Antes das cotas raciais serem garantidas por lei e da comoção em torno da morte de George Floyd despertar a urgência da luta antirracista, José Vicente já atuava pela presença negra no ensino superior e no mercado de trabalho. Fundador e reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, ele é central na história do protagonismo negro no Brasil
por Carol Sganzerla fotos Roberto Setton
Nascido em Marília, no interior paulista, em uma família de seis filhos sustentada pela mãe boia- -fria, José Vicente foi criado na lavoura, estudou em colégio agrícola, tornou-se soldado da Polícia Militar, estudou Direito, atuou como advogado. O apreço pelas questões sociais e a curiosidade depois o levariam às classes de sociologia. Lá, encontrou seu tema: o problema da ausência negra no ensino superior. Vicente iniciava assim uma trajetória de luta pelo protagonismo das minorias, que culminou em 2004 na criação da Zumbi dos Palmares, universidade que facilita a inclusão do jovem negro na sociedade. Isso aconteceu oito anos antes de ser instaurada a Lei de Cotas, que garantiria o acesso dos estudantes negros e de baixa renda às universidades. Referência na luta antirracista, aos 60 anos o reitor é um dos idealizadores do Movimento AR – Vidas Negras Importam, lançado um mês após o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos. No manifesto de criação, há reivindicações para o combate ao racismo, como o fortalecimento das políticas afirmativas para a universidade e concursos públicos, a mudança nos protocolos policiais e a promoção da diversidade racial em 300 empresas. Nesta entrevista a PODER, ele explica sua trajetória, reforça a necessidade de combater o racismo estrutural nas empresas e celebra a criação dos programas de trainees exclusivos para negros do Magalu e da Bayer.
PODER: COMO COMEÇA SUA HISTÓRIA?
JOSÉ VICENTE: Cresci acompanhando minha mãe e meus cinco irmãos na lavoura, meu pai já era falecido. Nossa rotina era acordar às 3 da manhã para pegar o caminhão, voltar às 6 da tarde, jantar e dormir em um quartinho. Um dia minha mãe não teve mais condições de manter os filhos e nos distribuiu para cada irmão. Fui morar em Tupã, com um tio que cuidava com muito zelo da minha educação. Ao retornar aos 8 anos, e começar a vender limão e paçoquinha para ajudar em casa, conheci uma professora que estimulou meu interesse pela leitura. Passei a gostar de ler revistas e gibis de bangue-bangue americano. Aos 12, fui para um internato agrícola e ampliei meu conhecimento de mundo. Crescido, me inscrevi para soldado da PM, o salário era o triplo de qualquer cidadão médio de Marília. Depois, vim para São Paulo, passei na faculdade de Direito em Guarulhos e pedi baixa já como sargento para advogar na Justiça Militar. Aí descobri a Escola de Sociologia e Política e me apaixonei, discutia-se ali a situação do negro, e caiu a minha ficha. Fui ler a história, descobri como foi nos Estados Unidos, na África, na França.
PODER: HÁ 15 ANOS, O SENHOR AJUDOU A FUNDAR A ZUMBI DOS PALMARES. QUAL ERA O CENÁRIO NAQUELA ÉPOCA?
JV: A grande questão era a não presença do negro no ensino superior. Estava no fim do curso de sociologia e alguém deu a ideia de construir uma universidade “igual às dos negros americanos”. Criamos depois um curso preparatório para jovens entrarem na USP, os negros eram apenas 3% de estudantes e havia apenas um professor negro. O que parecia maluquice foi o primeiro embrião deste trabalho.
PODER: QUAL FOI O PASSO SEGUINTE?
JV: Criamos a Afrobras (Sociedade Afrobrasileira de Desenvolvimento Sócio Cultural) e, em 1998, nasceu o projeto Mais Negros nas Universidades. Em dado momento, tínhamos mil jovens bolsistas em mais de 30 universidades da cidade de São Paulo e, assim, veio o insight: e se nós montarmos uma universidade? Como hoje, na época temas como discriminação e exclusão do negro estavam em ebulição, a ONU estava estruturando a Conferência de Durban, na África do Sul, para discutir o racismo. A resposta foi a criação da Zumbi dos Palmares. A unive0rsidade é a primeira realização do negro na história do país que antecede as cotas e que se constitui como uma tentativa de responder ao tamanho da iniquidade daquela época. Éramos, 20 anos atrás, 5%, 6% dos 8 milhões de universitários no Brasil. Hoje, esse número está na casa dos 30% por conta das cotas e das ações afirmativas Com as cotas nas universidades públicas, ProUni e bolsas nas universidades privadas, ao fim de cinco anos houve um salto significativo. Hoje, devemos ter em formação perto de 1 milhão de jovens negros frente aos 100 mil de duas décadas atrás.
PODER: QUAL A IMPORTÂNCIA DA LEI DAS COTAS RACIAIS NESSE PROCESSO?
JV: Tem papel significativo, seja de didatismo, seja de persuasão. Quando foi instalada a primeira cota na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a Uerj, houve 500 mandados de segurança contrários. O governo era do [Anthony] Garotinho, ele manteve a posição, o Tribunal de Justiça do Rio indeferiu, e o Supremo mais tarde julgou o tema constitucional. Depois, todas as universidades públicas do Brasil instalaram as cotas. A lei é uma ferramenta muito importante.
PODER: O QUE FALTA PARA A INSERÇÃO DE NEGROS NAS EMPRESAS?
JV: O ambiente corporativo precisa dar um salto civilizatório, ele está preso a uma mentalidade do século passado. Que é: aos superiores pode e cabe tudo, aos inferiores, o que for possível. É preciso eliminar esse tipo de chip geracional para virarmos a página da história. Precisamos construir o novo, e nele não cabe inferior e superior.
PODER: QUAL A IMPORTÂNCIA DO EPISÓDIO GEORGE FLOYD PARA ESSA CONSTRUÇÃO?
JV: Quando tiramos o Floyd, vemos o que era ser negro há 20 anos. Muitos Floyds inspiraram as mudanças que estão aí, o que faltava era uma catarse coletiva. Então, sim, acho que juntou o que estava sendo feito nos morros cariocas, em Paraisópolis, o movimento que resiste perante a polícia, que denuncia, que briga com as empresas e que, agora, está fortalecido. O Floyd colocou todo mundo na parede, ficou claro que esse tipo de atitude [violência policial] não é mais tolerável, e a sociedade e os governantes vão ter de construir o novo. Estou muito feliz com o apoio que o Movimento AR teve de formadores de opinião e empresas, dizendo que era preciso tirar o joelho para que todos pudessem respirar livremente.
PODER: NA SUA OPINIÃO, QUAL É A IMPORTÂNCIA DE UMA UNIVERSIDADE QUE POSSIBILITA A JOVENS NEGROS ENTRAR NO MERCADO DE TRABALHO?
JV: Pegando a referência dos EUA, de 150 universidades públicas e privadas específicas para os negros na sua origem e que hoje são instituições abertas, a Zumbi dos Palmares é a primeira e única da história do Brasil e da América Latina. Some-se a isso o fato de ser a primeira e única do Brasil e da América Latina construída por negros, gerida por negros e que recepciona negros e não negros e que busca a valorização e o fortalecimento do jovem negro e do tema negro. Houve antes muitas situações em que se pretendeu criar um espaço dessa natureza, como a Frente Negra Brasileira, movimento político importante já em 1930, que criou um embrião. Naquele tempo, e mesmo no tempo que se seguiu à Abolição da Escravatura, já havia essa ideia de que a educação era uma ferramenta, um bem indispensável para que os negros pudessem trilhar o seu caminho no futuro da história do país. Dizia-se até então que o lugar do negro no Brasil nos espaços sociais era no futebol e no samba. A Zumbi serviu para provocar inflexões e reflexões, e produzir consensos necessários para as ações afirmativas.
PODER: COMO A EXPERIÊNCIA DAS UNIVERSIDADES NEGRAS AMERICANAS AJUDARAM NA CONDUÇÃO DA ZUMBI DOS PALMARES?
JV: Vi lá o quanto elas foram indispensáveis para que hoje os EUA tivessem uma quantidade de cérebros negros fantásticos. Quando você conhece o histórico dessas instituições, vê que passaram personalidades como Martin Luther King, Oprah Winfrey, Colin Powell. Elas nos estimularam a construir uma realidade parecida no Brasil, para que aqui os jovens negros pudessem ter uma instituição que valorizasse sua história, o seu pertencimento, a sua cultura e muitos dos seus costumes. As universidades negras americanas serviram como um farol de encaminhamento e como estímulo para que nós não desistíssemos da nossa utopia.
PODER: QUAIS SÃO AS LIDERANÇAS QUE VOCÊ ADMIRA?
JV: Sou fã de Barack Obama, ele é uma referência. Do ponto de vista simbólico, histórico, da resistência, da superação e da ambição. Imagina, ele queria ser presidente dos EUA, foi lá e levou. Gosto muito do presidente Lula, no que diz respeito a essa persistência, a essa crença. Admiro muito a Benedita da Silva, porque ela é o avesso de tudo que estamos falando. É uma mulher negra, favelada, num país com esse olhar discriminatório. Uma mulher que acredita nos seus sonhos e mantém uma reputação ilibada, e que de forma corajosa tem estado em todos os ambientes defendendo a mesma postura. Evangélica, foi vereadora, deputada, governadora, ministra, senadora e sua trajetória demonstra o quanto o sonho pode se tornar realidade sem fazer concessões de valores civilizatórios, éticos e morais.
PODER: O QUE ACHA DA CRIAÇÃO DE PROGRAMAS DE TRAINEES PARA NEGROS, COMO OS ANUNCIADOS PELO MAGALU E BAYER?
JV: É fabuloso. O programa da Bayer contempla salário de R$ 7 mil, curso de inglês, viagem internacional. A Vivo também abriu 30% de vagas para negros. Antes, era tabu falar disso, discutíamos na sociologia anúncios de jornal que diziam “exigimos boa aparência”. Era a mensagem subliminar para “no black”.
PODER: POR QUE AÇÕES AFIRMATIVAS GERAM POLÊMICA?
JV: Os cargos de trainee são preparatórios para os postos de comando, deles sairão os futuros diretores e presidentes, que têm as melhores remunerações. É natural que aqueles que sempre tiveram o monopólio desses espaços tentem desqualificar a medida. É uma manifestação muito latente do racismo estrutural. A primeira reação dessas pessoas é tentar construir argumentos contra essas medidas. Mas a legislação nacional exige o combate às desigualdades. Na magistratura há 20% de vagas para negros, e segundo manifestação do presidente do STF, Luiz Fux, serão 30% de vagas exclusivas para estagiários negros.
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