Por Audrey Furlaneto para a revista J.P
Quando jovem, ela teve um amante que a registrou para que conseguisse, burlando as leis, uma aposentadoria para o resto da vida. Passou a juventude driblando as dificuldades, ora morando na rua, ora ocupando um casarão abandonado. Quando mais velha, enfim, roubou o dinheiro que o irmão escondia no banheiro de casa para arriscar a sorte na loteria. Ganhou. Cornélia, a personagem de Betty Faria na novela A Dona do Pedaço, da Globo, é agora milionária. “Eu diria que Cornélia é, antes de tudo, uma sobrevivente”, crava a atriz, aos 78 anos, no ar na trama de Walcyr Carrasco. Uma sobrevivente, ela reconhece, que saltou de jeitinho em jeitinho, vivendo de um pequeno furto aqui, de uma aposentadoria ilegal acolá. Cornélia é da célebre linhagem dos picaretas de novela. Clássico arquétipo na dramaturgia brasileira, os adoráveis malandros transitam entre os núcleos pobre e rico das tramas – como Cornélia, que tão logo ganhou na loteria, comprou a casa de luxo da vilã Josiane, vivida por Agatha Moreira. “De fato, ela roubou dinheiro do irmão para jogar na Mega. Por outro lado, ela vai agora sustentá-lo. Ou seja, vai retribuir à altura. E ela faz tudo com muita esperança e de uma forma algo performática, engraçada. Isso somado ao fato de Cornélia ser tão desprotegida pela sociedade explicam a empatia que ela provoca no público”, arrisca Betty.
Para Arlete Salles, a receita dos picaretas que amamos leva sempre um pouco dessa ambiguidade. Sua Copélia, em Toma Lá Dá Cá, personagem escrita por Miguel Falabella, era “excêntrica, mas também divertida”, ou ainda “bizarra e, ao mesmo tempo, real”. No ar entre 2007 e 2009, na série que teve três temporadas na Globo, o papel de Arlete tinha “cores fortes” e uma peculiaridade: Copélia era uma idosa ninfomaníaca. “Com muita habilidade, Miguel conseguiu tratar disso de forma natural, e pode-se dizer que até quebrou um preconceito forte, a de que os idosos não têm libido”, diz a atriz, para completar: “O que faz os picaretas de novela terem apelo popular é que, no fundo, acabam sendo divertidos. São personagens que têm certa coragem de ser diferentes, um tanto malandros, e isso trabalha nossa tolerância, cria um olhar simpático para o que é, nos dias de hoje, chamado de politicamente incorreto”. Para Falabella, esses canalhas que dão duro são “personagens seminais da dramaturgia brasileira e têm sua gênese em Macunaíma, de Mário de Andrade, não por acaso chamado de ‘o herói sem caráter’”. O próprio ator, escritor e diretor já atuou, escreveu e dirigiu uma série de personagens que seguem esse arquétipo o mais célebre deles, claro, é Caco Antibes, de Sai de Baixo, que ficou no ar por seis anos. Falabella explica o perfil dos malandros a partir de Macunaíma: “Mário de Andrade faz uma síntese do que seria o brasileiro, uma crítica feroz ao famoso jeitinho de conseguir as coisas, burlando a lei e a ordem”. Ele acrescenta: “O humor sempre se utiliza desses arquétipos e por isso personagens como Caco Antibes, Agostinho Carrara [de A Grande Família] e outros pilantras simpáticos sempre têm o carinho do público”.
Haja vista Darlene Sampaio, a manicure interpretada por Deborah Secco em Celebridade, em meados de 2004. Sempre às voltas com o sonho da fama, Darlene ia das simpatias caseiras à busca pelas câmeras nas ruas para conseguir seu lugar ao sol. Outra Darlene – a vivida por Marília Pêra em seu derradeiro papel na TV, em Pé na Cova, entre 2013 e 2016 – também é da linhagem dos queridos pilantras. Maquiadora de defuntos, ela tinha duas soluções para os problemas: imaginação – e gim. Percorria as cenas tratando de pequenos trambiques sempre munida de um copo e de falas de efeito que resumem o jeitinho dos adoráveis picaretas para contornar os dissabores da vida: “Quem não tem gim, bebe perfume”. Como diz Falabella, autor da personagem de Marília Pêra, tais malandros “não pertencem às classes menos favorecidas da população”, mas, sim, são parte de um “fenômeno das classes que não aceitam perder seus privilégios e fazem qualquer falcatrua para mantê-los”.
Professora da Escola de Comunicações e Artes da USP, Maria Cristina Palma Mungioli aponta alguns motivos pelos quais os picaretas da dramaturgia conquistam tanto o público. “São personagens que precisam de algum benefício para viver, mas não são necessariamente pessoas de má índole”, diz a pesquisadora. Ela lembra que o apelo popular vem da identificação que o espectador estabelece com o perfil dos personagens: “O ser humano é um ente complexo, falho, e criamos empatia porque os malandros têm traços de nós mesmos. Quem, afinal, já não deu nó em pingo d’água para sair de um problema?”.
Outros picaretas que amamos:
• João Grilo (Matheus Nachtergaele) e Chicó (Selton Mello) no filme O Auto da Compadecida
• Atena (Giovanna Antonelli) na novela A Regra do Jogo
• Leleco Araújo (Marcos Caruso) em Avenida Brasil
• Beto Rockfeller (Luis Gustavo) em Beto Rockfeller