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Com discurso afiado sobre as questões urgentes e relevantes do país, o rapper Emicida faz seu conhecimento ecoar cada vez mais longe sem perder a simplicidade e o humor

por Luciana Franca fotos Maurício Nahas styling Marina Santa Helena

É possível passar horas e horas ouvindo Emicida, e não estamos falando apenas de suas músicas. O rapper de 35 anos virou a grande voz da atualidade. É com coerência e muito conhecimento que ele discorre sobre racismo, violência, política, descaso com o meio ambiente e até memes. Criado na periferia paulistana, conta que a mãe, a artista plástica D. Jacira, que pinta, borda, tece e escreve, foi seu maior incentivo para a leitura; a televisão, sua primeira professora de arte por causa dos desenhos japoneses que assistia, e o hip-hop deu estofo para questionar o mundo.

Quando soube que Bill Gates lê 150 páginas por hora, decidiu fazer um teste psicológico e descobriu que tem uma capacidade de retenção de conteúdo “absurda”, de 92%. Por isso, consegue ler oito livros ao mesmo tempo e guardar quase toda a informação que passa por ele. Mas, além disso, tem a provocação humana, a empatia que o faz estar sempre aberto para ouvir o outro. Assim, Leandro Roque de Oliveira, seu nome no RG, constrói pontes com todo tipo de gente. E quer fortalecer com os mais novos. Foi em uma noite insone durante uma viagem ao Vietnã com as filhas, Estela, de 10 anos, e Teresa, de 2, e a mulher, Marina Santa Helena, que escreveu seu segundo livro infantil, E Foi Assim que Eu e a Escuridão Ficamos Amigas (Companhia das Letrinhas). E matutando sobre o medo das crianças, ele revela o seu: “É chegar no futuro e deixar de ver sentido na quantidade de coisa que fiz. Acho que isso iria produzir um esvaziamento no meu coração de uma maneira que eu não ia ver um motivo para viver”. A convite da J.P, Luiza Helena Trajano, Sidarta Ribeiro e Fábio Porchat colocam Emicida para refletir.

Luiza Helena Trajano, presidente do Conselho de Administração do Magazine Luiza e do Grupo Mulheres do Brasil

Luiza: Como a música pode mudar a realidade e ajudar na educação do jovem na periferia?
Emicida: Temos exemplos práticos disso, e me considero um deles. O estofo intelectual que me forma, o que me faz ver o mundo da forma como eu vejo, é justamente um esforço coletivo, colaborativo do que chamamos no Brasil de movimentos negros. Então, a gente vai pegar movimentos na engenharia, na literatura, no próprio ativismo, que é a face que mais visualizamos hoje, e entender que essa construção de energia coletiva, de solidariedade, se dá desde o momento em que as pessoas passaram a ser sequestradas na África, trazidas para o Brasil contra sua vontade, e elas vão elaborando maneiras de se conectar aqui, neste mundo novo. Falo isso porque, na minha cabeça, tem uma associação muito direta entre as irmandades religiosas dos séculos 17, 18, aí a gente vai chegar em algumas frentes políticas, como a Frente Negra Brasileira, e acho interessante pensar também que as escolas de samba nascem nesse mesmo contexto.

Gosto de pontuar as escolas de samba e as irmandades religiosas porque ambas eram espaço de música. Além disso, quando a gente avança um pouco mais para frente, no século passado, anos 1940, 1950, 1960, falamos do Aristocrata Clube, que foi um espaço muito importante [ para os negros ] em São Paulo, inclusive é uma história que deveria ser mais revisitada ao falar sobre a formação da cidade, muita gente não sabe que até os anos 1970 as pessoas pretas não podiam entrar na piscina nos clubes de divertimento. Quando a gente se refere à opressão e exclusão institucionalizadas parece que elas estão restritas há um século, mas não, até 1970. Parece que o Clube Tietê faliu sem mudar esse tipo de coisa e por isso foi simbólico quando reabriu na gestão do [Fernando] Haddad e trouxeram o Public Enemy para tocar, um clube que foi tão excludente reabre homenageando aquelas pessoas que não puderam desfrutar dele nos tempos áureos.

Falo disso porque a pergunta passa por essa questão da força da música e gosto de colocá-la neste lugar, que aglutina e constrói, porque a gente vai das irmandades para as escolas de samba, das escolas de samba para os bailes, dos bailes para as posses do hip-hop, que são organizações de bairro, em que os jovens se juntam para restaurar uma praça, dar aula de break dance, ensinar as pessoas a estudarem para o vestibular, entre outras coisas, tudo permeado pela música, e essas construções vão desaguar numa figura como Emicida, sou fruto desse tipo de construção. Seu bairro é violento, cercado por um monte de coisas que não deveriam estar ao redor de uma criança, mas essas pessoas, através do ensinamento que elas também adquiriram tanto no hip-hop quanto neste esforço de solidariedade dos movimentos, foram lá, pegaram a gente pela mão e deram livro para a gente ler, ensinaram a gente a ver o mundo de uma maneira diferente. Então, acho que a música tem o papel de construir essa ponte, e, principalmente, ela constrói em lugares onde é pouco esperado que esse tipo de transformação surja, infelizmente. A música não pode ser vista como um detalhe, ela precisa ser vista como uma questão fundamental; a cultura tem um papel central na nossa visão, no nosso sonho do que este país deve ser.

Luiza: A música tem um papel fundamental no combate ao racismo, como ela pode ajudar a quebrar o racismo estrutural da sociedade?
Emicida: Penso que a música faz duas coisas no nosso tempo, aqui e agora; a primeira é contar essas histórias que provocam a gente, estou falando do rap, sou uma pessoa que fica imersa ouvindo rap, minhas filhas falam pra caramba porque ouvem rap. Sabia que tem uma estatística que diz que o rap usa 2.000% de palavras a mais do que qualquer outro gênero? A música, partindo do rap, provoca a gente a pensar não só em como o mundo é, mas como deveria ser, isso é maravilhoso. A história por si só, por mais envolvente que seja, não é suficiente, precisamos ter exemplos ao longo da nossa vida para que as pessoas entendam que aquilo é possível. Pego minha história como metáfora, essa ascensão gerada pela música precisa construir uma realidade que faz as pessoas olharem, absorverem e dizerem: “Esse caminho é possível”. Não é só uma forma de entretenimento vaidoso, não é um movimento estético, é uma maneira de sugerir que a gente olhava e se relacionava com o mundo de uma forma obsoleta. Agora existem novas possibilidades de resistência e a música sugere isso, ela dá a história e dá o exemplo. A gente precisa ser sensível, inteligente e comprometido em uma intensidade tamanha para que consiga conectar todas essas três coisas e construir a sociedade que desejamos viver.

“Emicida é a prova que a periferia das cidades pode gerar inteligência e cultura, vencendo todas as dificuldades e preconceitos, e a esperança é que pessoas como ele sirvam de exemplo às crianças e adolescentes”, Luiza Trajano

Sidarta Ribeiro, neurocientista

Sidarta: O que precisamos fazer coletivamente para superar de uma vez por todas o legado da escravidão, da supremacia branca e do patriarcado?
Emicida: O primeiro passo é a gente ficar profundamente constrangido com a desigualdade que é produzida por essa estrutura patriarcal, branca. Várias vezes as discussões alcançam esse ponto do constrangimento, mas elas se perdem no passo seguinte porque, muitas vezes, lutar contra isso também é frustrante; essa frustração nos deixa agressivos e a discussão começa a ficar desencontrada, cada um quer sugerir uma solução a partir de seu ponto de vista. Precisamos converter esse constrangimento profundo em uma energia, mergulharmos nessa profundidade, achar o pré-sal ali e converter em energia para mover a gente na direção de alguma coisa que dê um orgulho proporcional a esse constrangimento, quando não maior. Sabe quando seu filho chega com nota ruim no boletim e você precisa usar esse constrangimento como uma mola propulsora que o coloque na direção do conhecimento? Aí o boletim em si acaba virando um detalhe no meio da história, na verdade o que você quer é que seu filho absorva o conhecimento. É por isso que temos uma trajetória muito longa a ser percorrida.

O caminho que precisamos percorrer para ser a humanidade que sonhamos, superar a opressão de raça, de classe e de gênero, é urgente, mas não é o fim, é a parte mais fácil do processo. O desafio é o que vem depois, envolver todo mundo em uma forma de existir que considere o Sol como centro, a Terra como casa e o ser humano como morador passageiro, que é parte da natureza, mas não é dono dela. Depois que a gente conseguir um consenso enquanto raça humana, ou chegar mais próximo disso, teremos um grande desafio que é a manutenção dessa nave azul que todo mundo está habitando.

Sidarta: O Brasil foi sequestrado por pessoas que se declaram cristãs, mas praticam violência e exclusão. Como lidar com esse farisaísmo miliciano que ameaça destruir nossos melhores valores?
Emicida: Minha mãe tem um poder de síntese absurdo, às vezes as pessoas estão fazendo uma superelaboração para falar sobre os defeitos de quem está praticando o mal e ela faz um resumo simples e objetivo: “Isso aí é um monte de safado”. Às vezes, a gente oscila, fica orbitando em torno desse tipo de palavra, com uma nobreza intelectual para descrever determinada situação, mas a gente precisava ser curto e grosso: isso aí é um monte de safado. Essa questão é central neste momento, acho que o que empurra as pessoas para o lugar de endeusar esse tipo de pensamento, e aqui também estou falando de pessoas bem-intencionadas que caem nesse conto do vigário, é o medo. O medo tem força para nos aproximar do egoísmo. Vivemos em situação confortável, com tempo para a reflexão, para se debruçar em cima de questões complexas que vão além de se tenho um teto em cima da minha cabeça hoje, se vou ter a minha próxima refeição hoje, essas não são nossas questões, essas são questões de outras pessoas, infelizmente de muitas pessoas ainda no nosso tempo, mas debruçamos em cima dessas questões numa situação bastante confortável e, ainda assim, não conseguimos ter uma resposta definitiva a respeito de como as coisas deveriam ser, uma resposta pragmática que diga: precisamos ir por aqui ou por ali. Então, imagina quem vive no extremo oposto dessa situação que a gente está, sem tempo para pensar.

Acho que essas pessoas que estão amedrontadas também estão frustradas, aí, mano, o egoísmo vem potencializado pelo medo. E esse simplismo acaba conquistando as pessoas, a passionalidade começa a dar as cartas. Mas o que acho da hora na associação do Sidarta é considerar essa situação partindo da lógica do cristianismo porque o cristianismo significa amor, Deus é amor, amar ao outro como a ti mesmo, essa é a essência; talvez seja a coisa que mais aprendi com o pastor Henrique Vieira, que mais repliquei nos últimos anos. Quando a gente pensa que Deus é amor, cristianismo é amor, a primeira pergunta que se precisa fazer é: quem matou Jesus Cristo? Quem matou foi um cidadão de bem. Então, precisamos ter muito receio com todos esses moralistinhas que acreditam que são a bússola dos tempos difíceis porque eles não são. Em geral, esses caras tendem a ser como o flautista de Hamelin, que chega prometendo livrar a cidade dos ratos e, no fim das contas, é um safado que leva embora todas as crianças. É nesse lugar que precisamos colocar essas pessoas e não ter receio em apontar o dedo para eles e dizer: “Vocês são todos um bando de safados!”.

“Emicida é um músico brilhante, um mestre do improviso com papel essencial na emancipação cultural e política do povo brasileiro”, Sidarta Ribeiro

Fábio Porchat, humorista e apresentador

Fábio: O que te faz rir de verdade?
Emicida: Meme! Tenho que controlar o tempo para não passar o dia inteiro vendo meme. E agora estou viciado em stand-up comedy de novo, no YouTube e na Netflix, gosto demais do David Chappelle, do Thiago Ventura, do Afonso (Padilha), de você. Fábio, você é um cara genial e comprometido consigo mesmo, com o coletivo e com a evolução da arte. É muito bonita sua busca, é muito legítima, tenho aprendido demais estando com você no Papo de Segunda. Porchat é um gigante do nosso tempo.

Fábio: Qual o homem mais bonito do Brasil?
Emicida: Se fosse num passado distante, eu iria dizer que é o Fábio Porchat, se fosse num passado recente, eu iria falar que sou eu, mas entrei na internet agora pouco e é o Ícaro Silva.

“Tem gente que chama emprego de trabalho. Eu chamo o ‘Papo de Segundo’ com o Emicida de escola”, Fábio Porchat

Confira o ensaio fotográfico completo de Emicida:

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