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Créditos: Beatriz Chica
Luiz Fernando Carvalho || Créditos: Beatriz Chica

Luiz Fernando Carvalho, diretor responsável por introduzir na televisão uma estética audiovisual só vista antes nas telas do cinema, é um perfeccionista e um sonhador. Um dos poucos no país que ainda filma em película – processo que lamenta não existir mais por aqui -, mergulha em uma nova fase profissional, mais recluso, voltando para si mesmo. Neste momento, aos 58 anos, e após seu premiado “Lavoura Arcaica”, filmado a partir do romance homônimo de Raduan Nassar, ele se dedica a seu próximo filme, uma transposição da obra “A Paixão segundo G.H.”, de Clarice Lispector, protagonizada por Maria Fernanda Cândido, e à montagem de “A Ópera dos Três Vinténs”, que entra em cartaz em maio de 2019 no Theatro Municipal de São Paulo.

Com talento reconhecido internacionalmente – têm a assinatura dele trabalhos autorais porém que fizeram sucesso com o grande público, como a minissérie ‘Hoje é Dia de Maria, e as novelas ‘Meu Pedacinho de Chão’ e ‘Velho Chico’ – ganhou um livro sobre sua carreira lançado este ano nos EUA, “Reimagining Brazilian Television: Luiz Fernando Carvalho’s Contemporary Vision”, em que o autor americano Eli Lee Carter analisa a originalidade de seu trabalho na TV brasileira.

E Luiz Fernando também prepara o lançamento de seu site, o luizfernandocarvalho.com, ainda em fase de construção, onde vai compartilhar detalhes de seus projetos e o que acontece no galpão criativo que abriu há cerca de um ano na Vila Leopoldina, em São Paulo, em parceria com a Academia de Filmes, que funciona como um espaço de formação e treinamento de novos atores. Em entrevista ao Glamurama, tudo sobre um dos diretores mais autorais do pedaço.

Glamurama: Conte-nos sobre seu próximo filme,  “A Paixão Segundo G.H.”.
Luiz Fernando Carvalho: “Trata-se da transposição para o cinema do romance da Clarice Lispector. Foi um mergulho intenso, ensaiado durante seis meses em São Paulo, em um galpão onde desenvolvo processos criativos com atores e equipe. Nos últimos dias de ensaio contamos com a participação de uma grande mestra de literatura e também biógrafa de Clarice Lispector, Nádia Gotlib. Ela, como uma das grandes “clariceanas” do Brasil, foi uma interlocutora fundamental para o estudo da passagem do romance para o cinema. Não acredito em adaptações, sempre me soam reducionistas em relação a potência da obra original. O que busco não pode ser chamado exatamente de roteiro, mas sim uma espécie de resposta criativa à leitura. Proponho um mergulho nas coordenadas do romance, uma espécie de síntese da fabulação: o que Clarice quis dizer em cada passagem? Nas escolhas das palavras? Nas entrelinhas? É um trabalho de escavação. Muito delicado.”

Glamurama: Porque escolheu Maria Fernanda Cândido para o papel?
Luiz Fernando Carvalho: “Além de ter sido minha atriz em vários projetos anteriores ligados à literatura, como ‘Capitu’ e ‘Dois Irmãos’, percebo Maria Fernanda com muita maturidade artística. E a personagem se encontra neste momento também, o de ter coragem de assumir suas dores, vencendo seus medos e abraçando seus mistérios. É uma atriz que, por ter chegado nessa maturidade artística, não se apoia na beleza, um procedimento que converge com a desconstrução buscada pela personagem: uma mulher que em determinado momento da vida percebe que está reproduzindo modelos que os outros esperam que ela assuma, mas que toda esta casca a impede de ter um encontro real com ela própria. Maria Fernanda me parece estar situada exatamente neste ponto sensível do Feminino, completamente conectada com essa necessidade da personagem, de se despedir dessa hipócrita máscara social, estando disponível para atender aos apelos de seu próprio ser.”

Maria Fernanda Cândido pelas lentes de Luiz Fernando Carvalho em ensaio do longa “A Paixão Segundo G.H.” || Créditos: Arquivo Pessoal

Glamurama: Qual a relevância do filme para os dias de hoje? 
Luiz Fernando Carvalho: “O texto dialoga muito com as necessidades do feminino, que felizmente começam a chegar à tona como uma das reflexões urgentes de nossa sociedade . Apesar de muito subjetiva em sua narrativa, porque é um texto todo voltado para o interior e para os sentidos dessa mulher, a escritora fala fortemente da necessidade de liberdade da mulher, o que faz com que Clarice como escritora nos apresente uma literatura absolutamente moderna, como se o romance tivesse sido escrito hoje.”

Glamurama: Está ambientado em que década?
Luiz Fernando Carvalho: “Em meados dos anos 1960, quando foi escrito, mas traz esse tema da força do feminino, de se libertar das convenções patriarcais e machistas que ainda atuam sobre as mulheres, impedindo avanços democráticos. E o que é muito interessante: toda a narrativa de G.H é motivada por uma grande experiência da paixão, de uma queda amorosa, na qual a figura do homem de quem ela estaria separada, aquele masculino, ele não aparece no filme – aí está outro grande desafio para a interprete. A narrativa se assemelha a um monólogo existencial, um fluxo, movido pela memória de um acontecimento do dia anterior. Por isso também o tempo e a memória são elementos estruturais da narrativa de G.H. E nesta condição de monólogo, a personagem estará sozinha no apartamento lidando com sua solidão. Ou seja, tendo que enfrentar a si mesma.”

Maria Fernanda Cândido e Luiz Fernando Carvalho em um dos ensaios de “A Paixão Segundo G.H.” || Créditos: Arquivo Pessoal

Glamurama: Onde ele será filmado e qual a previsão de lançamento? 
Luiz Fernando Carvalho: “Vai ser filmado no final deste ano em uma cobertura em Copacabana e vai ser lançado em 2020, ano do centenário de Clarice Lispector.”

Glamurama: Que orientação foi dada a Maria Fernanda Cândido para que se preparasse para o papel? 
Luiz Fernando Carvalho: “Uma preparação entre um diretor e uma intérprete que vai lidar com um texto com essa complexidade é sempre rica e repleta de desafios, dúvidas, mas também de uma troca generosa. A cumplicidade se dá em vários níveis, desde a busca por técnicas de interpretar sem parecer que se está interpretando – já que viver este personagem me parece mais importante do que interpretá-lo – tendo coragem de se entregar àquele estado espiritual do personagem, até coisas mais externas, ligadas ao corpo, como engordar 2 quilos e tirar uma pequena pinta que Maria Fernanda tinha na região do supercílio e que me atrapalhava no enquadramento do close. Pedi e ela retirou, entendendo perfeitamente que aquilo tirava a força dos olhos em uma tela de cinema. Enfim, vivemos em uma era de profunda crise de representação, então é um prazer e uma alegria conviver com uma artista capaz de estar disponível ao máximo para que, juntos, possamos tentar alcançar a dimensão da obra de Clarice.”

Glamurama: E na TV, algum novo projeto à vista?
Luiz Fernando Carvalho: “Não, estou muito distante da TV. Estou dando um tempo. No meu modo de sentir, já contribuí bastante para a TV aberta. Depois de filmar ‘A Paixão Segundo G.H.’, volto para São Paulo onde vou dirigir ‘A Ópera dos Três Vinténs’, de Brecht, no Theatro Municipal. O espetáculo estreia no dia 2 de maio de 2019 e trago nesta montagem o elenco que venho trabalhando no galpão, entre eles, André Frateschi, que viverá o protagonista. Para minha alegria, apresentei um novo processo de trabalho à Secretaria de Cultura e ao Theatro Municipal e foi muito bem recebido.”

Glamurama: Você trouxe uma renovação muito grande para a estética audiovisual brasileira, explorando o realismo fantástico com um olhar muito especial para a fotografia. E em sua fase atual, parece estar mais voltado para outras expressões artísticas.
Luiz Fernando Carvalho: “Estou na verdade voltado para mim. Comecei fazendo curta metragem nos anos 1980, então me sinto finalmente voltando para mim e isso me emociona. É uma fase de muita pesquisa, de retorno aos estudos, revendo conceitos e tenho um tempo maior para me dedicar ao treinamento dos atores e à pesquisa de novos talentos. Meu trabalho parte da identificação e formação de talentos em todo o país. O galpão é voltado para esse pensamento. Identifico talentos de varias linguagens, não somente atores. Me dedico também a não atores, aquela pessoa que tem uma alma de artista mas que não teve oportunidade de encontrar uma formação me interessa igualmente. É muito iluminador perceber a potência artística do país em contraponto a todo esse retrocesso que estamos vivendo na área política.”

Glamurama: Como é este galpão?
Luiz Fernando Carvalho: “Existe há quase um ano na Vila Leopoldina, onde antigamente ficavam grandes fábricas. E não é porque ele fica em São Paulo que só tenho paulistanos trabalhando nele… Tenho refugiados senegaleses, iranianos e angolanos em diferentes áreas – atores, cantores, bordadeiras, costureiras. Um painel do Brasil atual muito forte se revela, compondo o caldo que se traduz na força do galpão.”

Entre artistas, refugiados e músicos que integram o processo de criação do diretor, o coreógrafo e bailarino Ismael Ivo se destaca com sua forte presença || Créditos: Arquivo Pessoal

Glamurama: A literatura continua sendo sua principal fonte criativa? 
Luiz Fernando Carvalho: “Não largo mão da literatura, ela me interessa porque é uma grande estimuladora da imaginação. Me tira de um registro naturalista que domina a oficialidade do mercado audiovisual brasileiro e me leva a um caminho hibrido, múltiplo, que mistura teatro, artes plásticas, música, dança, cultura popular, literatura, ópera; enfim, todos esses gêneros e manifestações me interessam igualmente. Se determinado dia me sinto mais disponível para a dança, trabalho mais a parte física dos atores. Outro dia me interesso mais pelo texto, então quero a literatura nua e crua. Acredito nesse processo impuro do cinema, atravessando todas as artes. Tudo o que é muito puro, santificado demais e muito fechado a outras influências e misturas, a miscigenações, não me interessa.”

Glamurama: A TV representa para você alguma limitação neste sentido? 
Luiz Fernando Carvalho: “ Sinceramente, não. Tinha uma certa independência que foi conquistada com muita luta, mas também com muito prazer. Assim é o nosso ofício! Acredito que a TV tenha que cumprir a missão da pluralidade de narrativas e temas. Quero dizer que o modo de se contar um acontecimento é muitas vezes mais importante que o próprio acontecimento. A isto quero chamar de linguagem. Se faz necessário aprofundar a relação com o país, com sua modernidade e com sua perspectiva história. É muito importante que no campo da produção de conteúdos se tenha uma infinidade de maneiras de contar uma história, de iluminar, de criar uma veste, de se ter o livre pensar em relação aos vários elementos que constituem uma formação sensorial e que contribuem para a formação de um cidadão consciente. Deste modo as narrativas se multiplicarão, não se tornando uma palavra de ordem, um modelo hegemônico. Quanto mais plural tudo for, melhor para cultura e para o país, e a TV, assim como cinema e literatura e todos os órgãos públicos e concessões públicas que compõem a tal “indústria cultural”, têm que compartilhar conhecimento com o público, com o homem mais simples, humilde, que não tem condições de viajar o mundo e conhecer outras culturas. Somos um país que, de forma muito generosa, abraçou e segue abraçando todas essas diásporas que, já nos dias de hoje, contribuem para a formação do povo brasileiro, então temos que oferecer um conteúdo estético que contenha todas essas camadas culturais.”

Glamurama: O que falta para a TV ter essa pluralidade de narrativas? 
Luiz Fernando Carvalho: “No meu modo de ver falta exatamente este conteúdo miscigenado. Tudo me soa muito oficial demais e isso é um perigo porque gera muita exclusão, não só na TV aberta. O teatro hoje em dia é o canal que melhor representa a força do contemporâneo, trazendo reflexão relevante, principalmente o teatro independente de São Paulo, onde se tem uma pluralidade muito grande de grupos, atores e linguagens. Talvez o Rio, com suas manifestações artísticas tão instáveis, tenha ficado refém da TV aberta, e por isso se encontra neste estado de apatia artística faz mais de duas décadas. Quando há um modelo hegemônico, a indústria cultural se apropria dele e espalha esse modelo pra todas as áreas artísticas. Se o Estado, na sua ausência de políticas culturais, reverência um conteúdo hegemônico produzido pelas TVs abertas do Rio, com esse modelo de narrativa único, automaticamente o teatro, a música e toda as atividades artísticas do estado absorvem esse modelo excludente e único.”

Glamurama: Por que isso acontece no Rio, e não em São Paulo?
Luiz Fernando Carvalho: “Nos dias de hoje, o Rio não tem uma produção independente tão forte quanto a de São Paulo, onde a circulação artística é mais democratizada e então todas as artes ganham força por não serem abastecidas por um padrão único. Apesar das dificuldades inerentes ao contexto independente da cultura, me parece que, em São Paulo, há um modelo de resistência vitorioso. São Paulo mantém incentivos a museus e oferece espaços tanto para a música erudita quanto para a popular, sem falar da cena underground. No Rio há um abandono crônico na área cultural, enquanto em São Paulo tenho assistido a espetáculos de companhias de dança e a qualidade que percebo revela que o trabalho é fruto de uma continuidade que gera excelência. Os inúmeros pequenos grupos de teatro se mantêm articulados politicamente e produzem conteúdos de extrema relevância. É o exemplo que vai das companhias de teatro da praça Roosevelt ao Sesc, sob direção sensível do Danilo Miranda, com uma programação incrível e abrangente.”

Glamurama: Como a TV pode ajudar a reverter esse quadro no Rio?
Luiz Fernando Carvalho:“ Não só as TV abertas, mas as secretarias de cultura, deveriam abraçar essa missão maior que é a de ajudar a formar cidadãos, criando espetáculos e conteúdos que correspondam a uma representatividade mais consciente do que seja o país. Contribui-se para a cidadania de uma população apresentando com mais profundidade temas da atualidade e os históricos, como a presença dos afro-descendentes, dos asiáticos, dos mais excluídos, enfim, jogando luz em questões tão veementes como as ligadas a gênero, ao movimento LGBT, ao papel do homem, da mulher, que são, no meu modo de ver, representadas de forma muito estereotipada. Coisas simples, que andando por qualquer rua do país você vê, mas quando liga a TV não encontra este espelhamento. As mídias precisam ser mais representativas e isso vai muito além de amontoar telespectadores apostando em uma repetição maniqueísta dos mesmos atores para todos os conteúdos – o que joga contra o próprio ator já que, cansado, perde a credibilidade de sua própria imagem como artista e como cidadão, se vendo manipulado pelo mercado. Acabamos de vê-lo em uma história e já o veremos novamente em outro papel, como se este imenso território chamado Brasil não fosse um celeiro de talentos. Tudo o que o teatro e o cinema independente não praticam mais, buscando uma alteridade radical, enquanto a televisão ainda não se cansou de fazer até hoje.”

Glamurama: Aí a TV voltaria a te interessar?
Luiz Fernando Carvalho:  “Será? Quem sabe…”

Glamurama: Aproveitando que estamos em ano eleitoral, você pretende se posicionar politicamente? O que tem a dizer do país atualmente?
Luiz Fernando Carvalho: “Todo meu trabalho tem um posicionamento político porque é fruto de uma ética. A Ética é a mãe da Estética. O momento é muito delicado, estamos sem perspectiva de um representante legítimo. Você olha para os lados e o que temos são os mesmos, figuras que me parecem cômicas de tão trágicas. É um momento que requer uma lucidez muito grande e união para que se consiga ultrapassar essa profunda escuridão.” (Por Julia Moura)

 

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