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A delação premiada é definitivamente o assunto da vez. Mas será que a prática pode ser defendida do ponto de vista ético? Ou vale tudo para prender político ladrão?

Por Julia Furrer para a revista PODER de setembro

Odiamos delatores desde que o mundo é mundo. Judas entregou Jesus por 30 moedas de prata. Joaquim Silvério dos Reis determinou o fim da Inconfidência Mineira e até o cantor Wilson Simonal teve a carreira arruinada depois de ter sido chamado de traidor. É de causar espanto então que, de uma hora para outra, pessoas como o doleiro Alberto Youssef provoquem algum tipo de empatia. No caso, a discussão ética tem razão de ser. Às voltas com os processos da Operação Lava Jato, o termo delação premiada nunca esteve tão em voga.

Trata-se (todos já sabemos) de um benefício concedido a um criminoso que aceite colaborar entregando nomes de outros envolvidos na investigação. A prática está prevista na legislação brasileira desde os anos 1990, mas só depois da lei anticorrupção sancionada pela presidente Dilma Rousseff, em 2013, é que o Estado pôde de fato estabelecer garantias em troca do depoimento dos réus.

O tema divide opiniões. O advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, faz parte do grupo de criminalistas que ainda se recusa a trabalhar para clientes que optem por essa tática de defesa. “Desde moleque fui ensinado que quem era pego aprontando e dedurava o outro era ainda mais castigado”, diz. Em recente conversa com a imprensa, a presidente mostrou ter a mesma opinião. “Eu não respeito delator, até porque eu estive presa na ditadura e sei o que é. Quiseram me transformar em uma, mas resisti bravamente”, afirmou, provocando, como sempre, alguma polêmica. A advogada e mestra por Harvard Ana Paula Martinez comenta: “Temos um legado cultural forte de rejeição à traição, mas não podemos equiparar todo tipo de delator. O sujeito que provoca a morte de alguém ao entregá-lo é diferente daquele que contribui com o Estado revelando um esquema criminoso”, diz. O ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça Gilson Dipp nem entra na discussão, que considera totalmente ultrapassada. “Essa já é uma realidade sustentada legalmente, não cabe discutir. O que devemos questionar é o modo como vem sendo utilizada”, defende. Ultrapassada ou não, é mesmo difícil encontrar quem – por princípios – se posicione contra uma tática de investigação capaz de desmantelar esquemas sofisticados e colocar atrás das grades nomes até então improváveis (para não dizer impossíveis).

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A TEORIA NA PRÁTICA É OUTRA

A coisa muda de figura, contudo, quando o assunto se vira para a delação na prática. As críticas são muitas e tornam o tema ainda mais polêmico. Dipp questiona, por exemplo, o princípio da voluntariedade. Consta na lei que o acusado deve colaborar por livre e espontânea vontade com a investigação policial, o que, segundo ele, não está acontecendo. “Tem muita gente presa preventivamente sem necessidade. Claro que a intenção é deixá-los mais fragilizados e propensos a falar”, afirma. Kakay concorda: “Há vários casos em que o Ministério Público procura o cidadão fazendo ameaças e oferecendo benefícios em troca da delação. Além de ser inconstitucional, isso ainda interfere na credibilidade dos depoimentos”. Usando como base a fala do juiz federal Sérgio Moro durante o 21º Seminário Internacional de Ciências Criminais, que aconteceu em agosto, em São Paulo, vemos que a prisão para provocar a delação não é uma prática incomum. Segundo ele, só há três motivos possíveis para a colaboração: arrependimento, prisão cautelar ou expectativa de prisão. O jurista e professor titular de filosofia do direito da Faculdade de Direito da USP até sua aposentadoria, em 2009, e um dos especialistas mais respeitados do Brasil, Tercio Sampaio Ferraz condena: “A prisão cautelar é um instrumento legal, mas o sujeito não pode ficar em cárcere até abrir o bico. Essa é uma fórmula que faz com que a prisão descambe para a tortura”, afirma. Ana Paula concorda que a delação deve ser voluntária, mas, cética, diz que o arrependimento jamais será uma hipótese para um criminoso contribuir com o Estado. Para ela, nem todo acusado que opta pela delação está sendo coagido. “É mais uma alternativa de defesa”, pondera.

Dipp ainda vê banalização da prática. “Ela vem ocorrendo de forma indiscriminada e não pode ser o único meio para obtenção de provas, mas algo pontual. Daqui a pouco até ladrão de galinha fará delação”, brinca. De fato, se tomarmos como exemplo os Estados Unidos, país reconhecido mundialmente por sua inteligência investigativa, veremos que 90% dos cartéis punidos tiveram a delação como ponto de partida.  Lá a coisa é tão disseminada que, em 2012, a revista Time premiou com o título de personalidades do ano as delatoras das fraudes da Enron e WorldCom – dois dos maiores escândalos corporativos globais. O país chega a oferecer ao colaborador de 10% a 30% do dinheiro recuperado depois do processo ser finalizado. Parece distante? Talvez nem tanto. Segundo matéria publicada em janeiro nos jornais Folha de S.Paulo e O Globo, aqui no Brasil a defesa de Alberto Youssef teria incluído no acordo de delação premiada uma cláusula de “performance” que estipula que, além de ter a pena reduzida para no máximo cinco anos, ele ainda receberia 2% de todo o dinheiro que ajudasse a recuperar. Isso quer dizer que, mesmo culpado, o doleiro conseguiria colocar as mãos em até R$ 20 milhões ao fim da ação. O Ministério Público, entretanto, divulgou nota negando que o acordo tenha sido firmado. Sampaio Ferraz diz que a situação é perigosa, pois torna alguns direitos fundamentais e intransponíveis negociáveis. “Para qualquer um que acredite que a dignidade da pessoa humana deve prevalecer é um risco muito grande entrar nesse clima de barganha em que a ideia de cálculo passa a governar”, diz.

PAU QUE DÁ EM CHICO…

Outro aspecto duramente criticado é a divulgação dos nomes citados pelos delatores. O sigilo deveria prevalecer até que a investigação fosse concluída, mas não é o que acontece. “As pessoas estão acompanhando a Lava Jato como se fosse novela”, diz Kakay, que segue: “Essas delações televisionadas, com coletiva de imprensa, são um absurdo”. Dipp completa: “É o assunto da vez e quanto mais o processo cresce, mais difícil fica aplicar a lei corretamente”. O grande problema, acreditam os juristas, é que muito antes de serem investigados, os nomes citados pelos delatores já são declarados culpados pela população. “A sociedade precisa dessas válvulas de escape. Um político ou um grande empresário preso gera essa sensação de prazer”, afirma Kakay, que condena o que chama de cultura do espetáculo policialesco. Para Sampaio Ferraz, a mídia está fazendo seu papel. “Ela precisa de personalidades, de show, mas essa quebra de sigilo falsamente chamada de transparência não contribui em nada para a democracia”, afirma.

 

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