O neurocientista Sidarta Ribeiro, fundador do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e autor de um livro seminal sobre o sonho, lamenta a fuga de cérebros do Brasil, a adoração aos “mitos pré-cristãos” e o enxugamento dos recursos destinados à ciência. Com tudo isso, esse professor também de capoeira continua fazendo seu trabalho com alegria, já que, sem ela, por que fazer ciência?
Por Dado Abreu / Fotos: João Leoci
Em meio aos seguidos arrochos nos recursos destinados à ciência e à tecnologia, o governo federal estuda modificar o formato de administração e as regras de uso do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), uma das principais fontes de financiamento da pesquisa no Brasil, com arrecadação superior a R$ 4 bilhões por ano. De 2015 para 2019, o orçamento das agências custeadas pela União caiu de R$ 13,97 bilhões para R$ 6,08 bilhões, um recuo de 56,5%, e que não cessa – para 2020, o valor recuará a R$ 4,4 bilhões, segundo dados do Projeto de Lei Orçamentária Anual (Ploa) e projeções do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Para Sidarta Ribeiro, professor titular, fundador e vice-diretor do Instituto do Cérebro da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) e um dos mais prestigiados cientistas brasileiro, o movimento é “gravíssimo”. “A ciência virou vilã, a questão não é orçamentária. Embarcamos nessa loucura moralista, tacanha, intolerante e corremos o sério risco de perder o bonde do século 21”, alerta. “Não é tão complicado fazer dar certo. Veja o exemplo da Coreia do Sul, que, detonada no fim dos anos 1980, mas com investimento seriíssimo em ciência e educação, hoje vende eletrônicos e carros para o mundo todo.” Em termos comparativos, os sul-coreanos investem cerca de 5% do seu PIB em pesquisa e desenvolvimento, e o Brasil, menos de 1% – especialistas apontam 2% como o aporte mínimo para competir com grandes players.
Pesquisador da memória, do sono e dos sonhos, autor de mais de 90 artigos científicos em periódicos internacionais e diretor da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Sidarta Ribeiro é autor de O Oráculo da Noite (ed. Companhia das Letras), best-seller publicado no ano passado em que ele se vale de informações históricas, antropológicas, psicanalíticas e literárias para compor uma narrativa sobre a ciência e a história dos sonhos. “O meu sonho é que as pessoas acordem dessa bad trip de achar que a culpa das coisas não estarem certas é do outro, do diferente, de preferência alguém mais preto e mais pobre”, conta.
As palavras afiadas do convidado deste Almoço de PODER na Vinheria Percussi, em São Paulo, contrastam com o seu modo de vida em Natal, a capital escolhida por ele para içar o Instituto do Cérebro em 2011, e assim criar um polo de desenvolvimento científico longe do eixo Rio-SP. Quando não está viajando ao redor do mundo, o que fez por 11 países diferentes no ano passado, a rotina à beira-mar de Sidarta inclui aulas na graduação, afazeres como vice-diretor do instituto, demandas de autor, filhos, estudos e… capoeira. Não como aluno, como professor. Ele é contramestre da arte e dá aula três vezes por semana para 40 alunos que aprendem algo além da ginga, rasteira e do rabo de arraia. “Capoeira e ciência têm as mesmas bases, que são disciplina com alegria. E que são realmente necessárias juntas. Um cientista que está trabalhando sem disciplina não vai chegar a lugar nenhum, mas também se trabalhar sem alegria, para que ser cientista? A semelhança com a capoeira tem a ver com saber cair e levantar, porque quase tudo o que você faz na pesquisa dá errado.” Resiliência, então, poderia ser a palavra assertiva a unir suas paixões. Com os parcos – quiçá nulos – recursos para seguir tocando as pesquisas no instituto, o professor revela que tem pagado do próprio bolso para manter os alunos, “carregadores de piano” que vivem cortes no pagamento de bolsa de estudos. “Se eu não tivesse um aporte que vem da Alemanha, teria fechado as portas. Hoje o meu salário é menor do que há 15 anos, mas ironicamente estou no topo da minha carreira”, lamenta.
Sidarta Ribeiro é inquieto, mas não é só lamentos. Pesquisador incansável, tem sua resposta para os problemas que afetam o país, das drogas aos rumos da educação, do sucateamento da ciência aos segredos dos sonhos como fontes preciosas na tomada de decisões – e, por que não, nos rumos do país: “O Brasil no futuro vai parecer com um país que se desenvolveu ou com um país que se entristeceu e se tornou primitivo?”. As respostas vêm a seguir.
ORÁCULO PROBABILÍSTICO
“A acepção da palavra ‘sonho’ na sociedade atual se confunde com desejo, um desejo de consumo. Isso tem a ver com o desenvolvimento do capitalismo. Desde a antiguidade se sabia que os sonhos não eram confiáveis, mas potencialmente preciosos. Apenas nos últimos 500 anos passamos a acreditar que o sonho não serve para nada, e com isso perdemos a capacidade de sonhar, de entrar em contato com nossos medos, com nossos desejos. Uma capacidade de reflexão importante. Se você passa a acreditar que os sonhos têm capacidade de ser um oráculo, você começa automaticamente a prestar mais atenção à relação entre sonho e realidade. Não é que o cérebro sabe o que vai acontecer amanhã, mas ele tem uma ideia do que pode acontecer amanhã. Na prática, o sonho é um farol para o futuro, uma simulação possível.”
CÉREBROS EM FUGA
“O Brasil é um país incrível, cheio de potencialidades, mas nossa única chance de escapar do subdesenvolvimento é investir no povo, no capital humano. Se não fizermos isso logo não vai ter lugar pra gente. China, Rússia e Estados Unidos estão tomando conta do planeta, estão dividindo tudo. Ou a gente se organiza ou vai perder o bonde. Os cientistas brasileiros estão indo embora, existe um êxodo, e sem perspectiva de voltar. Não é como a China, que nos anos 1990 enviou cérebros para os Estados Unidos para se formarem nos melhores centros e depois trouxe todos eles de volta. Nosso caso não é esse, é preocupante. Sabe quanto tempo demora para formar um doutor? Trinta anos. A importância de têlos aqui ficou latente na crise do zika. O Brasil em quatro meses se debruçou no tema e trouxe respostas fortíssimas, como a relação entre a doença e a microcefalia. Por isso é tão importante ter contingente, massa crítica.”
CIÊNCIA, MINHA RELIGIÃO
“Conheço vários evangélicos progressistas, comprometidos com o futuro da nação, mas a gente não pode permitir que organizações que se dizem religiosas confrontem o poder do estado. Declarações como a da Damares [Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos], de que “erramos ao deixar a teoria da evolução entrar nas escolas”, é estapafúrdia. Esse é o século da ciência e da tecnologia, não é hora de ficarmos agarrados com mitos pré-cristãos e adorando bezerro de ouro. Precisamos trazer as pessoas para a razão, essas discussões nonsenses ocupam espaço das discussões que realmente interessam. Terraplanismo?! Parece coisa do Monty Python. Seria engraçado se não fosse trágico.”
DEU ERRADO
“Precisamos acabar com essa teoria do ‘deu errado’. Existe um consenso muito estranho na elite brasileira de que é preciso desmontar o Brasil que foi construído a partir do segundo governo do Getúlio, da Constituição de 1946. Estamos andando 80 anos para trás. A sensação que eu tenho é que existe um divórcio entre a elite brasileira e o Brasil. Precisamos sair dessa febre e voltar para uma estação de construção nacional, onde valores como educação, ciência, tecnologia, cultura e meio ambiente são inegociáveis. Se os militares forem tão nacionalistas quanto os cientistas são, então a gente tem alguma esperança.”
O ASTRONAUTA
“O que o governo Bolsonaro fez com a ciência é vergonhoso, ao colocar cientistas, pesquisadores e bolsistas para se mobilizarem nacionalmente todos os meses para garantir a bolsa do mês que vem. Ele deveria estar pedindo desculpas, até porque prometeu o contrário na campanha, que investiria 3% do PIB em ciência. Mas, o ministro Marcos Pontes teve uma postura serena, cordata, escutando críticas com gentileza. Ganhou o respeito da comunidade. Fiquei decepcionado quando ele demitiu o professor [Ricardo] Galvão do comando do Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais]. O ministro garantiu o emprego, mas perdeu uma grande oportunidade de marcar uma posição porque o professor estava certo. [No episódio citado, o presidente Jair Bolsonaro acusou a equipe de pesquisadores do órgão de mentir sobre dados do desmatamento da Amazônia, fato que não se confirmou].”
PÚBLICO OU PRIVADO?
“A indústria pode financiar pesquisa, mas dificilmente vai financiar a pesquisa básica como o governo faria, porque esse tipo de pesquisa não é para dar lucro imediato. É necessário fomentarmos o investimento privado, sim, inclusive a filantropia, mas não como alternativa ao investimento público. O Brasil é um país que tem um número de pensadores por milhão de habitantes muito baixo. Então, se você financiar todo mundo que tem talento e formação, não precisa de muito dinheiro. A ciência no Brasil é barata.”
AMAZÔNIA EM CHAMAS
“Outro dia eu estava conversando com um taxista e o cara veio com aquele papo de ‘queimar a Amazônia. Tem que extrair toda a madeira e cobrir a terra de pasto, tirar aqueles índios vagabundos e improdutivos de lá’. Conversa de maluco. Mas eu fui conversando com ele, com calma. Queria convencê-lo de que estava errado. Fui pelo lado da ética, do respeito aos povos originários. Não rolou. Fui pelo amor à natureza. Não rolou. Então fui pelo capitalismo e depois de muito tempo a ficha dele caiu. Porque o dinheiro que temos na Amazônia está no DNA, é bioinformática. Daí ele veio: ‘Então é só tirar os índios e pegar tudo’. Eu disse: ‘Não, cara! Quem sabe o que tem lá são os índios’. O nível é tão baixo que as pessoas, e não estou falando só das classes populares, incluo também pessoas da [avenida] Faria Lima que não têm a menor compreensão da importância da ciência, da história. É gravíssimo.”
LEGALIZE JÁ
“Defendo a posição da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que aprovou uma moção para legalizar e regulamentar todas as substâncias, não apenas a maconha. A proibição é bem pior do que qualquer substância. A produção de drogas mata pessoas que nunca ingeriram substâncias ilícitas, como a menina Ágatha Felix, morta no Complexo do Alemão pela bala de um policial em uma guerra da qual ela não precisava fazer parte. A proibição das drogas é extremamente tóxica, é brutal com os mais fracos, com os negros, os periféricos. A polícia está matando muito mais do que a maconha, nós não vamos proteger ninguém com mentiras. É preciso regulamentar e abrir o jogo com as pessoas, sem pânico moral. Os jovens não devem fumar pelas razões certas, vamos engajar as pessoas. Se as pessoas souberem que aquilo faz mal elas vão reduzir os danos, o exemplo de que isso funciona é o tabaco, que há 20 anos era glorificado na televisão e saímos de 45% de tabagistas para 15%. Um caso de sucesso sem trocar um tiro.”
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