É frequentemente o caso de que as narrativas mais envolventes sejam aquelas cujos contornos misteriosos só são desvendados muito tempo após terem começado a se tecer. Especialmente intrigante é quando esse lapso temporal se estende por várias décadas, mas não o suficiente para nos remeter a um passado distante e irreconhecível. O ápice desse fascínio narrativo, a quintessência da história inesquecível, é um crime enigmático que nunca encontrou solução. E agora, parece que uma trama dessa magnitude está começando a se desenrolar diante dos olhos do público.
O pra lá de hypado Metropolitan Museum de Nova York está sendo processado há mais de um ano por uma família judia por causa do óleo sobre tela “Femmes récoltant des olives” (“Mulheres colhendo azeitonas”), de Vincent van Gogh e datado de 1889, que afirma ser seu e lhe foi roubado antes da Segunda Guerra Mundial. Tratam-se dos herdeiros da colecionadora judia Hedwig Stern, morta em 1987, que agora querem reaver o bem. Estima-se que seu valor pode superar facilmente a cifra de US$ 70 milhões (R$ 352,1 milhões).
Adquirida pelo Met em 1956 de Brooke Astor – a lendária socialite americana morta em 2007, aos 105 anos – e então vendida em segredo pelo museu em 1972, a tela desapareceu da vista pública até 2019, quando ressurgiu no catálogo de uma galeria recém-inaugurada em Atenas, na Grécia, pela colecionadora Elise Goulandris, revelando quase todos os detalhes de seu paradeiro nas décadas anteriores. Graças a isso, os parentes de Stern conseguiram reunir as peças do quebra-cabeça que resultou na ação contra o Met.
Ao pleitear o retorno do tesouro artístico, um ativo não corrente, alegando terem sido vítimas de décadas de acobertamento e mentiras, a família Stern, inadvertidamente, abriu uma verdadeira caixa de Pandora. Esse caso tem grandes chances de causar a inédita abertura dos arquivos secretos do próprio Met, uma espécie de “clube” dos muito ricos, com base no que foi relatado nos autos mais recentemente. Pintado por Van Gogh como uma das 18 criações de sua série “Oliveraies”, que produziu até pouco antes de morrer, em 1890, a disputada obra-prima foi comprada em 1935 por Hedwig, uma herdeira e esposa de médicos, da galeria Heinrich Thannhauser, em Munique.
Porém, quando Hedwig, seu marido e seus seis filhos tentaram fugir do domínio nazista na Alemanha, um ano depois, foram impedidos de levar a tela com a assinatura do artista holandês. A matriarca então ordenou que seu advogado a vendesse, junto com outra pintura de Renoir. Mas os nazistas saquearam os fundos destinados a essa transação antes de qualquer aperto de mãos. Em 1948, o filho de Thannhauser, Justin, levou o quadro da Europa para NY, logo o vendendo para Vincent Astor, marido de Brooke.
Já em 1955, a eterna rainha do high society decidiu se desfazer dele, de repente e sem dar motivos, pedindo à galeria Manhattan Knoedler & Co. para cuidar do assunto, concluído com mais uma venda. Essa aquisição foi aprovada pelo curador do Met na ocasião, por cerca de US$ 1,4 milhão (R$ 7 milhões) em valores atuais, mesmo com o nome de Knoedler figurando na ‘lista vermelha’ do Departamento de Estado dos EUA como um dos revendedores de preciosidades saqueadas dos judeus. Ninguém nunca quis saber os detalhes disso.
Os descendentes de Stern garantem que podem elucidar esse e outros mistérios relativos a outros roubos dos nazistas durante o regime de Hitler. O mercado de arte estava repleto de obras saqueadas a mando do ditador naquela época, conforme Michael Gross, autor de “Rogues’ Gallery: The Secret Story of the Lust, Lies, Greed, and Betrayals That Made the Metropolitan Museum of Art” (“Galeria de Malandros: A História Secreta da Luxúria, Mentiras, Ganância e Traições que Construíram o Museu Metropolitano de Arte”, em tradução livre), conta no best-seller de 2010.
Por fim, em 1972, alega-se que Knoedler intermediou mais uma venda sigilosa, prontamente descoberta e condenada pela Associação de Comerciantes de Arte da América. O Met, nessa parte do imbróglio, justificou a troca de propriedade para ajudar na compra de um Velázquez, mas os Stern contestam isso e estão determinados a levar os diretores da instituição símbolo da Liberdade Americana ao banco dos réus.
No panorama da arte em 2023, o que se observa é uma forte recuperação pós-pandemia, com vendas globais estimadas em US$ 67,8 bilhões (R$ 341 bilhões) no ano anterior. E justo em meio a esse resultado que a história de “A Colheita de Azeitonas”, voltou à tona. Obras de arte se tornaram tesouros disputados e não é de hoje, e o advento de ferramentas digitais, como blockchain, estão criando transparência em seu segmento pra poucos. E um em que paixão e cifras astronômicas se entrelaçam, essas peças únicas que continuam a nos desafiar e intrigar desde a Idade da Pedra Lascada.
Esse não é sequer metade do provenance em jogo. Em toda a história da arte, existem inúmeras obras de valor inestimável, que foram perdidas, saqueadas ou adquiridas sob circunstâncias duvidosas. Pinturas renascentistas desaparecidas durante as invasões napoleônicas, esculturas greco-romanas vendidas em mercados negros e relíquias egípcias extraídas durante a era colonial são apenas algumas das muitas peças que adornam os salões e corredores dos mais afortunados mundo afora. Não é apenas a sombra do Terceiro Reich que paira sobre esses tesouros, mas também as marcas de impérios passados e conquistas esquecidas.
Muitos desses magnatas, envoltos em sua aura de invencibilidade, nunca imaginaram que a tecnologia seria a possível força reveladora de suas aquisições ilícitas. Mas, em uma reviravolta digna das mais envolventes tramas de mistério, a evolução digital surge como um retrato cru, trazendo à luz os segredos escondidos nas profundezas dos cofres blindados e das salas privadas.
Assim, o que por séculos foi guardado como preciosidade oculta, agora enfrenta o escrutínio do mundo e, ao mesmo tempo, ganha ares de pièce de résistance e de caso de polícia. A arte, nesse contexto, não é apenas uma representação da beleza e da história, mas também um lembrete das complexidades éticas e morais, traços de nossa própria evolução.
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