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Dia desses, zapeando pelos canais, passava no TV5 o filme “Ascensor para o Cadafalso”, de Louis Malle. De 1957, filmado em preto e branco, estrelado por Maurice Ronet e com trilha sonora de Miles Davis, a maravilha desse filme é Jeanne Moreau, no esplendor de seus 29 anos

Por Antonio Bivar para a coluna De Conversa em Conversa, Revista J.P de dezembro

Jeanne Moreau nasceu em Paris, em 1928, filha de pais católicos. O pai, Anatole Moreau, francês, restaurateur, e a mãe, inglesa de sobrenome Buckley, ex-bailarina do Folies Bergère. Jeanne abandonou os estudos formais aos 16 anos, quando decidiu pela carreira de atriz, matriculando-se no Conservatório de Paris. Em 1947, aos 19, debutava no teatro, na Comédie Française, interpretando textos clássicos e contemporâneos. Dois anos depois já estava no cinema, aparecendo em pequenos papéis, que foram crescendo, mas os filmes ainda eram antiquados. A transformação veio em 1957, com um longa de Louis Malle, diretor da novíssima safra que iria dominar o cinema francês na década seguinte com o movimento chamado nouvelle vague. Os diretores eram jovens e as estrelas de seus filmes, de preferência jovens também. Brigitte Bardot, Mylène Demongeot, Jean Seberg, Macha Méril, Anna Karina, Catherine Deneuve… Delas todas, Jeanne Moreau era a mais velha e quilometrada. Atriz culta, era amiga de Jean Cocteau, Jean Genet, Henry Miller e Marguerite Duras. As outras eram principiantes (ainda que Brigitte logo fosse pintada em estilo cubista por Picasso). Na longa cadeia de obras marcantes, Jeanne Moreau criou um personagem que passou a desempenhar em todos os seus filmes do período: o da mulher “maldita”. Fria, calculista, vingativa e absurda. Essa personagem, que já dera sinal de vida em “Ascensor para o Cadafalso”, tomaria forma dois anos depois em “Os Amantes”, do mesmo Malle. O filme foi um escândalo em 1959. Nele, totalmente amoral, Jeanne simulava sexo oral. Para a plateia do mundo inteiro aquilo foi um choque. No Rio, vi de perto, as filas dobravam a esquina do cinema. Só se falava em Jeanne Moreau em “Os Amantes”. Ela e o filme inspiraram até Nelson Rodrigues a escrever o folhetim “Engraçadinha”. Nesse romance, Jeanne Moreau e o que ela apronta no filme são volta e meia citados, nas mais de 200 páginas.

||Créditos: Getty Images
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E nos filmes que se seguiram. Em nenhum ela fez a boazinha. É sempre fria, cruel, maldita. E deliciosamente absurda. Pouco sorria. Sua expressão de desprezo pelos homens, pelas mulheres mais jovens e pela humanidade em geral não precisava de nenhum artifício para convencer a plateia. A câmera em seu rosto era o bastante. Foi comparada a Bette Davis. Detestou a comparação. “Odeio a Bette Davis”, saiu na imprensa, ela dizendo. Tornou-se uma estrela cult no mundo todo. Em “Ligações Perigosas”, dirigido por Roger Vadim em 1959, ao lado de Gérard Philipe, ela entra no salão da festa dando uma gargalhada cinicamente teatral. Em “La Notte”, do Antonioni, 1961, passado em Milão, seu tédio milanês é maior que a angústia de Monica Vitti, a outra estrela do filme. Em “Jules e Jim”, de Truffaut, o diretor cita “As Afinidades Eletivas”, de Goethe, mas Jeanne acaba com a amizade perfeita de Jules e Jim, pegando um deles no automóvel e mandando o outro assistir o que ela ia fazer. E guiando o automóvel se atira no abismo com um deles, enquanto o outro, incrédulo à beira do penhasco, assiste a cena.

Cruel, muito cruel, Jeanne Moreau em seus papéis. Em “Eva”, de Joseph Losey, 1962, ela aparece à porta de uma igreja onde vai acontecer um casamento. Ela adentra e sem o menor esforço acaba com o casamento. O noivo (Stanley Baker) a vê e no mesmo instante abandona a noiva, a deslumbrante e juveníssima Virna Lisi. Ele larga a noiva e o ritual no altar e vai atrás da balzaquiana. Ela tem um toca-discos portátil e um LP de Billie Holiday. Daí em diante o filme é dos dois. E o homem é humilhado até literalmente se arrastar aos pés dessa Eva, femme fatale. E é com o maior dos desprezos que ela termina o filme dizendo “pauvre type” ou “pobre rapaz”, deixando-o no chão, estirado e arrasado. E sai. Em “Mademoiselle”, dirigida por Tony Richardson, em 1966, ela faz uma professora rural que se entesa pelo gostoso do lugarejo. Ele não quer nada com ela, e ela se vinga, abrindo as comportas da caixa d’água da vila e ainda botando fogo no que dá, causando incêndio geral. E assim em outros papéis, outros filmes, outros diretores do primeiro time de várias escolas. “Diário de uma Camareira”, com Luis Buñuel, em 1964. Com Orson Welles, com quem filmou “O Processo” (de Kafka), em 1963, nasceu uma amizade que duraria até a morte do ator/diretor, e várias parcerias divertidas. De Jeanne, o diretor de “Cidadão Kane” declarou: “É a maior atriz do mundo”.

Cartazes de alguns dos principais filmes que a atriz participou desde que entrou no cinema, em 1949 ||Créditos: Divulgação
Cartazes de alguns dos principais filmes que a atriz participou desde que entrou no cinema, em 1949 ||Créditos: Divulgação

De carreira firmada, Jeanne já podia se dar ao luxo de fazer filmes mais leves, para se divertir e mostrar outro côté. E como não se divertir fazendo dupla com Brigitte Bardot em “Viva Maria!”, de Louis Malle, 1965? O filme é um faroeste filmado in loco, nos States. Uma bobagem. Jeanne e Brigitte fazem duas pistoleiras francesas no velho oeste. Elas até que se divertiram – o público é que não como as duas esperavam. E assim, uma carreira vitoriosa. Passagem por Hollywood em “The Last Tycoon”, com Robert De Niro e direção de Elia Kazan, 1976. Nas mãos de Fassbinder em “Querelle”. Em Israel, 2008, sob a régia de Amos Gitai, rodou “Plus Tard”. Jeanne, além de “melhor atriz do mundo”, é uma femme du monde. Há alguns anos nos visitou, trazida pelo velho amigo Cacá Diegues. Foi muito homenageada, até pela comunidade do Vidigal. Ladeira acima? Jeanne Moreau fez questão de subir a pé. E não é de hoje que ela tem um pé no Brasil. Com seu lado cantora, que vem desde os tempos da nouvelle vague, ela gravou até samba com acompanhamento de ritmistas brasileiros. Participou de um disco de Maria Bethânia dizendo, em francês, “O poema dos olhos da amada”, de Vinicius de Moraes.

Sua ligação com o Brasil começou em 1972, quando veio cá filmar “Joanna Francesa”, dirigida por Cacá Diegues. O enredo conta a história de uma francesa que dirige um bordel em São Paulo nos anos 1930. Jeanne aceitou o convite e trouxe Pierre Cardin, seu amigo, para cuidar do figurino dela no filme, e, de quebra, ter uma participação simpática, como ator. Olha só! Além das cenas filmadas em São Paulo, pelo excelente Dib Lutfi, o diretor de fotografia do filme, outras sequências foram tomadas na fazenda da família Collor de Mello, em Alagoas. No roteiro, Joanna/Jeanne tem caso com um fazendeiro decadente do Nordeste e, claro, ela se opõe à oligarquia predominante no agreste. E da varanda da casa grande faz sua senzala e canta a música-tema, “Joanna Francesa”, composta por Chico Buarque e Roberto Menescal.

||Créditos: Getty Images
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E tem as cenas dela, cafetina, no lupanar em São Paulo. Uma de suas meninas é Ana Maria Magalhães, uma das mais bonitas e inteligentes atrizes do cinema novo. Da experiência com Jeanne Moreau no filme de Cacá Diegues, conta Ana Maria: “Contracenar com ela numa dança, mesmo brevemente, foi uma honra e um dos maiores prazeres de minha vida de atriz. La Moreau realizou os melhores sonhos das atrizes de cinema. Se manteve no topo por décadas e até hoje está na ativa. Em 2012, filmou ‘Gebo et L’Ombre’, com Manoel de Oliveira, em Portugal. Também filmei com ele em 2010, ‘O Estranho Caso de Angélica’”.

Fabiano Canosa, o melhor divulgador de nosso cinema no mundo e do cinema do mundo no Brasil, sabe de tudo e de todos, conviveu com La Moreau e diz que ela “passou o rodo”, namorou um bocado de gente, de Orson Welles a Miles Davis. Foi casada duas vezes, uma antes de ficar famosa, e outra, bem mais tarde, com o diretor de “O Exorcista”, William Friedkin. Casamento que só os dois entenderam, mas que também não durou muito. Coisa de Jeanne Moreau.

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