova Fronteira, agora no início de abril.

* George, protagonista desta estréia literária de Harding, é um velho homem, outrora um metódico relojoeiro, que está morrendo. Confinado a uma cama em sua sala, ele observa enquanto as paredes ao seu redor desmoronam, as janelas se soltam de sua moldura e o teto de gesso desaba em grandes blocos, soterrando-o junto aos escombros de uma vida inteira: recortes de jornais, fotografias antigas, pulôveres de lã, ferramentas enferrujadas e engrenagens distorcidas de relógios mecânicos. Em seguida, as nuvens do céu despencam sobre ele, e então as estrelas, até que a noite negra o cobre como um sudário. Essa é a sua alucinação, nos estertores da morte por câncer e insuficiência renal.

* Aos poucos o velho relojoeiro vai percebendo que o tempo se desprendeu do relógio, permitindo que ele faça uma viagem de volta a sua infância, recuperando memórias de um passado sofrido, em que foi abandonado pelo pai – um homem doente e sem rumo.

* Corta para Beckett.

* Primeira cena: “Molloy” começa com o narrador que dá nome ao livro. Por toda a primeira parte do romance acompanhamos Molloy em uma errante viagem por seu passado. Ele sabe que está na cama da mãe, no entanto não faz ideia do que faz ali ou como chegou. Suas pernas, endurecidas, já não prestam para nada. Aleijado nas pernas, ele está também aleijado nas parcas e pouco precisas lembranças que carrega consigo. Molloy não se lembra de nomes, datas, fatos; mas lembra-se de cheiros, lugares, sensações. Lembra-se também de algumas situações esparsas e peculiares.

* Segunda cena: Em “Malone Morre”, o protagonista reflete: “Logo enfim vou estar bem morto apesar de tudo. Talvez mês que vem. Vai ser abril ou maio. O ano ainda é uma criança, mil sinaizinhos me dizem. Quem sabe esteja errado, quem sabe consigo chegar até o dia da festa de são João Batista ou até mesmo o quatorze de julho, festa da liberdade. Qual o quê, sou bem capaz de durar até a transfiguração, me conheço bem, ou até a Assunção. Mas não acredito, não acho que estou errado em dizer que estas festas vão ter que passar sem mim, este ano. Tive essa sensação, faz dias que venho tendo, e acredito nela. Mas em que difere daquelas que fazem de mim gato e sapato desde que me conheço por gente? Não, esse é o tipo de armadilha em que não caio mais, meu desejo de pitoresco passou. Podia morrer hoje, se quisesse, apenas fazendo um pequeno esforço, se eu pudesse querer, se eu pudesse fazer esforço. Mas não me custa nada me deixar morrer, quietinho, sem precipitar as coisas”.

* O momento fundamental em que o indivíduo se defronta com a morte, a inércia diante de tal situação, a visita ao passado, que estão presentes nesses dois livros de Beckett, “Molloy” e “Malone Morre”, aparecem condensados na obra de Harding. Não se trata de comparar o estreante norte-americano com o irlandês, monstro sagrado do teatro do absurdo, claro que não, apesar do Pulitzer do primeiro. Mas também não se trata de dizer que Harding não foi nada original (e quem é?). Trata-se de constatar que o autor de “A Restauração das Horas” escolheu bem o seu caminho inicial.

A restauração da horas: a influência de Beckett na obra de Paul Harding é evidente, e isso é ótimo

Por Anna Lee

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