No mundo da música, os artistas frequentemente embarcam em uma jornada criativa para expressar suas identidades únicas e explorar as profundezas de sua arte. Um desses artistas é NIWA, cujo álbum de estreia, Araponga, foi lançado recentemente pela gravadora YB Music. Com raízes nas culturas japonesa e indígena, Claudia Nishiwaki Dantas, seu nome de batismo, nos leva a uma cativante odisseia musical através dos gêneros pop, eletrônico e experimental, profundamente enraizados em sua herança brasileira.
Araponga deriva seu nome de um tipo de pássaro conhecido no Brasil por seu canto poderoso e ressonante. Apesar de seu pequeno tamanho, pesando cerca de 200g, é conhecida como uma das aves canoras mais habilidosas da Mata Atlântica. A palavra araponga deriva da língua Tupi, onde “ara” significa “pássaro” e “ponga” se traduz como “som” ou “ressoar”. O álbum explora as possibilidades e limitações de seu principal instrumento musical: sua voz.
NIWA não cativa somente como artista, mas também como professora e pesquisadora desde 2015. Ela percebeu que a educação musical convencional e os métodos de ensino muitas vezes se concentram em estilos estéticos específicos enraizados em influências culturais dominantes, como Europa e Estados Unidos. Essa percepção a levou a embarcar em uma jornada pessoal de exploração, ampliando os limites do timbre vocal, dinâmicas, texturas, ritmos e intenções. Ao expandir as possibilidades criativas deste instrumento complexo, mostra os infinitos domínios da expressão vocal.
“Quando tive a ideia de fazer um álbum eletrônico pop, imaginei exatamente que gostaria que as reflexões e mensagens acerca de assuntos envolvendo diferentes grupos étnicos e culturais chegasse a lugares além dos designados ao “folclore” (inclusive criticando o uso do termo, já que carrega de certa forma o esvaziamento das espiritualidades, apagamento dos protagonistas das narrativas e dos reais significados das coisas)”, explica a cantora ao GLMRM.
O álbum traz dez faixas hipnotizantes, cada uma oferecendo uma perspectiva única sobre identidade, raça e as fronteiras difusas entre diferentes camadas étnicas. NIWA mergulha nas complexidades da racialização, destacando a natureza lenta e ambígua do processo, especialmente para alguém de herança mista. As faixas fornecem uma lente através da qual examina sua própria vida e experiências como uma pessoa mestiça. Cada composição contribui para uma narrativa profunda, convidando os ouvintes para seu envolvente mundo sonoro.
“Falo dos aspectos do que é ser uma pessoa mestiça, desde a indignação e a raiva, até as quebras dos paradigmas, a possibilidade de uma autocompreensão e aceitação, e aí, então, se abrir para o mundo, para as comunidades e para os afetos”.
Confira o nosso papo completo com NIWA:
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Quais foram suas principais inspirações durante o processo de criação de Araponga? E como você relaciona o canto da araponga com sua proposta musical?
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Eu sempre fui do tipo que “come quieta”, além de ser conhecida por ser uma pessoa super calma. Em algum momento eu percebi que uma boa parte disso tinha a ver com ter medo de “soltar meus monstros” e ser desagradável, ou não ser aceita pelas pessoas. Em algum momento também percebi que uma boa parte desse auto-julgamento na verdade era resultado de uma experiência de vida carregada pelo machismo e pelo racismo da forma mais velada possível, já que sou mestiça. Pra mim o canto da araponga é um canto poderoso que se faz percebido sem alarde, simplesmente sendo o que ele é – que é como, a partir dessas reflexões, eu entendi pra onde queria ir e o que eu queria dizer com o meu canto.
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No álbum você explora as possibilidades e limites da voz como instrumento musical. Como você descreveria essa exploração e quais foram os principais desafios enfrentados?
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A voz é um instrumento que tipicamente ocupa um lugar específico na canção e no momento que comecei a produzir as músicas sozinha na minha casa entendi que meu instrumento era capaz de muitas outras possibilidades. Durante o processo de pesquisas sonoras e maneiras de conceber todas as minhas ideias, percebi que nenhum instrumento seria melhor para falar sobre minha própria narrativa como mestiça do que minha própria voz (e a voz dos meus ancestrais através dela). Comecei a construir as canções todas baseando-me em timbres eletrônicos e camadas de vozes criando harmonias, ambiências, brincando com timbres, volumes e tessituras diferentes. O grande desafio é que a execução disso não é fácil, eu realmente precisei estudar bastante em nível atlético mesmo pra conseguir fazer tudo que eu estava imaginando de um jeito fácil, ágil e confortável.
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A música “Urutau” foi a primeira canção composta para o álbum e fala sobre sua identidade e a forma como é percebida. Qual o significado dessa música e como ela representa sua narrativa como mestiça?
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Urutau é uma ave misteriosa. Seu canto pode ser facilmente confundido com o som de um fantasma, além de sua penugem se fundir perfeitamente com um toco de árvore. É um animal ambíguo e raramente notado, a não ser pelo seu canto. As analogias com os pássaros sempre vieram com essa ideia de associar o cantar a algo além. Quando resolvi falar sobre assuntos mais específicos da minha própria vivência, acabei entendendo que precisava refletir sobre o que eu sou e como as pessoas me veem. Em “Urutau” reflito sobre o não-lugar da mestiçagem, falando sobre como não sou reconhecida, mas através das minhas músicas posso dizer pro mundo quem eu sou, evidenciando a força que há em pertencer, afirmar e não legitimar as imposições feitas pela sociedade branca patriarcal, flutuando naquilo que escapa à classificação. Sendo uma pessoa mestiça, o processo de racialização é algo lento, ambíguo e o racismo é extremamente velado. Foi algo que só me senti à vontade e com alguma propriedade para falar sobre depois de 2020, com 24 anos, e “Urutau” abriu esses caminhos.
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Como a pesquisa sobre a musicalidade de seus ancestrais, tanto japoneses quanto paraenses, influenciou a concepção do álbum e a forma como você explorou sua própria narrativa por meio da voz?
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Eu estudei música formalmente, sou formada e pós graduada em canção e também canto no coral jovem do estado, onde flutuamos por um repertório que vai de Beethoven e Bach a Michael Jackson. Aprendi muito com meus professores, mas também me deparei com metodologias de ensino colonizadoras baseadas em regras e estéticas musicais que tem muito pouco a ver com o que se vive na prática aqui no Brasil, o que foi muito frustrante. Nesse processo todo relembrei que o que de fato me formou, que me deu bons ouvidos, boa afinação, musicalidade e uma voz livre e expressiva foram as experiências musicais que tive próximas à minha família, minhas tias e minhas avós, que construíram minha infância. Comecei a entender que o aprendizado e o fazer música estão imprescindivelmente associados aos afetos. Entendi então que não poderia falar sobre mim mesma e nem da minha voz sem falar sobre meus ancestrais. O mais natural em uma sociedade colonizada é que toda cultura que não seja a do colonizador seja erradicada, então essa busca dentro da própria família se torna um trabalho quase arqueológico.