Em 40 anos de profissão, a ginecologista Albertina Duarte Takiuti, 64, coordenadora do Programa de Saúde do Adolescente do estado de São Paulo, foi muito além da investigação minuciosa da fisiologia feminina. Ela se dedica incansavelmente ao atendimento de mulheres sequeladas por conta de preconceito, machismo e violência. A solução para boa parte dessas mazelas estaria no “empoderamento”, ou na conquista de autonomia para assumir as rédeas do próprio destino. Mas isso depende de mil dependes. Com a experiência de quem atende a 300 mulheres por mês, das mais abastadas às mais carentes, Albertina conversou com J.P sobre estupro, gravidez indesejada, infidelidade, congelamento de óvulos e relacionamento homoafetivo.
Entrevista publicada na Revista J.P, por Paulo Sampaio
J.P: Recentemente, o estupro coletivo de uma adolescente no Rio deixou a opinião pública estarrecida. Surgiram casos semelhantes em todo o país, sempre em classes menos favorecidas. Existe relação entre o ambiente e o evento?
Albertina Duarte: Situações sociais trágicas podem levar a comportamentos extremos. Essas adolescentes não têm acesso à educação, à saúde, à cultura, não existe um projeto de futuro. Há um caso que não esqueço, de uma menina que engravidou na roda do funk. Ela dizia que não gostava do filho, que foi a mãe que insistiu para ela ter. A mãe é religiosa, contra o aborto, e não admite que foi estupro, sustenta que a filha quis ir ao baile.
J.P: Com que frequência a senhora lida com casos assim?
AD: Todos os meses. Quarenta por cento dessas jovens acham que tudo bem ter relações no funk. Existem as crecheiras, que cuidam dos filhos das outras, enquanto elas vão para o baile. Lá, há uma prática que eles chamam de “táuba”. A adolescente deita e é penetrada por uma fileira de homens. Ou, então, eles deitam lado a lado e ela faz “cavalinho” um por um. Aí, há os “filhos da táuba”, frutos de um estupro de que ninguém está falando.
J.P: Ao mesmo tempo que elas acham que “tudo bem”, é complicado dizer que é consentido.
AD: Sim, porque não foi uma decisão, foi uma falta de decisão. Qual o empoderamento dado a essas adolescentes? Que acolhimento da sociedade tem uma menina que foi estuprada aos 13 anos e engravidou? Ela voltou para a escola? Ela foi mãe, continua mãe, mas não foi mulher. Até os 14 anos, por lei, qualquer relação sexual é considerada estupro presumido. No Brasil, 28 mil garotas por ano engravidam entre 10 e 14 anos; a cada 19 minutos, nasce o produto de um estupro. Então, o estupro coletivo já existe. O estupro social. Resta uma situação de vulnerabilidade.
J.P: Incluindo as doenças sexualmente transmissíveis.
AD: Sim, e ninguém se preocupa com isso. Ainda bem que o abusador em geral é incompetente, não tem prazer na penetração, mas na submissão. Então, a relação se dá muito rapidamente e não é orgástica.
J.P: O caso do Rio reacendeu de forma contundente uma questão muito cara às mulheres. A reação nas redes sociais foi imediata.
AD: Muitas já foram abusadas, então aquela situação desperta uma indignação interna. Eu diria que 20% das mulheres que passaram por isso não contam, mas não esquecem. Há vários tipos de estupro. Por exemplo, quando a mulher se sente “obrigada a consentir” a relação sexual com o marido.
J.P: Na cama, há quem se porte como se não houvesse tempo a perder. Aparentemente, o timing dos relacionamentos está mais acelerado.
AD: Ninguém mais tem tempo para discutir as relações. Os espaços reservados para isso estão cada vez menores e mais profissionalizados. De repente, se eu estou com um problema, procuro a escuta de um psiquiatra, um psicólogo, um astrólogo; se quero manter a relação, vou atrás de uma terapia de casal. Geralmente, o momento em que se diz “eu não aguento mais te ouvir falando dos meus defeitos” acontece em uma situação de ruptura, quando o casal está para se separar. Eu tenho proposto que os dois tirem um dia para sair, jantar, tomar um vinho, dançar. A mulher precisa de um espaço para se sentir desejada.
J.P: Em caso de traição, existe diferença entre a maneira de pensar do homem e da mulher?
AD: Hoje eu concordo plenamente com a tese de que o homem trai para ficar no casamento, e a mulher, para sair. Ele busca um aditivo, mas preserva a relação estável que tem com a família. Então, quando ela o confronta, diz que o viu com outra, grita, joga na cara, ele nega sempre. Já a mulher costuma se envolver na relação extraconjugal e logo pergunta: “Será que eu deixo o meu casamento?”. Quando ela me fala: “Eu contei mesmo que o traí, queria ver a cara dele”, eu sempre digo para tomar cuidado com o “sincericídio”.
J.P: A internet mudou a “qualidade” da traição?
AD: No mundo virtual, ela parece ser mais difusa. Antigamente, quando havia uma pessoa física, real, a traída ligava para ela e xingava, ameaçava, escandalizava. Na internet, as possibilidades, os códigos, os canais são infinitos. A paciente chega e diz: “Eu descobri com quem ele conversa (na net)… Mas tem as que eu não descobri!”. É como se houvesse uma constelação. Às vezes, no meio da consulta, a paciente saca o computador e diz: “Entrei no Face dele, olha aqui”. A tela do computador é muito forte, entra no cérebro, a pessoa fica transtornada.
J.P: As reações à traição variam?
AD: Em 40 anos de profissão, nunca vi uma mulher preocupada em saber se a “outra” é inteligente ou bem-sucedida. As perguntas sempre são: “Ela é jovem?”, “Bonita?”, “Boa de cama?”.
J.P: O que é pior para o marido, que a mulher o traia com outro ou com outra?
AD: O marido que é trocado por uma mulher fica desesperado, chega a me telefonar para me perguntar se a esposa estava com problemas hormonais. Acho que ele pensa que uma taxa baixa de testosterona, ou de estrógeno, pode levar à traição.
J.P: E quando o homem fica com outro?
AD: Costuma ser menos complicado (para a mulher). É como se ela não tivesse culpa, o problema é com ele.
J.P: A relação que as mulheres têm com o sexo é diferente da dos homens. Muitas reclamam de pressa. Será que isso tem a ver com o número cada vez maior de relacionamentos homoafetivos entre elas?
AD: Na minha experiência, as mulheres casadas que se encontraram em uma relação lésbica afirmam que a companheira dá a elas tudo o que o homem não foi capaz; trata bem, vai buscar no trabalho, se preocupa em saber como ela está.
J.P: A escolha por mulheres, nesse caso, seria “culpa” dos homens?
AD: Basicamente, tudo o que a mulher quer é ser desejada. Quando ela sente que a outra pessoa a deseja de um jeito profundo, esse movimento é muito forte, aí entra a substituição.
J.P: A relação da mãe com o filho costuma ser diferente da do pai. Em casais homoafetivos, a criança será criada por dois homens, ou duas mulheres. Faz falta ter um pai do sexo masculino e uma mãe do feminino?
AD: Acredito que o desejo de ser pai ou mãe, em um casal homoafetivo, tende a ser mais verdadeiro. Porque os gays e lésbicas enfrentaram tantos preconceitos, dores e riscos que esse passo de adotar uma criança já foi profundamente elaborado. Até chegar nisso, eles já se conhecem muito, discutem o assunto por todos os ângulos. Entre héteros, fala-se de filhos como uma “consequência natural”.
J.P: O homem é tão cobrado a ter filhos quanto a mulher?
AD: Nunca vi uma família perguntar ao rapaz por que ele não quer filhos. Aliás, se um homem vive com uma mulher, e ela não engravida, a culpa é dela. Eu costumo pedir o teste pós-coito, que poucas pessoas fazem. Serve para avaliar a vitalidade e a persistência do espermatozoide no canal vaginal. Eu gosto desse teste porque desafia o casal, valoriza a relação. Nas pesquisas que fizemos com homens, a pergunta que eles fazem sempre é: “Será que eu sou o pai?” e nunca “Será que eu serei pai?”.
J.P: De certa forma, a possibilidade de congelar os óvulos tirou dos ombros da mulher a pressão para ser mãe?
AD: A tecnologia libertou a mulher da maternidade. Na medida em que posso congelar um óvulo e usar quando tiver 47, 48 anos, eu tenho uma ferramenta incrível de independência. É claro que custa dinheiro, mas é por isso que eu defendo a autonomia financeira da mulher. Hoje, ela pode congelar óvulos e embriões. Se estiver em uma relação e quiser ter um filho, mas não naquele momento, faz a fertilização e guarda por até cinco anos.
J.P: Mas e se ela não estiver mais com o companheiro (ou ele não quiser ser o pai)?
AD: Muitos homens são pais fora do casamento, sem consultar as mulheres. Algumas vão saber desses filhos 20 anos depois.
J.P: E se ela não tiver condição de criar o filho, e for atrás do pai?
AD: É por isso que eu recomendo maturidade ao tomar a decisão de ter um filho. Se a ideia é ter sozinha, melhor abordar o assunto em uma terapia. Ser mãe não é comprar um carro novo. Vejo mulheres que tratam a maternidade como um evento. Perguntam-se do chá de bebê, quem será o padrinho, onde fará a festa de 1 aninho. Criar filho é com 1 ano, dois, 50, algo que nos desafia sempre. Não existe ex-mãe.