Sexta-feira. 21 de janeiro de 2000. Gildásia dos Santos e Santos lê a manchete do jornal da Igreja Universal do Reino de Deus quando tem um ataque cardíaco fulminante. A manchete do jornal trazia estampado, com uma tarja preta no rosto da própria Gildásia, “Macumbeiros charlatões lesam a vida e o bolso de clientes”. Mais conhecida como yalorixá Mãe Gilda de Ogum, ela já carregava consigo naquele momento a dor ter visto seu terreiro, em Salvador, invadido e depredado por fanáticos da mesma igreja no ano anterior. O problema que já era gritante no Brasil, e a morte da yalorixá foi o alerta para que a Assembleia Espiritual Nacional instituir o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa em 21 de Janeiro, para que o primeiro mês de cada ano, sirva sempre de alerta para a luta contra que é uma das mais urgentes dos nossos tempos e está longe de acabar.
Entre janeiro de 2015 e o primeiro semestre de 2017, houve uma denúncia de ataque a cada 15 horas, segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos (MDH) divulgados na época. De lá pra cá, os números de ataques só aumentaram, sendo 80% deles contra religiões de matrizes africanas. “Registros indicam mais de 200 terreiros atacados por ano, o que dá uma média de mais de um terreiro destruído a cada dois dias. Imaginem o que estaria acontecendo no Brasil se a cada dois dias uma igreja, uma sinagoga, uma mesquita, fossem depredadas?”, questionou escritor e babalaô no culto de Ifá Luiz Antônio Simas, nesta sexta-feira em seu perfil do Twitter. O apontamento de Simas reafirma a importância de tratar o tema como racismo religioso no Brasil.
Coordenador e Professor do Instituto Ilê Ará SP – Instituto Livre de Estudos Avançados em Religiões Afro-brasileiras, Bábàlòrìṣà e Autor do livro “Intolerância Religiosa”, Sidnei Nogueira aponta que o problema está ligado principalmente à ignorância deliberada e de não querer conhecer a realidade e a religião do outro, assim como a hierarquização cultural quando se assume que a do outro é inferior a sua e, por isso, não merece nem mesmo o respeito. E porque esses comportamentos estão ligados ao racismo? “É o projeto de poder das religiões hegemônicas que usam a demonização das doutrinas de matrizes africanas para vender a salvação, a teologia da prosperidade e a salvação”, explica ao apontar que o principal elemento antagônico utilizado é a imagem do demônio. “Essas religiões associam o demônio ao negro, as religiões de matrizes africanas, as coisas pretas no Brasil. Essa é a manifestação do racismo religioso”, diz.
A pauta antirracista nunca esteve tão em alta no Brasil como agora. E se estamos tão dispostos a postar telas pretas e frases de efeito no Instagram como prova de indignação e solidariedade à luta, porque ainda é tão difícil entender que a religião – assim como a cultura – é parte essencial e fundamental de cada indivíduo e deve ser respeitada? O primeiro passo para a mudança significativa é o respeito à diversidade em todas as suas formas, assim como a individualidade. “As pessoas precisam ouvir a verdade sobre nós da nossa boca. Existe bondade, ética, solidariedade, reciprocidade, organização fora da cristandade.”, argumenta Sidnei, que criou o projeto “Nós falaremos por nós”, para que as pessoas possam conhecer mais sobre a verdade das religiões de origem africana. E como Simas aponta em sua postagem, “ninguém precisa professar fé alguma para defender o direito das comunidades de terreiro. Basta ter apreço pela liberdade”.
A importância do Estado laico
O pensamento antissemita, sentimento de ódio direcionado aos povos hebraicos, como os judeus, pode ser apontado como um dos primeiros registros de intolerância religiosa. Assim como o início da era cristã, quando os adeptos do cristianismo foram perseguidos e mortos e a Igreja Católica, por sua vez, no auge de seu poder, também perseguiu, condenou e matou hereges, entre eles, os adeptos de outras crenças. Religião e Estado sempre andaram juntas, mas a importância do Estado laico está centrada no fato de que a liberdade religiosa é um direito humano fundamental que deve ser garantido.
A pesar de ser um país laico, o Brasil vive uma era política guiada pela religião. A grande questão, aponta Sidnei Nogueira, é o modo como o cenário político a tem transformado em um painel de conversão de massa religiosa. “Os políticos brasileiros descobriram a vulnerabilidade religiosa, espiritual e econômica do povo e começaram a usar a favor do ganho próprio. Ao se autodeclarar religioso e usar isso como ferramenta política, eles se colocam na posição de Messias, de salvadores e isso, em uma certa medida, enfraquece o papel político do Estado e até o papel do próprio homem público, que começa a se esquivar do seu papel de transformação social, de produção de mobilidade e igualdade social, e passa a terceirizar isso para Deus”, finaliza.