O ex-centroavante, ídolo do Corinthians e comentarista de futebol da Globo se prepara para lançar livro-homenagem ao amigo doutor Sócrates, morto em 2011, e fala abertamente sobre tudo: drogas, seleção, família, 7 a 1. Sobra até para o superestimado Neymar
Por Fábio Dutra
Fotos Miguel Lebre
Após o sucesso como comentarista da ESPN Brasil, em 1997, Walter Casagrande teve uma proposta da Rede Globo, a maior emissora do Brasil, que transmitia os principais campeonatos de futebol, mas, à época, só contava com Paulo Roberto Falcão para os maiores jogos. Foi incentivado por José Trajano, todo-poderoso da recém-chegada ao país ESPN, a aceitá-la por se tratar de grande oportunidade. A pequena emissora, um projeto ainda muito novo e cheio de incertezas, era extremamente informal, até charmosa, não tinha uniforme e nem exercia qualquer controle sobre as opiniões de seus contratados. Casagrande comentava tranquilamente com uma aura de rockstar, cabeludo e de cavanhaque, para deleite de seus fãs. Para a reunião com os executivos da Globo pensou, sabiamente, que deveria estar mais comportado para não correr o risco de perder um bom contrato que já estava no prelo. Tratou, então, de aparar as rebeldes madeixas antes do encontro. Na mesa, tudo certo e apenas um pedido: que cortasse o cabelo para ir ao ar. Aos risos, o ex-jogador conta essa história para dar ideia do quão fora do mainstream ele estava. De fato, ainda hoje Casão, como foi eternizado no folclore do futebol brasileiro, é uma figura livre, jovial. E se diz extremamente satisfeito com a juba que a partir daí ganhou uma forma. “Gosto assim, nem curto nem longo.”
Pontual, Walter Casagrande nos espera na porta do Parigi, em São Paulo, a sua maneira – jeans, camiseta e Converse All Star preto – ao lado de Alex, seu motorista. Sentamos, Alex conosco. Casão pede um suco de maracujá – “batido com gelo e adoçante para ficar cremoso” – e mata no peito a metralhadora de perguntas que temos para ele. Democracia corintiana, Sócrates, Itália, seleção, 7 a 1, Neymar, família, política, Maradona, drogas, Globo, Galvão. Nada fica sem resposta. E nem sempre são as esperadas, que fique claro. Ele é suis generis. É tão capaz de chamar o processo de impeachment de golpe quanto de defender, tal qual um ferrenho liberal, que os horários dos jogos podem, sim, ser escolhidos pela emissora em que trabalha, ou qualquer outra que tenha os direitos de transmissão, independentemente do conforto dos atletas e torcedores, pois “quem compra o evento tem direito de encaixá-lo na sua grade como preferir”. Globo e Galvão, aliás, são imaculados para ele. Desde que se internou, em 2007, para se tratar da dependência química em cocaína após um grave acidente de carro, ambos jamais fecharam as portas para ele. Ao contrário, teve todo o apoio. E segue tendo, já que o tratamento é contínuo, ainda mais para o ex-jogador que tem tendências depressivas. “Dependência química é progressiva, incurável e fatal”, conta. Hoje, quase dez anos depois, ele ainda se interna aos domingos e fica na clínica até terça-feira, às vezes quarta, fazendo terapia de grupo e se consultando com psicólogos e psiquiatras. É ali que ele programa sua semana no papel, aspecto importante do tratamento. Nesse momento Casão, que participa mensalmente do programa social Ceará Sem Drogas – “não sou exemplo para nada, mas minha experiência pode ajudar outras pessoas” –, nos revela que seu fiel escudeiro Alex é também seu acompanhante terapêutico e mora com ele. Ficar sozinho não é uma boa, mas ele leva isso bem. O corintiano Alex também: “Ele é ótima companhia!”, garante.
Libertas Quae Sera Tamen
Liberdade e rejeição a injustiças são valores inegociáveis. Isso fica claro quando ele nos revela por que logo após ser profissionalizado pelo seu amado Sport Club Corinthians Paulista acabou indo para a Caldense de Poços de Caldas. Era janeiro de 1981 e Geraldão não havia renovado o contrato. Casagrande foi relacionado para viajar à Bahia, mas ao chegar ao aeroporto de Congonhas, num sábado de manhã, depois de tomar três ônibus desde a casa de sua família, no bairro da Penha, o técnico Oswaldo Brandão informou que estava tudo certo com o atacante titular e que ele deveria retornar ao Parque São Jorge para treinar normalmente, numa total falta de sensibilidade com o jovem centroavante. Ele retornou, mas para rescindir o contrato naquele mesmo dia. Só voltou ao time do coração quando o novo diretor de futebol do clube, o sociólogo Adilson Monteiro Alves, telefonou para convocá-lo para um novo momento, uma democracia de jogadores após os tempos de “ditadura do Vicente Matheus (então presidente do clube)”. Foi quando conheceu Sócrates e Wladimir, que protagonizariam a seu lado aquele time que encerrava os anseios de fim do regime autoritário ao definir pelo voto, algo negado ao povo brasileiro, desde a necessidade de concentração até se determinado jogador deveria ser contratado. A partir dali, Sócrates e Casagrande, tal qual Lennon e McCartney ou Tonico e Tinoco, tornaram-se inseparáveis no imaginário popular, razão pela qual Casão se prepara para lançar ainda em maio um livro-homenagem ao amigo ao lado do jornalista Gilvan Ribeiro – que já foi seu parceiro no primeiro livro, autobiográfico, “Casagrande e Seus Demônios”. O livro “Sócrates & Casagrande” reúne histórias, relatos e, nas últimas páginas, simula conversas que eles teriam hoje se o doutor Sócrates fosse vivo, ainda mais depois de terem ambos convivido com o abuso de substâncias químicas – álcool no caso do meia direita. Mas se engana quem pensa que a relação sempre foi às mil maravilhas. O amigo o procurou para tentar um empurrãozinho com uma vaga de comentarista na Globo e foi prontamente atendido. Entretanto, os executivos acabaram não se interessando pelo jeito intelectual e a voz grossa com má dicção do ex-atleta que não funcionariam na televisão. Pouco tempo depois se encontraram na Lellis Trattoria, em São Paulo, Casagrande com um entrevistado para a coluna que mantinha no Estadão e Sócrates com amigos. O doutor não perdoou ao vê-lo passar: “Lá vai o cara que se vendeu pra Globo!”. Ficaram rompidos por anos, mesmo sem terem chegado a discutir sobre o episódio. Injustiça Casão não topa.
Salve o Corinthians
Nascido e crescido na zona leste, em São Paulo, na Penha, ele era o xodó da família que antes só tinha mulheres. Seu tio, que casaria com a sobrinha do Ditão, ídolo do alvinegro nos anos 1960 e 1970, o levava às partidas. Assim, Casinha viu a volta de Rivellino e Ado ao Corinthians após terem sidos campeões do mundo pela seleção em 1970 e virou corintiano. E também decidiu, no convívio social com os jogadores de futebol, que aquele era seu habitat. Corinthians, São Paulo, seleção brasileira, Porto, Ascoli, Torino, Flamengo e o sem-número de amigos que coleciona são prova de que o jovem acertou na escolha vocacional. Inimigo, nenhum, apesar das desavenças com o ex-goleiro Emerson Leão nos anos 1980. “Nós éramos livres e o Leão não entendia aquilo. Ele vivia bem com o ambiente político da época, nós não. Éramos rebeldes e ele, disciplinado”, explica. Leão foi contratado pelo time do Parque São Jorge após ter sido aceito em assembleia dos jogadores. Mas batia de frente com a democracia, que ele acusava de ser a ditadura do Sócrates, do Wladimir, do Zenon e do Casagrande. “Na democracia todo mundo é igual, mas participa quem quer. De fato, nós quatro participávamos mais, mas todo mundo tinha direito de fazer parte”, defende-se o artilheiro. “Na época a gente se estranhava, mas hoje somos bons amigos, eu e o Leão, que fique claro”, faz questão de ressaltar. Uma boa história sobre os antagonistas: Palmeiras e Corinthians na semifinal do paulista de 1983. A desorganização do grupo fez com que a saída do ônibus atrasasse e o time só conseguisse entrar no estádio (depois de descer a pé e passar pelos torcedores) a poucos minutos do pontapé inicial, sem tempo para o aquecimento. Vinte minutos de pressão palmeirense com Leão pegando tudo. No final, vitória por 1 a 0 com gol de Sócrates. Mas Leão saiu na bronca: “Isso aí que é a democracia?”, tripudiava. Após a eliminação para o Fluminense na semifinal do Brasileiro de 1984, Sócrates foi vendido e Casão emprestado ao São Paulo, onde jogou bem sem a sombra do amigo e craque incontestável, carimbando seu passaporte para a Copa do México em 1986, a única que disputou. A derrota havia amplificado as vozes contra aquela liberdade toda. Caía a Democracia Corintiana. Ironicamente – ou consequentemente – no mesmo ano em que fracassou a campanha das Diretas Já! que defendeu com tanto afinco.
Os dois filhos mais velhos de Casagrande nasceram na Itália, onde ele vivia de forma pacata com a mulher. Dedicado a jogar bola e a ser pai. Foi ídolo do Ascoli e do Torino. Por esse, fez os dois gols da final da Copa da Uefa contra o Ajax, mas o empate por 0 a 0 no jogo de volta tirou o troféu da equipe de Turim. A torcida, acostumada a perder desde a década de 1940, quando tinha o melhor time da Europa e era a base da seleção italiana (um trágico acidente de avião no monte Superga vitimou a vitoriosa equipe), comemorou como título aquele vice-campeonato. O campeonato italiano era o mais forte do mundo, com Maradona, Gullit, Van Basten, Baresi e outros gigantes. E o atacante vivia grande fase. Mesmo assim, era hora de voltar ao Brasil. “Meu filho mais velho tinha 7 anos e não falava português, tínhamos de decidir se voltávamos ou se ficávamos de vez”, lembra ele sobre ter aceitado a proposta do Flamengo. Apesar de ter feito sucesso na terra de Garibaldi, Casão desembarcou na Europa pela primeira vez para defender o Porto, de Portugal, quando foi campeão da Liga dos Campeões da Uefa e se consolidou de vez no velho continente. Ele bate no peito para dizer o quanto era família nessa época. Recentemente, porém, o presidente do clube português, Jorge Nuno Pinto da Costa, relatou ter ajudado o ex-jogador em sua luta contra as drogas. “Eu contei no programa do Jô Soares, e também no meu livro, que me deram doping lá. Eles sentiram que precisavam se defender e inventaram isso. Com meu histórico, o que disserem sempre vai colar. A primeira vez que usei heroína foi mesmo na cidade do Porto, quando minha família já estava de férias no Brasil e a temporada já tinha acabado” – refuta Walter Casagrande, bem mais compreensivo aos 53 anos.
Casão já terminou seu peixinho com legumes, imposição de uma dieta para aliviar os judiados joelhos de ex-atleta – e mais do que recomendável para quem não tem nenhuma sequela, mas sofreu um infarto, e passou por duas cirurgias cardíacas, há menos de um ano –, e estamos no cafezinho quando o assunto acelera. Maradona? “Figura fantástica, meu amigo – joguei com o irmão dele –, humilde. Pegou fama de brigão porque teve o momento paranoico da droga em público porque ele era o Maradona”; impeachment? “É golpe e assim que tirarem a Dilma vai sumir a Lava Jato, como nós que somos contra já alertamos”; Globo? “Grande emissora que não cerceia a expressão de seus funcionários, ao contrário do que se diz. Mas você acaba aprendendo que o poder de fogo é grande e não tem o menor cabimento dizer algo que seja fora da realidade ou opinar a qualquer tempo – “o Renato Augusto vai fazer o gol e eu acho que o impeachment é golpe’”; Galvão Bueno? “Gênio da televisão, grande amigo e me ajudou muito quando eu precisei”; Romário? “Craque. Gosta de desmoralizar quem o critica e já fui vítima disso, mas não tenho nada contra. Como político tem coisas interessantes no quesito futebol”; Gaviões da Fiel? “A maioria dos jogos transmitidos é do Corinthians, não entendo a bronca com a Globo”; 7 a 1? “O Felipão e o Parreira, ultrapassados, acharam que venceriam e deu no que deu. E nada mudou: corremos o assustador risco de não ir pra Copa de 2018”; acredita em alguém na política? “No (Eduardo) Suplicy e no Ciro Gomes. O Ciro apoia o Ceará Sem Drogas, do qual participo, e sempre teve grandes ideias pro Brasil, estou curioso sobre o que ele acha da atual conjuntura”. Ufa. Haja repertório, haja opinião.
Por último, queremos saber sobre o Casão pai. Pergunto, para início de conversa, se são corintianos. “Um é são paulino, um é palmeirense e o outro é santista”, enumera. “Perda total?”, rimos todos. Walter Casagrande: “Só exigi que gostassem de rock (risos). Em futebol, política e religião jamais influí. São aspectos relevantes, componentes da identidade que cada um vai levar para o resto da vida e que não deve ser impostos”, conclui. Não precisamos perguntar mais nada. Liberdade, liberdade.
Neymídia
Que a seleção brasileira de hoje não está à altura das de outros tempos e que o último time realmente digno da amarelinha foi o da Copa de 2006 parece já ser consenso entre os cronistas esportivos. Mas Casão vai além e argumenta que o mesmo vale para os craques: não temos nenhum no nível de Rivaldo, Ronaldinho Gaúcho ou Ronaldo. E o Neymar? “Ele reina sozinho no time do Brasil, mas ainda tem muito a provar no futebol. No Barcelona ele é o terceiro melhor – atrás de Lionel Messi e Luisito Suárez –, e até o quarto – se contarmos o Iniesta, que está no fim da carreira, mas ainda joga muito quando entra. Ronaldo tinha a sombra de Rivaldo, Ronaldinho, Juninho Pernambucano e tantos outros craques da época e mesmo assim era soberano. O Neymar tem muito a apresentar, mas ele está se comportando mal, precisa de uma bronca de pai. De pai não, de avô, porque o pai dele está tão deslumbrado com o sucesso quanto ele. Outro dia ele postou numa rede social uma capinha de celular que custa R$ 16 mil. Ele é ídolo num país em que as pessoas passam fome! É um desrespeito isso. Depois, quando levou o cartão amarelo contra o Uruguai e acabou suspenso, tinha duas opções: embarcar com o grupo para a partida contra o Paraguai na terça-feira para apoiar – ou retornar a Barcelona para treinar porque tinha clássico contra o Real no sábado. Ele preferiu dar uma festa num iate em Florianópolis. Ou ele põe os pés no chão ou não vai evoluir.”
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