Expedita e Gleuse Ferreira, filha e bisneta respectivamente de Maria Bonita e Lampião, acabam de aterrissar em São Paulo para participar do DW! Design Weekend, que rola até domingo na cidade. A frase pode soar estranha, afinal, qual a ligação do rei do cangaço com um evento desses. Gleuse, 37 anos, é arquiteta, nascida e criada em Aracaju e, depois de longas temporadas em Barcelona, Londres e São Paulo, voltou a atuar em Aracaju. Na capital paulista, ela lança seu primeiro projeto tendo como referência os bisavós famosos: a linha de almofadas Mandacaru, em parceria com a Codex Home. Mas por que só agora se diz “curada” do passado e pronta para vasculhar as memórias da família?
Em entrevista ao Glamurama, Gleuse, como parte de uma geração mais interessada e menos julgadora da história de seus bisavós, personagens polêmicos da história do sertão brasileiro, falou abertamente sobre o legado familiar e como o parentesco influenciou sua vida. Confira!
Glamurama: Qual estilo você adota em seus projetos?
Gleuse Ferreira: “Crio atmosferas mais limpas e contemporâneas. Não gosto de projetos carregados demais. Minhas maiores referências vêm da arquitetura escandinava, que conheci de perto quando morei em Londres e viajei para a Dinamarca.”
Glamurama: E este estilo está sendo bem aceito por seus clientes no nordeste?
Gleuse Ferreira: “Acredito que eu esteja sendo responsável por introduzir esse estilo por lá. Tenho muita dificuldade na fabricação e compra de móveis, por exemplo. Muitas vezes tenho que encomendar de outros Estados peças mais modernas.”
Glamurama: A cultura nordestina faz parte das suas referências?
Gleuse Ferreira: “Em tudo o que faço acabo aplicando um pouco da cultura nordestina, que faz parte do meu repertório, mas nada tão forte. Incentivo muito meus clientes a comprar obras de arte do Nordeste. Têm ótimos escultores e artesãos lá, como Beto Pezão e suas esculturas de barro com pés grandes.”
Glamurama: E seus bisavós, que tinham um peculiar cuidado estético, te inspiram?
Gleuse Ferreira: “Muito. Deles o que acabo carregando é a vontade de me diferenciar. Nunca faço coisas iguais e herdei isso do meu bisavô. Como um homem muito estratégico, vivia pensando em formas de fugir da polícia. Se reinventava o tempo todo. Tenho uma estética mais limpa, mas trago comigo o cuidado com os detalhes e acessórios que eles tinham. Como pessoa, minha mãe fala que calcei as sandálias do meu bisavô, porque não paro. Viajo muito, só que em vez de percorrer o sertão, optei pelo mundo.”
Glamurama: Como vocês administram os projetos envolvendo Maria Bonita e Lampião, personagens tão importantes da cultura nordestina?
Gleuse Ferreira: “Uma de minhas tias, Vera Ferreira, está envolvida na produção de um filme sobre a história do cangaço, que será dirigido por Bruno Mirage. Ela é a pessoa da família mais envolvida em projetos sobre eles. Eu morro de vontade de fazer milhões de coisas, quero que essa coleção de almofadas seja só o começo de algo maior. Dá pra fazer com muita coisa tendo eles como referência.”
Glamurama: Qual a imagem que você tem de Maria Bonita, sua bisavó, de acordo com o que você cresceu ouvindo sobre ela?
Gleuse Ferreira: “Para mim ela foi uma mulher forte, com muita personalidade, que foi atrás do que queria sem ser influenciada.”
Glamurama: O que você sabe sobre o estilo e personalidade dela?
Gleuse Ferreira: “Fico impressionada com a riqueza de detalhes nas vestimentas dela, com o cuidado com o cabelo, as joias que usava… Ela foi uma pessoa que não parava, estava sempre em movimento, e mesmo assim tinha esse cuidado com o visual. Seu estilo é muito atual.”
Glamurama: Você herdou alguma peça?
Gleuse Ferreira: “Infelizmente nada, mas desde pequena ando com as mãos cheias de anéis. Pedia joias de presente de aniversário e até hoje sempre que ganho algum dinheiro, me compro algumas de presente.”
Glamurama: Você tem algum contato com filhos, netos e bisnetos de outros cangaceiros que faziam parte do “bando” de Lampião?
Gleuse Ferreira: “Tenho contato com a família de uma ex-cangaceira chamada Sila, daqui de São Paulo. Hoje menos, mas costumávamos frequentar as casas um dos outros.”
Glamurama: Vocês estão envolvidos em alguma homenagem em torno dos 80 anos da morte deles este ano?
Gleuse Ferreira: “Em julho tivemos a anual Missa do Cangaço, da Grota do Angico, que este ano falou com mais enfase deles e reuniu muita gente.”
Glamurama: Qual é a reação das pessoas quando descobrem que você é bisneta de Maria Bonita e Lampião?
Gleuse Ferreira: “Geralmente acham que eu vou puxar uma peixeira da minha bolsa! (Risos) As pessoas da minha geração acham legal, interessante, mas minha mãe e minhas tias sofreram bastante preconceito. Ninguém brincava com elas quando eram pequenas. Hoje isso não acontece. Ser parente de Lampião e Maria Bonita se tornou algo bacana.”
Glamurama: Então você nunca passou por nenhum tipo de preconceito nesse sentido.
Gleuse Ferreira: “Senti uma vez, quando estava em uma livraria em Aracaju, e um homem se aproximou e disparou a falar um monte de coisas sobre meu bisavô. Somos em três bisnetas, mas episódios como este só aconteceu comigo. Há pessoas que nunca se informaram sobre a história, e não têm respeito. Quem não sabe o que está falando, costuma dizer que foram assassinos. Mas quem estuda o cangaço, por mais que não defenda, tem respeito. Querendo ou não, são meus bisavós.”
Glamurama: Ainda tem muito a ser esclarecido sobre a história de Maria Bonita e Lampião. Você está ou já esteve envolvida em investigações do passado? Já se interessou por isso?
Gleuse Ferreira: “Não. Para minha avó é muito difícil falar disso. A não ser quando tem que dar alguma entrevista, ela sempre evitou o assunto. Todo mundo sempre ficou em cima da nossa família, tirando foto, fazendo reportagens… Cresci com repórteres dentro da casa da minha avó, e na escola houve o momento em que eu tive que estudá-los em livros. Também passei muitos anos sem conseguir falar sobre o assunto ou me aprofundar nas histórias da família, mas hoje estou curada e mexendo mais nessas memórias.”
Glamurama: E qual é a sua opinião sobre Lampião e Maria Bonita?
Gleuse Ferreira: “Tenho respeito pelo que eles fizeram, foram e simbolizam até hoje. Não tem nenhum outro ícone como eles. A imagem que se tem da história de Maria Bonita e Lampião é uma referencia muito forte até hoje e tenho o maior orgulho de ter o mesmo sangue que o deles. Eles mudaram o cenário do Nordeste, lutaram por justiça… Até hoje há muito coronelismo na região, manda quem tem dinheiro. Teve sangue? Teve, mas se não tivesse talvez as coisas não tivesse mudado. E se é falado ate hoje, é porque alguma coisa relevante aconteceu.”
Glamurama: Sua bisavó é um símbolo de empoderamento, dizem até que era ela quem mandava no grupo de Lampião. As mulheres de sua família herdaram essa personalidade? Como é a vida da mulher no nordeste atualmente?
Gleuse Ferreira: “Nós mulheres estamos nos impondo mais, nos colocando no lugar que devemos ocupar. Temos poder, voz, podemos fazer o que quisermos. Fui criada em uma família em que as mulheres são naturalmente muito fortes. Nunca tive referência de mulheres fracas, submissas. Meu tio, o único homem da família, é apagadinho, não manda nada. Minha mãe fala que eu calcei as alpargatas do meu bisavô, porque não paro. Viajo muito só que, em vez de percorrer o sertão, optei pelo mundo. Cresci ouvindo que deveria lutar pela minha independência. Por isso luto pelas minhas coisas sozinha.” (Por Julia Moura)
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