Com um número de vilões jamais visto em nenhuma obra de ficção, a novela política em cartaz no Brasil atrai cada vez mais espectadores. Ainda que não haja a esperança de um final feliz, todos aguardam, ansiosos, por um desfecho digno
Por Paulo Sampaio para a revista PODER de junho
Os dramaturgos costumam dizer que o papel mais divertido de escrever é o do vilão. Os atores, por sua vez, se referem aos personagens maus como um presente do autor: “Agradeço muito ao Gilberto (Braga) por ter me dado a Odete. Trabalhar com um texto como aquele é um prêmio”, disse Beatriz Segall, em recente entrevista à Revista J.P, referindo-se à hedionda Odete Roitman (“Vale Tudo”, 1988). O público adora malvados. Segue avidamente a trama, fica com aquilo na cabeça, torce para que eles tenham um fim trágico. No Brasil real, a relação entre vilania e audiência se comprova na novela política que enreda figurões da República em elaborados esquemas de corrupção. Nos últimos meses, diversas delações premiadas revelaram um número de malfeitores jamais visto em nenhuma obra de ficção. Praticamente todo mundo é ruim. Até o presidente interino da República está na berlinda. Falta mocinho para tanto bandido. Se para o país isso é um desastre, para os meios de comunicação tradicionais (rádio e TV) e as mídias sociais (Facebook, Twitter, Instagram e Snapchat) é um sucesso. Quanto mais telespectadores, ouvintes, curtidas, compartilhamentos e comentários, melhor.
Irineu Machado, gerente-geral de notícias do UOL, maior portal do Brasil, afirma que de março a maio deste ano “a média diária de acessos ao noticiário político chegou a quadruplicar”. Ele se refere a eventos como a condução coercitiva do ex-presidente Lula (4 de março), a delação premiada feita pelo ex-senador Delcídio do Amaral (15 de março) e a divulgação da conversa entre o ministro do Planejamento afastado Romero Jucá (PMDB-RR) e o ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado (23 de maio), que delatou Deus e o mundo. O UOL não revela números, mas Irineu Machado afirma que em épocas normais os acessos ficam “na casa dos milhões por dia”. Ele conta que a audiência cresceu tanto nos últimos meses que o portal criou uma chamada para disponibilizar o noticiário em tempo real. A chamada é identificada por uma linha horizontal vermelha na parte de cima da home. “Isso dá um trabalhão, mas é uma resposta ao enorme interesse do público”, explica.
Na véspera da quarta-feira, 12 de maio, em que o Senado votou a admissibilidade do impeachment de Dilma Rousseff, o Twitter da casa (@SenadoFederal) bateu os 5 milhões de acessos, marca maior do que a alcançada durante toda a semana anterior. O número de visualizações do “Jornal do Senado” cresceu mais de três vezes em relação à quarta-feira anterior, dia 5, ou 329% – foi de 59.672 para 196.531. A edição do dia 12 fechou às 10h, quando, normalmente, fecharia às 23h30 da véspera. Naquela manhã, o jornal disponibilizou 760 fotografias no banco de imagens, que teve mais de 400 mil visualizações, quando a média diária é 20 mil. Na Globonews, a condução coercitiva de Lula seguida do depoimento do ex-presidente em Congonhas (4 de março) rendeu a melhor sexta-feira desde 2006, com um crescimento de 255% da audiência em relação às quatro semanas anteriores.
Em junho, a trama ficou ainda mais cabeluda. No dia 7, o procurador geral da República, Rodrigo Janot, enviou ao Supremo Tribunal Federal (STF) pedidos de prisão do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL); do ex-presidente José Sarney (PMDB-AL) e de Jucá. Alegava que os três tentaram obstruir investigações da operação Lava Jato. Os pedidos foram negados na semana passada pelo ministro Teori Zavascki, que não considerou os elementos apresentados por Janot graves o suficiente para justificar a prisão. No dia 15, Sergio Machado afirmou em delação que o presidente interino, Michel Temer, havia pedido a ele para conseguir R$ 1,5 milhão em doação para a campanha de Gabriel Chalita (PMDB-SP) a prefeito de São Paulo, em 2012. O dinheiro seria pago ao diretório do partido pela empreiteira Queiroz Galvão. A guisa de satisfação, o interino convocou uma entrevista coletiva e disse: “Alguém que teria cometido aquele delito irresponsável que o cidadão Machado apontou não teria até condições de presidir o país”. Como assim?, perguntaram-se todos. Mais indignação. No dia 16, o ministro do Turismo Henrique Eduardo Alves, citado por Machado como beneficiário de R$ 1,55 milhão em propina, entregou o cargo. Foi o terceiro desde a posse de Temer, há cerca de 40 dias. Hoje (23), os ex-ministros Paulo Bernardo (Planejamento, Orçamento e Gestões e Comunicacão), de Dilma e Lula; e Carlos Gabas (Previdência e Secretaria da Aviação Civil), de Dilma, foram detidos. O secretário de Gestão Municipal de São Paulo Valter Correia foi chamado a depor. Ao mesmo tempo, a revista Época publicou que a mulher do secretario Nacional da Juventude de Temer, Bruno Moreira Santos, nomeado esta semana, registrou um boletim de ocorrência onde afirma que ele a agrediu com “socos, tapas, chutes e puxões de cabelo”, além de ameaçá-la com uma faca. Temer não se pronunciou a respeito.
MUITO LADRÃO
Especialista em enredos intrincados, o novelista Aguinaldo Silva não acredita que o público tenha passado a gostar de política de uma hora para outra. “O que atrai não é o assunto, mas a trama. Uma novela é o quê? Uma fofoca estendida. No caso de Brasília, há muito ladrão. Então, existe uma espécie de garantia de que a novela não vai acabar tão cedo. Hoje (dia 23 de maio), o Jucá foi desmascarado, amanhã é o Michel Temer, depois o Renan, o Aécio e por aí vai.” Para Silva, os vilões de uma história marcam mais porque evocam um lado sombrio do ser humano. Ninguém esquece a terrível Nazaré Tedesco (Renata Sorrah), que ele criou para a novela “Senhora do Destino” (2004). No último capítulo, a personagem foi encurralada e acabou pulando de uma ponte. Nem todo mundo saberá dizer quem eram as “mocinhas” da trama. Embora Susana Vieira tenha feito com muita dignidade sua Maria do Carmo e Carolina Dieckmann se empenhado para criar Isabel, o telespectador parecia mais interessado nas cenas em que a “bruxa Nazaré” empurrava seus desafetos escada abaixo.
De acordo com Cristina Mungioli, professora doutora da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), Brasília vai além de uma obra de ficção. “Uma novela não daria conta.” Cristina explica que na ficção existem regras, uma lógica: “É preciso obedecer determinadas leis”, afirma. “Você tem o chamado plot, que é a trama propriamente dita, com começo, meio e fim, e o subplot, com os acontecimentos ‘laterais’. O primeiro estabelece a espinha dorsal, apresenta os personagens principais e seus objetivos; o segundo adiciona complicações e obstáculos à história. Na ‘ficção’ política (do Planalto) só tem subplot. É uma anarquia. Não há nem sinal de epílogo. O fato de ninguém ter se apresentado para fazer o papel de mocinho (o heroísmo atribuído ao juiz Sérgio Moro não é consenso) desequilibra o enredo, deixa a audiência desconcertada”, diz a professora.
NINGUÉM ACREDITARIA
Para Cristina, a forma como a trama se desenrola em Brasília atropela a tradição dos roteiros clássicos, que costuma se basear no “princípio da verossimilhança”. “Não se trata do que é verdade, mas do que parece ser verdadeiro. É preciso fazer o espectador acreditar no que está acontecendo.” A sordidez que liga os envolvidos no Planalto é tamanha que, se não fosse tão familiar ao ambiente político do país, ninguém acreditaria. “Os parlamentares não ouvem o eleitorado, não se interessam em saber nem o que seria crível para as pessoas”, observa Cristina. Diferentemente de uma novela ou minissérie, nem o produtor nem os participantes estão interessados em turbinar a audiência – aliás, é justamente o contrário, eles preferem que ninguém divulgue o que está acontecendo.
Isso não tira a dinâmica de reality show da programação. A espontaneidade com que os absurdos se sucedem assegura ao público um nível de indignação permanente. “Você nunca sabe o que está por vir. É uma surpresa atrás da outra. Não é à toa que essa é a novela de maior audiência no momento”, diz Aguinaldo Silva. Na falta de mocinhos para capturá-los, os próprios bandidos delatam seus comparsas. E o bom é que não existe um protagonista fixo. Trata-se de uma verdadeira reviravolta na história do folhetim. Até a imprensa internacional, que costumava tratar os escândalos políticos no Brasil com certo tédio, parece ter repensado toda a conceituação do new journalism (gênero que surgiu nos EUA na década de 1960 e mistura a narrativa jornalística com a literária). Os viciados em séries norte-americanas chegaram a comparar nossa trama política com o blockbuster “House of Cards”, no qual o parlamentar Frank Underwood (Kevin Spacey) não mede esforços para chegar à Presidência dos Estados Unidos. Porém, logo se viu que, em termos de ficção, os norte-americanos estão muito aquém da nossa realidade. Se o criador de “House of Cards”, Beau Willimon, fosse a Brasília, provavelmente se sentiria um Walt Disney.
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