Ela ajudou a acabar com as bebidas açucaradas nas escolas brasileiras e quer mostrar a importância de uma rede de cuidados que não envolva apenas os pais. Aqui, um papo com a cineasta Estela Renner, cofundadora da Maria Farinha Filmes, uma produtora que chama a atenção para o direito das crianças
Por Aline Vessoni para a Revista J.P
“A cada criança que nasce o mundo volta a começar.” A frase é de Guimarães Rosa, mas é a cineasta paulistana Estela Renner que não se cansa de repeti-la. Talvez não tenha sentença melhor para representá-la, a ela e aos seus filmes, que discutem direitos das crianças e que também problematizam a sociedade contemporânea. Como em sua vida pessoal – ela tem três filhos de 11, 15 e 16 anos –, seus filmes tangenciam outros valores, priorizando as relações de afeto e de cuidado, a criação de redes, de comunidades, em detrimento às relações individualistas. Acostumada a falar sobre temas delicados, já dirigiu documentários como Criança, a Alma do Negócio (2008), Muito Além do Peso (2012) e O Começo da Vida (2016) – este último um sucesso de audiência na Netflix. Acompanhe um pouco do nosso bate-papo sobre educação, protagonismo infantil e a importância do afeto para a construção de uma sociedade mais justa.
J.P: Apenas no YouTube, seu filme Muito Além do Peso tem 1,7 milhão de visualizações, sem contar todos seus outros trabalhos. Como você se sente ao saber que suas ideias têm chegado a tantas pessoas?
ER: Mais do que isso, esses resultados nos deram a certeza de que a nossa produtora só trabalharia com temas urgentes e com sentido. Além do filme ser exibido em escolas, universidades, consultórios médicos, foi muito assistido pela indústria alimentícia. E isso provocou uma onda de reflexões e atitudes que até hoje ressoam. Por exemplo, em 2016 a Coca-Cola, PepsiCo e Ambev retiraram todas as bebidas açucaradas e refrigerantes das escolas do Brasil. Que mensagem eles deram? Que seus produtos têm impacto na epidemia de obesidade infantil? Acho que sim. Qual foi a função do filme? Sinto que foi um agente de sensibilização e revolta, muito utilizado por setores que há anos tentam trabalhar a questão da obesidade infantil e que não tinham uma ferramenta audiovisual à altura.
J.P: Os filmes surgem de questões que você teve a partir da maternidade?
ER: Não, mas de incômodos que temos na Maria Farinha Filmes. No caso do filme Criança, a Alma do Negócio, foi a presidente do Alana, Ana Lucia Villela, e também sócia na produtora, que me trouxe esse insight e eu o abracei porque sou fã e admiradora dela e também porque há mais de dez anos a publicidade dirigida a criança já tomava proporções extremamente abusivas. Um exemplo é você perceber que tem um promotor de vendas sendo inserido na sua casa por meio de seu próprio filho. Hoje em dia com a questão dos games e do YouTube, a publicidade infantil encontrou uma brecha gigante. É desesperador, a criança baixa um aplicativo de um jogo que gosta, mas para jogar ela é obrigada a assistir uma propaganda de algo. Este é o preço, o jogo não é de graça. Todos estão moldados para conquistar e fidelizar as pessoas e as crianças. No caso dos youtubers, vemos crianças de 6 anos com seus próprios canais onde o conteúdo do programa é somente promoção de produtos. É assim que queremos formar nossas crianças?
J.P: O que a maternidade mudou em sua vida?
ER: Acredito que me deu um senso de seriedade. Quando tive filhos parece que uma linha foi traçada e “agora começou para valer”. Mas é só um sentimento. Respeito todas as escolhas e modos de viver, de muitos que optem por não ter filhos. Mas é engraçado, porque fiquei mais sensata, sinto-me muito próxima da infância dos meus filhos, da minha própria.
J.P: O que é prioridade na vida em família e na relação com seus filhos?
ER: Jantar juntos e sem eletrônicos. Levar à escola, fazer viagens juntos, brincar juntos, estar em um estado de escuta, de presença. Nem sempre a gente dá conta de tudo, mas existe uma prontidão da parte de todo mundo em casa que acho que aconteceu naturalmente, talvez pelos nossos temperamentos, talvez porque moramos nos Estados Unidos muito tempo e tínhamos muito a nós mesmos. Tem humor, vontade de dividir, interesse, respeito. Outra prioridade é fazer atividade ao ar livre, ir a exposições, passear na rua.
J.P: Uma das reflexões do seu filme O Começo da Vida é sobre uma rede de cuidados, que deveria envolver mais pessoas para além dos pais. Mas como criar essa rede em uma sociedade em que todo mundo trabalha – avôs, tios e tias – e está preocupada com suas próprias questões?
ER: Existe algo que se retira de nossa intimidade enquanto comunidade quando optamos a viver em centros urbanos. O isolamento vira comum. Acredito que poder contar um com o outro é o básico. Mais do que isso, estar junto é o que pesquisas apontam para uma vida mais longeva e saudável. Sempre quis que meus filhos tivessem e vivessem diferentes amores além do meu e do pai deles. O de avô, o de avó, o de padrasto, o de irmãos, de professor, de amigos. Acredito que “eu sou porque tu és”, este outro sempre te muda. Não é só a criança que se beneficia com a rede. Amar o filho do outro é um sentimento inacreditável no menu das relações humanas. Nossa, eu amo tantas crianças…
J.P: Quem faz parte da sua rede?
ER: Minha madrasta é a número 1, Sonia Braga. E é uma relação linda entre eles, que gratidão enorme ter ela na minha vida e na dos meus filhos. Meu marido, Tadeu Jungle, também, outra relação de muita amizade, respeito, troca, diálogo – e que inclui buscar, levar, fazer lição de casa junto etc. Meu ex-marido, David, pai das crianças, que é um superpai, superpresente, dedicado. Como ele consegue, mesmo morando nos Estados Unidos? Ele consegue! Minha irmã, meu pai, minhas amigas, os pais dos amigos dos meus filhos…
J.P: Para os seus filmes, você frequentou lugares escondidos do Brasil, com formas de viver muito diferente de uma megalópole como São Paulo. O que é possível praticar aqui?
ER: O ambiente está na cabeça das pessoas… Em cada praça há verde, há espécies, há terra. Basta mudar o olhar. As crianças enxergam. Ou viajar junto para todos os cantos do Brasil, antes de almejar Estados Unidos, Europa…
J.P: O que você faz no dia a dia que muda a vida das crianças, que promove o pensamento do coletivo e te faz acreditar que seus filhos não crescerão em um mundo “descuidado”?
ER: Acho que faço filmes mesmo. Meu talento é esse. Gostaria de ter o talento do professor, ou do assistente social, ou do psicólogo, são três profissões que eu admiro. Se tivesse mais grana doaria mais, investiria em causas sociais. Mas o que eu faço bem são filmes, então, uso o meu tempo para fazer obras com sentido, com causa. E nunca digo “não” para mães e pais que pedem ajuda com os filhos. Tem sempre criança aqui em casa. E vivo pedindo ajuda também. Não é uma troca, é um jeito de viver, é um prazer também.
J.P: Você reforça o protagonismo infantil – a criança como um ser competente. Algumas linhas pedagógicas como Waldorf, Montessori, Reggio Emilia, construtivismo, aparecem com esses questionamentos, mas estamos falando de escolas caras e que atendem um número pequeno de crianças (mais de 80% das crianças brasileiras estão na escola pública). Pensando na ineficiência do poder público – mais no sentido do atraso – como a sociedade civil pode se mobilizar nesse sentido?
ER: É um movimento interessante. Das linhas pedagógicas que você citou, acredito em todas, acho que solucionam muitas das questões sociais graves que vivemos hoje, mas grande parte das pessoas desmerece todas estas linhas: frágeis, viajantes, hippies, uma brincadeira sem utilidade (como se o útil fosse sinal de valor humano). Ou seja, o sensível, o livre, o criativo, o empático, o emocional, o subjetivo são menores diante da ordem do império. Um império dominante, colonizador, reacionário, branco e autoritário não admite a pessoalidade, a diversidade, a inclusão. O capitalismo não admite uma educação não capital, que não tenha como objetivo o capital. Mas no futuro muito próximo, as máquinas farão muito do que nossos filhos aprendem na escola hoje. As máquinas acabarão com profissões inteiras, tomarão seus espaços. Robôs leem bibliotecas inteiras em segundos. Celulares serão nossos médicos de bolso, capazes de nos indicarem se estaremos doentes antes mesmo da primeira tosse escapar. E o que vai sobrar? O que as máquinas terão mais dificuldade de fazer: sentir afeto, ser subjetivo, espirituoso, contemplativo, ter desejos, desejos de qualquer coisa, de ser cientista, matemático, de aprender uma atividade física, viver em prol de uma cultura de paz em harmonia com a natureza. A escola terá de ter em sua base a vontade de vida e não a vontade capital. Aliás, é da própria vontade de vida que o capital se alimenta.
J.P: Você reforça em entrevistas e nos seus trabalhos que afeto está na base de tudo. O Nobel de Economia, James Heckman, fala, no filme O Começo da Vida, uma coisa muito bonita sobre como o “amor é uma parte importante da economia”, mas que ele é negligenciado. Você acha que é possível mudar esse panorama?
ER: Sim, trocando a relação que temos com o nosso pânico de morte e não pertencimento com a relação de inclusão e abundância. Mas, antes de mais nada, as pessoas precisam comer, morar, respirar, cuidar da saúde. É duro dizer isso, mas no panorama desigual que vivemos hoje, para permitir afeto precisamos permitir condições para que a vida se instale. Então o afeto não pode ser um band-aid. Ao mesmo tempo que o amor é importante para a economia, e deve ser a base de um novo tratado econômico, social e político, precisamos de fato conviver com a ideia de que tem para todo mundo. Teremos energia, alimento, espaço, água potável e relacionamentos se o nosso tempo, inteligência e energia estiverem voltados para esse sentimento. Os predadores só existem porque admitimos a relação de dominação e submissão. Entre países, entre amigos, entre casais, entre namorados, entre gêneros. Tem que estar bom pra todo mundo. Se não, não está bom pra ninguém. Onde tudo isso começa? Na infância. A cada criança que nasce o mundo volta a começar. Não me canso dessa frase do Guimarães Rosa.
J.P: Você já era mãe quando começou a se envolver com a temática da infância e deve ter descoberto muitas concepções novas e diferentes das que você tinha. Como foi lidar com isso?
ER: Ah. Senti que acertei, senti que podia fazer mais se soubesse mais. Senti que errei. Mas que acertei mais do que errei. Senti culpa por tudo que podia ter feito melhor. Sinto culpa por tudo que gostaria de fazer e sei que não farei. Mas eu olho para os meus filhos hoje e sinto um orgulho descomunal. Então, mesmo me questionando, acho que eles se encontraram. E mesmo a gente achando que carregamos a vida deles para sempre, é duro às vezes enxergar que eles têm vida própria. O tempo todo, vida própria, sentimentos únicos. Cabe a nós, pais, festejarmos suas existências.