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||Créditos: Reprodução / FOLHAPRESS
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Bonitão, taciturno e ciumento, o aviador da aeronáutica Alberto Jorge Bandeira foi acusado de matar, em 1952, o bancário Afrânio Arsênio de Lemos, que seria amante de sua namorada.  Suposto pivô do assassinato, Marina de Andrade Costa passou a ter projeção de estrela de cinema.  O “Crime do Sacopã”, como ficou conhecido, tornou-se um dos casos mais lembrados da crônica policial carioca

Por Paulo Sampaio para a Revista J.P

Até seis de abril de 1952, o bancário Afrânio Arsênio de Lemos não passava de um pacato cidadão que tinha paixão por carros e frequentava a boemia do eixo Copacabana-Leblon. Naquele dia à noite, quando foi assassinado com três tiros de revólver calibre 32, virou o protagonista de um dos crimes mais lembrados da crônica policial do Rio de Janeiro. Encontraram Lemos morto em seu Citroen preto, na ladeira do Sacopã, que sobe na Fonte da Saudade, trecho entre a Lagoa Rodrigo de Freitas e o Humaitá.  Afastada a hipótese de latrocínio, a investigação partiu da fotografia de uma moça que estava no bolso da vítima com uma enigmática dedicatória: “Esse sorriso te pertence. Marina”.  Logo se descobriu que o bancário era notoriamente mulherengo, informação muito valiosa na apuração do caso.

Apesar de variar muito de namorada, a ponto de não se saber quem era a oficial, Lemos reservou para a ex-amante Marina de Andrade Costa, então com 18 anos, um posto de destaque. Nunca deixou de assediá-la. A imprensa chegou a publicar a informação, logo desmentida, de que ela seria mulher dele. O bancário havia sido casado, mas com uma moça chamada Ismênia Tuneis. O foco da investigação então passou a ser Ismênia. Mas a união deles não durou dois anos, segundo ela por “incompatibilidade de gênios”. A polícia perseverava atrás de pistas promissoras, mas sempre voltava à estaca zero.

Até que surgiu a primeira testemunha por assim dizer consistente. A empregada doméstica Gilda Pacine se apresentou na delegacia para contar que na hora do crime estava na orla da Lagoa com o namorado, um sargento da PM.  Disse que viu quando dois homens discutiram dentro de um carro preto, próximo ao Clube Caiçaras, até que ambos saíram e passaram a trocar socos e pontapés. Então, um deles atirou três vezes contra o peito do outro. Gilda identificou o rosto da vítima com o das fotos de Afrânio nos jornais. Se pelo menos houvesse a imagem de algum suspeito, quem sabe ela pudesse reconhecê-lo. De qualquer maneira, seu depoimento foi considerado um tanto fantasioso.

Quadris Fartos

A opinião pública cobrava da polícia uma resolução rápida para o crime. A imprensa colocava lenha na fogueira. Pressionado, o delegado encarregado do caso, Hermes Machado, usava de evasivas. Na falta de um suspeito convincente, voltou os holofotes para Marina de Andrade Costa, cuja imagem preenchia os requisitos clássicos de pivô da tragédia. Morena de sorriso largo, quadris fartos e jeito brejeiro, Marina se tornou uma instant celebrity – alguns profetizavam até uma carreira no cinema. Em um desabafo público, ela disse que estava exausta da perseguição dos repórteres e que não tinha mais energia para enfrentar os olhares acusadores na rua. Investigadores e imprensa deram a ela uma trégua. Mas por pouco tempo.

A polícia agora tinha colhido mais informações sobre o cotidiano da vítima. Sabia que Afrânio Arsênio de Lemos morava no Engenho Novo, região central do Rio, trabalhava na agência do Banco do Brasil de Botafogo, gostava de esportes e tinha paixão por corridas de automóvel. No dia do crime, de acordo com sua irmã, Lemos chegara em casa por volta das 14 horas,  vindo de uma temporada de férias em Bauru. Às 20h30, o telefone tocou, ela atendeu. Do outro lado da linha, falava uma voz masculina. Primeiro, Afrânio disse ao interlocutor que estava cansado da viagem e não pretendia sair de casa. No meio da conversa, porém, concordou em encontrar-se com a pessoa às 22h30, em frente ao Iate Clube. Nunca mais retornou. Apesar do depoimento da irmã de Lemos, a investigação não evoluiu muito.

Marina de Andrade Costa, que teria sido o pivô do crime
Marina de Andrade Costa, que teria sido o pivô do crime||Créditos: Folhapress

Galã Mexicano

Sempre pronta a sair pela tangente, a polícia jogou Marina de Andrade Costa de novo na arena. Só que agora havia um elemento que sempre esteve por perto, mas foi ignorado: o atual namorado dela, um tenente aviador chamado Alberto Jorge Franco Bandeira, na época com 21 anos, que servia no Ceará e estava no Rio para participar das Olimpíadas das Forças Armadas. Alto, fechadão, pinta de galã mexicano, ele era o personagem que a opinião pública precisava para chamar de suspeito. Tanto mais porque todos acreditavam na hipótese de crime passional, tendo uma mulher como pivô. Segundo se especulou, no telefonema testemunhado por sua irmã, Afrânio teria topado um encontro de acerto de contas com Bandeira, no Iate Clube.  Dali, os dois e um terceiro homem que ocupava o banco de trás, rodaram pela Lagoa até que a discussão ficou acalorada, e eles pararam perto do Caiçaras. Já do lado de fora do carro, Bandeira teria alvejado o rival.  Depois de morto, o bancário foi abandonado dentro do carro na ladeira do Sacopã.

Para esclarecer o crime, era preciso, portanto, saber a arma que o tenente usava e confrontar as balas com as que foram extraídas do corpo da vítima. Nesse ponto, porém, graças à exposição que o caso ganhara na mídia, começou a aparecer gente disposta a ficar famosa. Um deles foi um advogado chamado Leopoldo Heitor, que procurou a polícia para dizer que um cliente seu era testemunha ocular da história. Ele afirmou que ainda não poderia revelar a identidade do cliente. Entretanto, ia diariamente ao distrito, dava entrevistas, brigou com o delegado e, quando os jornalistas estavam na iminência de descobrir o nome do envolvido, ele soltou a bomba. A testemunha era Walter Avancini (nada a ver com o falecido diretor de novelas), o homem no banco de trás do carro. Avancini seria amigo da vítima e o teria encontrado na ponte-aérea de SP para o Rio, depois da temporada de Lemos em Bauru. No avião, segundo Avancini, o bancário se abrira a respeito de um romance secreto que mantinha desde a época que ainda era casado.

O nome da moça era Marina e, naquele momento, namorava um militar da aeronáutica conhecido como tenente Bandeira.  Lemos teria confessado sentir medo de ser morto, já que Bandeira estava ciente da paixão dele por Marina. O mais sensacional, no entanto, ainda estava por vir. Em um depoimento bombástico, o estudante de arquitetura Gilberto Nogueira Bastos contou à polícia que, no dia do crime, viu duas mulheres aflitas tentando pegar um táxi. Sensibilizado, ele ofereceu carona a ninguém menos que Marina e a mãe dela. Elas estavam indo para o Iate Clube. Durante o trajeto, ele soube que as duas teriam saído de casa para tentar evitar uma tragédia. O estudante não chegou a deixá-las no clube, pois, como não encontraram ninguém no local, elas pediram a ele que as levasse a um endereço no Leblon.  No dia seguinte, ele soube do crime pelo rádio e ligou os fatos.

Nego tudo

O depoimento do estudante levou a polícia a intimar Marina. Acuada, ela confirmou tudo o que o estudante havia dito. Explicou ao delegado que nunca contou essa história a ninguém porque havia sido ameaçada de morte por Bandeira. Logo em seguida, contudo, ela afirmou à imprensa que tinha prestado depoimento sob coação. Que sequer conhecia o estudante. E que, se perguntada, negaria tudo em juízo.  Nem deu tempo do delegado Machado festejar o avanço nas investigações. Diante dos fatos, a Justiça pediu a prisão preventiva do tenente Bandeira, que desembarcou na delegacia cercado de fotógrafos e repórteres.

A essa altura, Marina e o tenente eram tratados como superastros. Especulava-se os restaurantes que frequentavam, as butiques onde compravam suas roupas e que gênero de filmes gostavam de assistiar. Pouco tempo depois, houve a pronúncia do caso, presidida pelo juiz Costa Caiubi no 1º Tribunal do Júri.  Diante de uma platéia de estudantes de direito e curiosos, o promotor Emerson Lima e o advogado de defesa Romeiro Neto dramatizaram verborragicamente suas teses – o primeiro afirmava não ter dúvida de tratar-se de um crime passional praticado por um homem frio e cruel.  O outro alegava que não havia consistência nas provas contra seu cliente. Novas testemunhas apareceram.

A primeira, Alberto Tunay, afirmou que passava pelo local do crime quando ouviu disparos e se aproximou do Citroen preto para saber o que tinha acontecido. Então, viu um homem parecido com Bandeira segurando um revólver. A segunda testemunha era uma moça chamada Maria Raimunda Ribeiro. Contou que sua amiga Marina de Andrade Costa esteve em sua casa dias depois do ocorrido e ligou para o namorado, que estava no Ceará, para pedir a ele que se desfizesse de sua arma porque soubera que um comissário da polícia do Rio havia sido enviado a Fortaleza para fazer investigações. Durante os depoimentos, Bandeira “não movia um músculo da face”. De acordo com os jornais da época, “o tenente era impávido colosso”. “Seu semblante era absolutamente neutro, mais chegado ao taciturno.” Ao depor, ele se apegou obstinadamente ao que disse no início. Que conhecia Afrânio apenas por um episódio, quando o bancário tirara um fino dele e de Marina com sua moto Harley Davidson. Afirmou que na hora do crime estava na casa de sua avó.

Pescoço torcido

A terceira depoente foi Elda Peres, amiga da mãe do tenente. Elda contou que Marina havia pedido a ela que guardasse a arma de Bandeira, porque se a deixasse na casa onde ele morava com a mãe, “a polícia descobriria em dois minutos”. A testemunha ainda disse que, ao saber do pedido de Marina, o tenente teria tido um ataque de fúria e afirmara que ela merecia ter o pescoço torcido como o de um frango, até morrer. Para completar, a filha de Elda, Leila Peres, afirmou que ele tinha um “ciúme doentio” da namorada. No dia de seu depoimento, Marina entrou no plenário vestida “como uma estrela de cinema”. Muito firme, impressionou a platéia pela tranquilidade com que abordou os pontos mais delicados do processo. Como já se esperava, negou tudo o que tinha dito ao delegado Hermes Machado. Disse que, sob coação, assinaria qualquer documento.

Walter Avancini depôs no dia seguinte. Chegou com o advogado Leopoldo Heitor, contando que os dois haviam sofrido uma emboscada em Copacabana e que seu carro ficara crivado de balas. Em meio a muito histrionismo, Avancini soltou: “Eu estava no Citroen na hora do crime. Foi o tenente quem matou Afrânio.” Em sua versão, ele marcara um encontro com Lemos em Copacabana às 23 horas e o bancário chegara acompanhado de Bandeira. Os três tomaram o rumo do Iate Clube, “ninguém falando com ninguém”.  De lá, seguiram para a Lagoa. Na proximidade do Caiçaras, depois de uma discussão, os dois saem do carro. Segue-se uma breve luta, até que Bandeira dispara três tiros no peito do bancário. Apavorado, Avancini sai correndo, pega um táxi e desaparece. No tribunal, disse que não contara nada à polícia porque, como tinha antecedentes criminais, não queria ser envolvido no caso.

Papai é de morte

Em uma nova reviravolta, o caso adquiriu nuances políticas, quando a imprensa começou a publicar que um senador chamado Alencastro Guimarães estaria por trás do assassinato de Afrânio Arsenio de Lemos. De acordo com as especulações, a filha do senador, uma socialite viúva chamada Mimi, teria tido um caso com Lemos. Inconformado, Guimarães contratara dois homens para matá-lo.  Para que não suspeitassem dele, usou sua influência política no sentido de incriminar o tenente Bandeira.

A novela se arrastou até o final de 1952 e, apesar de ter sido apresentado à Justiça como assassino, o tenente agora era considerado inocente por boa parte da opinião pública. Seu charme encantava as mulheres, e suas negativas pareciam convencer os homens. Mesmo assim, dois anos depois, em um dos julgamentos mais concorridos do Rio, Alberto Jorge Franco Bandeira foi condenado a 15 anos de prisão. Depois de cinco dos sete anos que cumprira, um deputado sensacionalista chamado Tenório Cavalcanti, eleito na Baixada Fluminense, tomou as dores de Bandeira e passou a questionar a legitimidade de seu julgamento. Tenório, que foi interpretado no cinema por José Wilker, aproveitou suas desavenças com os jornais “O Globo” e “Última Hora” para acusá-los de levar um inocente para a cadeia.

Assim, por tabela, o fuzuê armado por Cavalcanti acabou favorecendo Bandeira. Em dezembro de 1972, alegando encontrar falhas no processo, o Supremo Tribunal Federal anulou o julgamento. “É a Justiça em que eu sempre acreditei”, disse o tenente, chorando. Em 1974, ele conseguiu ser reintegrado à aeronáutica com a patente de capitão. Apesar da aparente volta por cima, Bandeira passou o resto da vida se lamuriando, amargurado. “Na época em que fui julgado, condenado e preso, pouca coisa pude fazer. Tudo o que pensava era no sentido de provar minha inocência. Mas não tinha dinheiro  para pagar advogados”, disse ele em uma entrevista exclusiva à revista “Veja”,  uma semana antes da anulação de seu julgamento. Depois que obteve a liberdade, casou-se e teve uma filha. Morreu em 2006, repetindo que foi o mais injustiçado dos homens.

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