Revista J.P: um promotor inconformado e um crime passional

||Créditos: Ilustração Hare Lanz

Inconformado com o pedido de separação da mulher, o promotor João Luiz Portolan Minniccelli aproveitou a tranquilidade de uma sexta-feira de dezembro e a chamou para uma conversa na cozinha

Por Paulo Sampaio para a Revista J.P de abril

Uma invasão de pernilongos no fim da tarde de 2 de dezembro de 2002 levou o promotor João Luiz Portolan Galvão Minnicelli Trochmann a fechar todas as janelas de casa. Na ocasião, o promotor vivia com a mulher, a advogada Érika May Trochmann, e as duas filhas do casal em uma chácara no condomínio Vale Verde, em Valinhos, 82 km de São Paulo. Trochmann dava expediente no fórum da Lapa, região oeste de São Paulo. Havia tempo que o relacionamento dos dois atravessava uma crise e, para colocar um ponto final nas desavenças, Érika tentou separar-se do marido amigavelmente. Ele opôs tamanha resistência que ela teve de recorrer à Justiça. Na tarde em que os pernilongos incomodaram o promotor, Érika havia recebido o alvará judicial autorizando a separação de corpos. Fechar a janela teria sido uma atitude prosaica, acima de qualquer suspeita, se Trochmann não estivesse muito mais incomodado com o alvará. Àquela altura do dia, ele já havia dispensado o jardineiro, prendido os cachorros e dado um jeito de fazer as filhas saírem com a tia. Fechado na casa com a mulher, ele ofereceu a ela um cafezinho…

Os lotes do condomínio Vale Verde têm entre 1 mil m² e 5 mil m², o que garante aos moradores uma relativa privacidade em relação aos vizinhos. Em geral, quem escolhe morar na região busca ar puro, áreas verdes e silêncio. Cerca de 900 famílias vivem ali, sendo que boa parte prioriza o fato de o condomínio estar a cerca de uma hora de São Paulo. Apesar de os incorporadores do empreendimento terem vendido a ideia de “chácaras”, as casas ali têm uma arquitetura bem urbana. Com 1.040 lotes, o condomínio tem quatro lagos naturais e é equipado com um clube de 50 mil m². A casa dos Trochmann tinha um status mediano. Um imóvel de três quartos, como o deles, vale cerca de R$ 690 mil, segundo a corretora Rosamaria Alberto. Depois da tragédia, o casal se desfez da casa.

||Créditos: Ilustrações Hare Lanz

PÂNICO, PAVOR, GRITARIA

Assim que Érika chegou à cozinha para tomar o cafezinho, o marido a rendeu com um revólver Rossi calibre 38, apontou o cano na direção de sua cabeça e disse: “Ajoelha e começa a rezar porque você vai morrer!”. De acordo com os autos do processo, Érika ficou desesperada, começou a chorar e implorou para que Trochmann não a matasse. O promotor estava transtornado, mas ainda assim acedeu ao pedido da mulher de ir ao banheiro. Ele a acompanhou até o lavabo, sempre com a arma apontada para ela, e a obrigou a deixar a porta aberta. Em determinado momento, ela tentou empurrá-lo para fechar a porta, mas foi facilmente dominada. Então os dois travaram uma luta corporal no chão do lavabo, que tem cerca de 3 metros quadrados. De acordo com a denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral de Justiça, a quem cabe fazer a acusação de crimes cometidos por promotores, foi naquele momento que Trochmann executou o disparo que feriu Érika no rosto. Segundo o procurador Luiz Antonio Guimarães Marrey, a bala atingiu o queixo da advogada, atravessou seu pescoço e foi alojar-se na coluna cervical. Érika conseguiu girar a arma na direção do marido, que é canhoto, e acertou de raspão a mão direita dele.

Com o impacto do projétil, ela sangrou muito no rosto e, tomada de pavor, desmaiou. Reanimada pelo marido, implorou a ele que não a deixasse morrer. Naquele momento, Trochmann parecia recuperado daquilo que sua defesa chamou de “surto”. Disposto a salvá-la, a carregou até o carro e a conduziu à Santa Casa de Valinhos. No caminho, o promotor deparou com uma blitz, mas furou a barreira de policiais. Impôs à mulher, como condição para salvá-la, que ambos apresentassem à polícia a versão de que haviam sido assaltados. “Ele estava fora de seu juízo próprio”, argumentou o advogado contratado para defendê-lo, Alberto Zacharias Toron, o mesmo que atuou na defesa dos juízes Nicolau dos Santos Neto, o Lalau, e João Carlos da Rocha Mattos (Operação Anaconda). “Ele se viu envolvido em uma grave crise emocional. Foi um homem que, sofrendo a dor da rejeição, se transformou em um farrapo humano”, alegou Toron. Procurada pela reportagem, Érika preferiu não se manifestar.

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FOI ELE!

Perseguido por vários carros da polícia, Trochmann percorreu em alta velocidade o trajeto até a Santa Casa. Ao chegar com Érika à emergência, o promotor de Justiça contou aos médicos, enfermeiros e funcionários a versão que havia combinado com a mulher. Fez o mesmo em relação aos policiais, que apareceram na sequência. No primeiro descuido do marido, porém, Érika deu um jeito de revelar que o autor dos tiros tinha sido ele. Pressionado pelos policiais, o promotor acabou confessando o crime e foi preso em flagrante. Uma semana depois, às vésperas do Natal, o procurador-geral Luiz Antonio Marrey ofereceu a primeira denúncia contra Trochmann, imputando a ele o crime de tentativa de homicídio duplamente qualificado – por motivo torpe e usando recurso que impossibilitou a defesa da vítima.

Além da condenação penal, pedindo a prisão de Trochmann, Marrey propôs quase que ao mesmo tempo uma ação civil para a perda do cargo. “A condenação pode levar automaticamente à pena administrativa, mas a ação civil funciona como garantia (caso a penal prescreva)”, explica Marrey a J.P. Ele alegou que o réu reagiu ao pedido de separação da mulher com intolerância, despeito, egoísmo e prepotência. Usou também a qualificadora da “deformidade permanente”. “O acusado quis matar a vítima para puni-la pela decisão de se afastar e para impedi-la de realizar uma nova união.” Para reforçar a torpeza da motivação, Marrey aludiu a uma citação do réu: “Ele mesmo [Trochmann] revelou sua intenção, ao dizer à vítima: ‘Se você não me quer mais, ninguém vai ter você’.”

O Órgão Especial do Tribunal de Justiça recebeu a denúncia em janeiro de 2003. Na ocasião, Trochmann foi posto em liberdade provisória. A defesa aferrou-se na tese do “arrependimento eficaz” e pediu a improcedência da ação penal. Alegou que o promotor, depois de atirar na mulher, salvou a vida dela. Toron instou os julgadores a levarem em conta a confissão espontânea do réu. Para afastar as qualificadoras (motivo torpe e impossibilidade de defesa da vítima), tentou convencê-los de que a intenção do promotor não era matar a mulher, mas se suicidar. Seguindo esse raciocínio, o advogado ainda quis persuadir a plateia a acreditar que Trochmann já havia resolvido pôr um fim à própria vida, mas antes quis deixar uma “marca na mulher”. Toron chegou ao ponto de atribuir a Érika a imprudência de tentar desarmar o marido, causando, assim, o disparo acidental que a atingiu. Nesse ponto, explicou que o promotor havia fechado as portas e janelas da casa para evitar a entrada de pernilongos. “Estamos diante de uma tragédia familiar”, alertou ele, dramaticamente.

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VITÓRIA DA DEFESA

Em agosto de 2005, o Supremo Tribunal Federal rejeitou a denúncia contra Trochmann. Toron havia recorrido à instância superior alegando “excesso acusatório”. Voltou ao argumento de que o réu prestou socorro à vítima. Defendeu que o que houve foi lesão corporal e não tentativa de homicídio. Deu certo. O Supremo entendeu que não seria o caso de enquadrar o promotor no crime de tentativa de homicídio duplamente qualificado. Para fundamentar a decisão, valeu-se do artigo 15 do Código Penal, segundo o qual “o agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado do delito se produza, só responde pelos atos (criminosos) já praticados”. Em 29 de dezembro do mesmo ano, o procurador-geral que sucedeu Marrey, Rodrigo Pinho, ofereceu nova denúncia ao Tribunal de Justiça de SP, agora por lesão corporal gravíssima – visível a olho nu, graças à deformidade permanente da vítima. A denúncia só foi aceita pelo órgão especial do TJ em outubro do ano seguinte.

Em 17 de março de 2010, uma quarta-feira, Trochmann foi condenado a cinco anos de reclusão em regime semiaberto e à perda de cargo público. Os 25 desembargadores do órgão especial acolheram por unanimidade a pena de reclusão, mas houve divergência em relação ao efeito automático de perda do cargo. O voto divergente partiu do desembargador Munhoz Soares, que recebeu a adesão de outros três integrantes do colegiado. A defesa afirmou que recorreria da sentença. A reportagem ligou para o escritório de Toron, deixou recado, mas o advogado não retornou até o fechamento desta edição.
Em 17 de fevereiro, por 7 votos a 4, o Supremo Tribunal Federal (STF) passou a admitir que uma pena fosse executada antes do fim do processo (em linguagem técnica, trânsito em julgado). Ou seja, mesmo que ainda haja possibilidade de recurso, o réu pode ir preso. Para a maioria das pessoas que são julgadas por apenas um juiz, isso ocorre na segunda instância. Para pessoas com prerrogativa de foro, como o promotor, que é julgado por colegiados, ocorre logo na primeira decisão.

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Procurada pela reportagem, para saber que procedimento o procurador-geral Márcio Fernando Elias Rosa vai tomar, a assessoria do Ministério Público de São Paulo informou que eles estão “fazendo um levantamento de todos os casos que se encaixam no novo entendimento do STF”. Em tempo: o MP pediu com relativa agilidade a execução da pena do ex-seminarista Gil Rugai, condenado a 33 anos e nove meses de prisão pelo assassinato de seu pai e de sua madrasta; e a do ex-senador Luiz Estêvão de Oliveira e do empresário Fabio Monteiro de Barros Filho, ambos condenados a 31 anos de prisão por peculato, corrupção ativa, estelionato, formação de quadrilha e uso de documento falso. Rugai foi preso dia 22 de fevereiro. Os outros dois, em 8 de março. Nenhum dos três têm prerrogativa de foro.

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