Exposta à vergonha pública pelo jornal “Crítica”, do pai do dramaturgo Nelson Rodrigues, a escritora Sylvia Serafim Thibau foi pessoalmente à redação e deu cabo do ilustrador Roberto Rodrigues – irmão de Nelson. O dono do jornal morreu meses depois, de desgosto, mas a desgraça não acabou por aí…
Por Paulo Sampaio para a revista J.P
A tarde do dia 26 de dezembro de 1929 foi especialmente abafada no Rio de Janeiro, e esquentou ainda mais na redação do jornal “Crítica”, quando entrou ali a escritora Sylvia Serafim Thibau. Com um vestido de cintura baixa verde-água, chapéu cloche no mesmo tom e sapatos de saltinho marfim, ela caminhou até a mesa de um auxiliar e perguntou: “O Mário Rodrigues está?”. Rodrigues era o dono do jornal e redator-chefe, pai do escritor Nelson Rodrigues – que tinha então 17 anos, era “foca” (repórter iniciante) e ainda levaria algum tempo até se tornar o dramaturgo famoso: sua primeira peça, “A Mulher sem Pecado”, foi escrita em 1941. O auxiliar respondeu: “Não, senhora. Pode ser com o filho dele, Roberto?” O desenhista Roberto Rodrigues, irmão de Nelson, assinava as ilustrações do “Crítica”, e foi com ele que Sylvia acabou resolvendo o que queria. Na verdade, ela não estava muito interessada em conversar. Queria apenas matar alguém da família. Enquanto o ilustrador fechava a porta da sala onde a recebeu, ela sacou de sua bolsa estilo envelope um revólver calibre 22 e, quando ele se voltou, acertou-o no abdome com dois tiros. Depois de passar por cima do corpo dele, ela saiu da sala e foi rendida pelo repórter de polícia Garcia de Almeida. “Vim para matar Mário Rodrigues, matei o filho. Estou satisfeita”, disse ela, que tinha 27 anos. Roberto estava com 23, tinha a chamada “alma atormentada” e desenhava com um traço modernista que lembrava o rococó art nouveau do inglês Aubrey Beardsley. Depois de socorrido às pressas, com uma bala na espinha, ele levou três dias agonizando no hospital e morreu. Mário Rodrigues, que tinha predileção pelo filho, morreu de desgosto menos de três meses depois.
A ira de Sylvia foi incitada por uma matéria que o “Crítica” publicou naquele dia, expondo o caso extraconjugal que a escritora mantinha com o médico Manuel Dias de Abreu – tornado famoso não só pela repercussão do crime, mas também por ter descoberto um tipo de radiografia que possibilitou o diagnóstico da tuberculose, a abreugrafia, batizada assim em sua homenagem. Sylvia era casada com outro médico, João Thibau Jr., tinha dois filhos e frequentava o “ambiente literário”. Na época, Manuel Abreu achou que poderia usar os raios X para dar um jeito nos pelos das pernas da amante, e acabou causando queimaduras que a deixaram furiosa. Ela quis processá-lo, exigindo uma indenização de 30 mil réis, mas o marido pediu que não o fizesse, para evitar falatório. A essa altura, a pulga atrás da orelha de João Thibau Jr. já havia dado sinais suficientes de que a mulher o estava traindo. Os dois chegaram à conclusão de que deveriam se desquitar, e tudo se deu amigavelmente. Como ambos frequentavam a sociedade carioca, chamaram Sylvia na redação do “Crítica” para dar uma entrevista sobre os detalhes da separação. Ela, porém, pediu ao repórter para não publicar nada. Ele concordou – mas já havia deixado o jornal quando, por um ruído na comunicação, e contra a vontade do próprio Mário Rodrigues, que estava em casa, mandaram para as rotativas um texto com as “causas ocultas” do rompimento. A matéria teve o efeito de uma bomba na cidade. Desatinada, Sylvia tentou se matar, mas seus pais a impediram a tempo, e então ela saiu de casa dizendo que ia espairecer. Em vez disso, entrou na loja Espingarda Mineira, comprou a arma e rumou para o jornal.
Presa em flagrante depois de atirar em Roberto, Sylvia sofreu um ataque ainda mais devastador do “Crítica”, que se referia a ela como “literata do mangue” e “cadela das pernas felpudas”. Aguardado com ansiedade pela opinião pública, seu julgamento, em 22 de agosto de 1930, levou dois dias e foi o primeiro no Brasil a ser transmitido pelo rádio. O advogado de defesa, Clóvis Dunshee de Abranches, alegou que Sylvia havia se descontrolado por causa da publicação de um texto difamatório a respeito de um assunto de foro íntimo. Abranches levou mais de uma hora em sua argumentação, mas o promotor Alex Gomes de Paiva não deu a tréplica. Reunido por mais de uma hora na madrugada de sexta-feira para sábado, o júri decidiu absolver Sylvia por 5 votos a 2. Gomes de Paiva não apelou da sentença. Depois da morte de Mário e Roberto, os sobreviventes da família Rodrigues ainda conseguiram levar o “Crítica” por quase um ano, mas então veio a Revolução de 30. Detrator implacável de Getúlio Vargas, que ascendia ao poder, o jornal acabou sendo invadido, empastelado e destruído por simpatizantes do regime. Começava aí a derrocada financeira da família.
O resto da vida de Sylvia não foi muito melhor. Ao longo do tempo, ela deu fartas demonstrações de que gostava de viver perigosamente. Passado o evento policialesco, ela se envolveu com um tenente-coronel da Aeronáutica chamado Armando Menezes, de quem engravidou e teve um filho batizado Ronald (Rohny). Sentindo-se “sufocado” por ela, Armando logo arranjou uma transferência para Curitiba e abandonou a mãe de Rohny. Na sequência, Sylvia teve prisão decretada pela segunda vez, quando a flagraram usando documentos falsificados para se matricular em uma faculdade de Direito. Receando um novo escândalo, a estelionatária fugiu para Curitiba. Instalada em um hotel localizado no centro da cidade, ela procurou o pai de seu filho para retomar o relacionamento – mas ele a rechaçou. Transtornada, tentou pela segunda vez o suicídio, cortando os pulsos. Fracassou. De volta ao Rio, e graças aos antecedentes criminais, ela foi presa preventivamente na enfermaria da casa de detenção de Niterói, no litoral fluminense. Ali, aos 33 anos, ela finalmente conseguiu pôr fim à própria vida, esvaziando um vidro do barbitúrico Veronal. Quem a encontrou já sem vida foi Rohny, que tentou desesperadamente “acordá-la”. O garoto foi entregue ao diretor da casa de detenção, Alvaro Martins, até que o encaminharam aos cuidados do pai. A tragédia de 1929 influenciou dramaticamente a temática dos textos Nelson Rodrigues. O tom funesto, a perversidade e a sordidez são características marcantes em sua obra. Na premiadíssima “Vestido de Noiva”, por exemplo, Nelson recria a cena do velório do irmão. Se não dá para louvar a atitude de Sylvia, e já que a atrocidade foi consumada, há de se reconhecer que forneceu material para o gênio em formação: “Meu teatro não seria como é, e eu não seria como sou, se não tivesse sofrido na carne e na alma, se não tivesse chorado até a última lágrima de paixão a morte de Roberto”, disse o dramaturgo.
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