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O que é ser moderno em São Paulo?
O que é ser moderno em São Paulo? || Créditos: Ilustração por Gustavo Prata/Revista J.P
O que é ser moderno em São Paulo?  ||  Créditos: Ilustração por Gustavo Prata/Revista J.P
O que é ser moderno em São Paulo? || Créditos: Ilustração por Gustavo Prata/Revista J.P

Quem são, como se vestem e o que pensam as pessoas que se consideram a vanguarda da cidade. Aqui, um manual básico sobre a espécie

por Victor Martinez e Paulo Sampaio para a revista J.P de outubro
ilustrações Gustavo Prata

De todos os significados que o termo “moderno” adquiriu ao longo do tempo, o mais reconhecível pelos estudiosos de comportamento é aquele preconizado pelo Iluminismo (Europa; séc. XVII-XVIII). De acordo com a ideia da época, o homem passa a reconhecer sua autonomia quando entende, por meio da razão, que pode atuar sobre a natureza e a sociedade. Fomentado e apoiado pela elite europeia, o movimento era eminentemente racional. Agora, imagine o que um iluminista diria se desembarcasse em São Paulo nos dias de hoje e tentasse entender o conceito de “moderno”. Bem, talvez fosse proveitoso fazer uma escala no “pós-modernismo” de Andy Warhol, que produziu um superego em que “tudo vale” e “tudo deve porque pode” – inclusive, e principalmente, o espetáculo instantâneo. Recentemente, os 15 minutos de fama passaram a ser cada vez mais solitários e individualizantes – mas sem perder o caráter midiático. O moderno se fotografa, o moderno se posta, o moderno se admira. Nunca se produziram tantos selfies. Os amigos dão likes e fazem comentários, desde que ele faça o mesmo. Parece esquizofrênico, mas a tendência é forjar uma indiferença diante de tudo e todos e, ao mesmo tempo, celebrar um comportamento estilizado. Nossa crônica flagrou a versão 2015 desses “modernistas” em diversos momentos (vale lembrar que, aqui, o termo serve para  homens e mulheres)…

O que é ser moderno em São Paulo?  ||  Créditos: Ilustração por Gustavo Prata/Revista J.P
O que é ser moderno em São Paulo? || Créditos: Ilustração por Gustavo Prata/Revista J.P

Siga o Mestre

A frase preferida de um moderno é antiga: “Eu não uso essa roupa porque está na moda. Sempre me vesti assim. Pode perguntar ao povo que me conhece há mais tempo”. Ele também afirma que foi o primeiro a ir à balada X (“Ninguém sabia do que se tratava”); a gostar da música Y (“Ouvi esse som pela primeira vez em uma festa que fui numa fábrica desativada no subúrbio de Berlim, em 2008); a experimentar a bebida Z (“As pessoas bebem isso na Califórnia desde 1983. Minha mãe tava lá fazendo intercâmbio…”). É a maneira (chatíssima) que ele tem de se colocar sempre à frente do seu tempo – e de se diferenciar dos “todos errados” (meninos e meninas), que não fazem ideia do que se passa em volta. Essa rejeição aos “errados” tem origem lá atrás, na escola, quando o moderno sofria bullying.  Mas isso passou. Agora que a mídia dos anos 2000 – séries de TV, paradas de minorias, manifestações políticas e até novelas, em que há sempre dois ou três casais de gays – transformaram tudo o que era inapropriado em tendência, ele se sente mais confortável. Não significa, no entanto, que tenha se livrado do pânico do mainstream que mora dentro dele.

Em São Paulo, os modernos costumam frequentar vernissages na Galeria Vermelho (o legal é chegar de bicicleta, pela ciclovia); almoços de domingo no Ramona, na avenida São Luís; festas vespertinas em lugares que ofereçam “uma vista incrível da cidade”; fins de tarde ao som farofa-dançante 4:20 do Paribar, que fica na Praça Dom José Gaspar, perto do Ramona; baladas noturnas nos trilhos do trem da Mooca; drinques no Pitico, antes de um show no Cine Joia. No fim de semana de 7 de setembro, todos compareceram em massa à rodada de festas promovidas pela prefeitura no centro antigo – mas quase ninguém os viu. Por quê? Porque moderno não vai na festa que todo mundo vai. Ele escolhe as que lhe parecem mais insólitas. Quem não foi a pé, pegou metrô. Andar de metrô é obrigatório, de preferência quando tem gente conhecida olhando. Ao desfilar com os amigos pela cidade, eles fazem a expressão mais entediada imaginável (ou morrem de rir de uma piada interna), enquanto decidem onde gostariam de estar naquele momento. Nova York? Berlim? Londres? (alguns pensam até em Miami). Ah, melhor tomar uma cerveja no Noname, ou no Riviera; nesse segundo, o programa pode ser substituído por um filme que só está passando naquele dia, naquela hora e naquele local – o cine Belas Artes. A espera pelo começo da sessão (sempre em um horário inusual, tipo 15h52) rende uns momentos no Snapchat, ou, mais divertido ainda, um vídeo no Periscope.

O que é ser moderno em São Paulo?  ||  Créditos: Ilustração por Gustavo Prata/Revista J.P
O que é ser moderno em São Paulo? || Créditos: Ilustração por Gustavo Prata/Revista J.P

Camuflagem

O guarda-roupa do moderno é abastecido com peças que devem dar a ele, fundamentalmente, o aspecto de um ser despretensioso. A técnica utilizada na montagem do look é mais elaborada do que se imagina. De uma maneira sutil (pelo menos é o que ele acha), esse personagem tenta demonstrar que sua vestimenta faz parte de um estado pró-universo, concretizado na própria figura dele, em conjunção com a cidade. As peças milimetricamente pensadas contrastam com a paisagem “suja” de São Paulo, decorrente da ocupação urbana irregular. A estamparia inclui detalhes minimalistas, grafismos que remetem ao expressionismo abstrato e o famigerado animal print (às vezes rola um exagero no estilo do que Jeremy Scott desenha para as coleções caricaturais da Moschino). Verdadeiramente viciado em roupa de rápido consumo, esse grupo tem em lojas como Forever 21, Topshop e Zara seus templos. O fashionismo arrebanha especialmente aqueles que garantem não acompanhar as tendências. A verdade é que ninguém sabe tão bem quanto eles as cores, modelagens e peças-hits da estação. Como muitos eventos são diurnos, a cereja do bolo é o sunglass arredondado – um Ray-Ban com a lente espelhada resolve, e há quem se arrisque por trás de um Persol ou um Illesteva; as outras  alternativas são marcas brazucas que estão tentando a sorte na internet, como a Lema21 e a Livo.

A tatuagem merece um parêntese cuidadoso. Ela decora boa parte dos corpos nas chamadas tribos urbanas, mas é preciso pensar bem no desenho, no traçado e no local que ele será aplicado (para não parecer, Deus me livre!, o “errado” do primeiro parágrafo). Escolher um pedaço demasiadamente exposto (antebraço, pescoço, perna) pode comprometer a imagem do moderno no futuro, caso a moda se transforme em coisa do passado. Por outro lado, fazer justamente o contrário, e radicalizar nessas partes, pode surtir o efeito de uma ousadia, sempre bem-vinda em qualquer evento tribal.

Atualmente, nada é mais tendência do que os desenhos indígenas. São politicamente corretos, mostram engajamento com uma causa forte e falam das nossas origens. Caso o tatuado prefira chamar a atenção para o corpo, o mais indicado é o desenho geométrico. Triângulos, quadrados, cubos, pirâmides, circunferências e até elaboradas engrenagens funcionam como uma espécie de maquiagem para destacar os músculos. Uma vez resolvida a questão do desenho, é preciso ver quem vai ser o tatuador. A escolha do “artista” é tão importante que chega a contar mais do que a próprio desenho. Nessa hora, o moderno terá de passar por cima daquele sentimento de premência que sempre o domina, e exercer uma paciência inaudita. É comum esperar três meses por uma hora no estúdio de Tinico Rosa, um dos mais concorridos profissionais da área. “Ele tem mãos de fada”, justificam-se os clientes de Tinico. Contudo, se o candidato não tem como esperar, ou porque está com uma viagem marcada para a Croácia, ou porque já comprou ingressos para o Burning Man (ou para o Coachella), aí vai ter de apelar para a carteirada. Usar um tio artista da Globo, uma celebridade estilo Thammy Miranda, alguém do Porta dos Fundos. Quem sabe rola. Fica a dica.

O que é ser moderno em São Paulo?  ||  Créditos: Ilustração por Gustavo Prata/Revista J.P
O que é ser moderno em São Paulo? || Créditos: Ilustração por Gustavo Prata/Revista J.P

Cinderela

Ao sair de casa, assim como a Cinderela do conto infantil, o moderno sonha ser descoberto por fotógrafos como o suíço Yvan Rodic, do site FaceHunter, e o americano Scott Schuman, do Sartorialist, que circulam pelas grandes metrópoles do mundo registrando looks de desconhecidos em bairros como Dalston (Londres), Bushwick (Nova York), ou Navigli (Milão). Se tudo correr bem, ao chegar na festa nosso amigo será alvo de fotógrafos que costumam cobrir esses eventos. Eles clicam em sua direção, enquanto ele abraça efusivamente pessoas a quem foi apresentado na semana passada, mas que garante conhecer há pelo menos três anos. “Sigo ele no Twitter há muito tempo”, afirma. Por sua vez, esses fotógrafos buscam, ao clicar o recém-chegado, chamar a atenção para si. É como se, do alto de sua expertise em moda, dissessem: “Vejam, esse look eu aprovo”. Passada a efusão da chegada, o moderno precisa encontrar alguém que sirva de apoio fixo; enquanto essa figura não aparece, ele pega o celular e finge que está falando (ou teclando). Pode também fazer cara de paisagem, ou uma careta. Tipo uma boca tremida, um olho fechado de repente. Isso denota despreocupação em relação a possíveis fotos. A alternativa, digamos, cool, seria afetar uma expressão que queira dizer algo como: “Acabei de ouvir uma versão animal do (trio inglês) The XX”.  Imprescindível deixar claro que foi no aplicativo Soundcloud. O Spotify é muito mainstream.

Já na pista, o moderno faz uso de poucos movimentos. Pretende, assim, passar uma das seguintes mensagens – ou todas: 1) Sou muito na minha; 2) Esse som é que mata: nada por aqui passa perto do que a gente ouve no Danger – ele explica a quem está próximo que o Danger é um bar incrível, no porão de uma casa meio mal assombrada em Peckham, no sul de Londres, “uma região esquecida que agora tá bombando”; 3) Por que eu deixei Nietzsche em casa para vir a essa festa? Por que eu insisto?  Num instante de desânimo, o moderno decide beber. Precisa de algo estimulante, até “o som pegar mesmo” (se é que vai pegar). Está na dúvida entre um gim tônica e um saquê on the rocks. Cerveja é ok: “vê se tem uma artesanal?”. Depois de um ou dois drinques, os movimentos começam a ficar mais amplos, a tomar mais espaço na pista, sobretudo nas músicas que não têm o respaldo da maioria. Conforme a evolução, pode até rolar uns pulos, acompanhados do lipsync das frases do refrão. Caso a empreitada pareça ambiciosa demais, e o moderno perceba que a bebida não foi suficiente para a devida soltura do corpo, ele então lança mão de uma “bala” (ecstasy), ou um “doce” (LSD);  tem também o MDMA (conhecido como “Michael Douglas”, um primo do ecstasy). Combinados com drogas como a fluoxetina (ou paroxetina, dependendo do tipo de depressão diagnosticada: “positiva” ou “negativa”), isso pode catapultá-lo para outra dimensão, transformando aquele momento em uma experiência transcendental. Festas em lugares abertos (praças, coberturas, terraços) são valorizadas, já que o ar da cidade no rosto potencializa a vivência transgressora.

O que é ser moderno em São Paulo?  ||  Créditos: Ilustração por Gustavo Prata/Revista J.P
O que é ser moderno em São Paulo? || Créditos: Ilustração por Gustavo Prata/Revista J.P

Minimal Gângster

Em frente ao laptop, o fone em apenas um ouvido, o DJ precisa mostrar que está por dentro da tendência musical do momento e, ao mesmo tempo, criar sua própria “obra”. (Embora a maior parte dos DJs saiba exatamente o tipo de música que arrasta multidões para as pistas, eles sempre vão preferir algo “autoral”). E qual seria a tendência musical? Na São Paulo dos modernos, a base são ritmos negros que “surgiram nos subúrbios de Chicago, Los Angeles ou Nova York”. A palavra subúrbio agrega horrores. Dá ao moderno a sensação de que ele: 1) circula nos mais variados ambientes; 2) é o próprio negão; 3) tem cultura musical sólida, a ponto de saber que o som que influencia o mundo hoje surgiu nos guetos americanos. Esse som, nas festas, se traduz em criativos remix de hip-hop oriundos de vários estilos de música eletrônica – desde o chamado trap até o future garage.

Três referências obrigatórias são os cantores americanos Tyga, Kanye West e Macklemore.  Tyga é filho de um jamaicano com uma vietnamita; Kanye, em suaíli, significa “único”; e Macklemore, que é branco, aparece em vídeos ladeado por loiras e negras, numa demonstração metafórica de que sua música atinge diferentes etnias. (A camiseta oversized usada pelos astros do hip-hop virou peça decisiva na identificação de um determinado tipo de moderno: ele a usa com uma calça de corte straight. A skinny “já foi”, too yesterday news). Lá pelas tantas, o DJ muda subitamente o rumo da toada, efetuando uma espécie de corte epistemológico no ritmo. E então, de repente, ele toca “A Luz de Tieta”, de  Caetano Veloso, numa versão até ali inimaginável, com cuícas pontuais marcando o apreço pelo samba. No instante em que sente a brasilidade batendo forte no peito, o moderno reage alto; solta uma gargalhada espontânea (hahahahaHAHAHAAH), seguida de um ruidoso “Genteeee, olha isso!”. Se por acaso ele ficar com alguém, foi porque rolou sintonia. Ou, às vezes, destino. Por que não? Com o intuito de demonstrar a conexão com a garota (ou garoto), ele diz aos amigos, no dia seguinte, “compartilhamos mais de 120 likes”.

O que é ser moderno em São Paulo?  ||  Créditos: Ilustração por Gustavo Prata/Revista J.P
O que é ser moderno em São Paulo? || Créditos: Ilustração por Gustavo Prata/Revista J.P

Artsy

Em eventos que pedem uma postura reverencial, como um vernissage, o moderno mostra toda sua versatilidade. Aparece, por exemplo, com uma camisa minimalista de alguma marca nacional nova, estilo Trendt, e uma “calça de alfaiataria do João Pimenta”. As mulheres surgem dentro de, digamos, um vestido garimpado no brechó Gato Bravo. Na maior parte das vezes, ou tudo branco, ou tudo preto (isso pode incluir os respectivos tons dessa paleta: cinza, nude, off-white). A roupa deve ser bem acabada, se possível até com um corte geométrico ou desestruturado, mas nada que neutralize o efeito dos acessórios. Eles são o destaque. Algumas possibilidades: cinto verde neon; anel assinado da Choix; tênis Camper com cadarço colorido; colar da Amazônia (encontrado também na Feira na Rosenbaum, em Pinheiros). Depois de cumprimentar os circunstantes e de dar um jeito de sair nas fotos, ele se concentra na obra que menos atraiu pessoas. Passa ali três minutos, examinando cada detalhe, com a cabeça ligeiramente inclinada para o lado e a mão no queixo (pode rolar um sorriso quase imperceptível; se ninguém reparar, ele dá uma reforçada na pose, podendo utilizar até o corpo todo, mas com cuidado: na maior parte das vezes, as pessoas apenas fingem que não estão reparando). Esses três minutos são aferidos no relógio digital Casio vintage. A legenda que acompanha a foto postada no Face deve ser uma única palavra. Ex: “fundo”, “pele”, “labirinto”, “tempo”. Se, por ventura, o moderno estiver inspirado, até pode produzir um comentário maior, já que aquele é o espaço que ele dispõe para mostrar todo o seu conhecimento de história da arte. Numa pensata, ele reconhece que o trabalho do artista é “difícil” e sugere aos visitantes da exposição que abram os olhos para alcançar a complexidade da obra. Lamenta que muita gente não consiga, “por puro preconceito”. Num acesso de ousadia, diz que é o mesmo preconceito que leva as pessoas a subestimar Miami. Afinal, diz, até uma viagem à cidade mais cafona do mundo pode ser divertida (e moderna!), se for feita com bom humor (olha a paroxetina!). Aos candidatos, boa viagem.

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