De ator famoso à ativista da maconha, as mil e uma vidas de Ricardo Petraglia

Cria dos melhores diretores do teatro brasileiro, o ator Ricardo Petraglia sempre interpretou bons personagens no palco. Na vida real, viveu outros tantos: hippie, roqueiro, presidiário, bon-vivant, radialista, dono de restaurante e, hoje em dia, um ativista ferrenho pela liberação da maconha

Por Renato Fernandes para a Revista J.P de agosto | Fotos: Daniel Marques

“Teatro é andar num arame em cima das cataratas do Niágara sem rede de proteção abaixo”, diz o ator Ricardo Petraglia, num microcamarim de um espaço chamado Ganjah no bairro da Lapa, no Rio de Janeiro, onde encena desde março a peça escrita por ele mesmo “Os Malefícios da Maconha.”

No monólogo, dirigido por Antônio Pedro, um dos seus grandes parceiros de vida e ofício, a maconha é o tema principal. Petraglia adora desde seus tempos de hippie. Hoje, aos 67 anos, não faz discurso hipócrita e é totalmente a favor da liberação da erva: “Sou um ativista canábico pela legalização no Brasil. As pessoas que se utilizam dessa planta não se manifestam das coisas boas, medicinal ou recreativo, que ela pode proporcionar por causa do velho estigma de ser chamado de maconheiro”. Para ele, está mais que comprovado o poder dos derivados da erva: “É analgésico, anti-inflamatório, previne a convulsão, ajudando, inclusive, doenças como o mal de Parkinson”, defende.

O ator recebeu J.P para duas sessões de entrevistas e fotos. A segunda foi em sua casa de campo, em Xerém, a 50 km do centro do Rio. Lá, ele mora numa confortável residência com a atual esposa, a bela Marilia Oliveira, 43 anos, que também é sua sócia na produção de substratos biológicos para hortas e plantas medicinais. Além desse terreno de 40 mil metros quadrados, com piscina de água nascente, o casal possui outro, que fica logo ao lado. Na casa com paredes de vidro e vigas de madeira, o bom gosto impera, com toques de sofisticação e obras de arte. Acolhedores sofás e mesa bem posta para nos receber, com direito a pesados talheres de prata – herança de família – e guardanapos coloridos. Tudo muito bem cuidado, nada baratinho, apesar da placa hippie que dá as boas-vindas a quem chega. Nas paredes, obras de Wesley Duke Lee, Guilherme Secchin e um retrato de Petraglia criança por Anton Pieck. Cartazes das peças que ele atuou completam os ambientes. O de Hamlet fica no lavabo.

Tradição

Petraglia nasceu em São Paulo, em 7 de outubro de 1950, e não no Paraná – como aparece na internet. “Lá eles inventam o que querem. Paraná só fui atuando”, reclama. Foi criado com tudo do bom e do melhor num casarão do avô na alameda Barros, onde morava junto com a mãe, Cecilia – naqueles anos já separada, um escândalo na época. Seu tio, o maestro e produtor Cláudio Petraglia, foi o responsável pelo incentivo da educação não convencional do sobrinho e a introdução na carreira também. Em vez dos tradicionais colégios do bairro de Higienópolis, ele foi um dos primeiros alunos da Escola Waldorf, em que a pedagogia é baseada na educação do filósofo austríaco Rudolf Steiner. Nela, o contato com a natureza e o amor pelas artes é incentivado. “Com o ensino, aprendi a desenvolver meus talentos e usar o cérebro e não virar uma mão de obra qualificada para isso ou aquilo.” Ainda estudou no Porto Seguro e o colegial foi no severo – e em regime interno – Colégio Koelle, onde foi vice-campeão de natação. O porte físico do ator até hoje reflete os anos das braçadas no Koelle e alemão é sua segunda língua.

Tablados e afins

Em pouco tempo, Petraglia estaria no teatro e começou bem: foi aprovado por Antunes Filho para a peça A Cozinha, de Arnold Wesker, ao lado de Juca de Oliveira. Pelo trabalho ganhou o prêmio de ator revelação. “Aprendi com eles a seriedade da profissão, mas sem perder o lúdico. To play or not to play. Brincar, essa é a grande razão, com seriedade, sem ser careta”, diz.

Aos 17 anos, acendeu seu primeiro baseado e, não muito depois, já estava escalado para sua segunda peça, o musical A Moreninha, com Marília Pêra e Perry Salles. Foi nos bastidores que ele apresentou um “beck” a Perry, que fumaram antes de entrar em cena. “Erramos a coreografia e tínhamos ataques de riso”, relembra, se divertindo.

Próximo passo?  Hair, uma das peças que sacolejou o teatro brasileiro no anos 1970. No elenco? Armando Bógus, Aracy Balabanian, Nuno Leal Maia, Helena Ignez, Altair Lima e a novata Sônia Braga. “Numa cena em que estava nu, a Aracy tinha a marcação de me dar as mãos, mas sem querer pegou no meu pau”, relembra. E quem viu, garante: o ator chamava atenção por ser bem-dotado – não só no talento. Durante a temporada, ele continua, tomou alguns ácidos antes de subir ao palco, e foi numa viagem com o elenco, para se apresentar em Ilhéus, que resolveu acender um baseado antes de entrar no avião. Acabou detido por 15 dias.

TV Tupi e musas

Petraglia achava a televisão um veículo menor, mas sua resistência foi em vão. No fim de 1972, ele viveu par romântico da então estrela Nádia Lippi na novela A Revolta dos Anjos. “Recusava mesmo os convites, achava TV o fim da picada”, conta. Outros folhetins na emissora vieram, como Cinderela 77, que tinha uma das mais belas atrizes e musas da Tupi: a loira Kate Hansen. Viveram um romance, do qual nasceu Lucas. “Não gosto de falar das ex, estou muito feliz com a Marilia, ela é quem importa”, enfatiza. O bebê precisava beber um leite importado, caríssimo, e Petraglia fez todos os trabalhos que podia. Passou a ser um rosto familiar nos comerciais de cerveja e nas pornochanchadas. “Ter filho é uma coisa séria, fazia o que pintava.” Filmes como Efigênia Dá… Tudo que Tem e Perversão (Estupro!), de Zé do Caixão, estão em seu currículo. Nesse, atuou com a starlet da Boca do Lixo Arlete Moreira e a chacrete Mara Prado. Tudo pelo leite de Lucas.

Rock, drogas e mulheres

Paralelo ao trabalho de ator, Petraglia inicia uma carreira de cantor com o nome de Dick Petra – assim mesmo a grafia – batizado pelo produtor Ezequiel Neves. Lançou um compacto simples solo, mas não “aconteceu”, e marcou quando virou roqueiro e participou das bandas Sindicato e Joelho de Porco, com Tico Terpins.

“Fiz tudo o que um roqueiro pode fazer, viagens, estradas e drogas também… Usei todas, todas. A mais impressionante foi a brown sugar [heroína], pelo nariz e na veia.” Cocaína usou, por alguns anos. “Parei quando quis parar com tudo. Cocaína atrapalha a vida.”

Uniões ainda teve mais algumas: a advogada Silvia Pinheiro, com quem teve João Miguel e Lina, e a atriz Lilia Cabral. Ficantes e namoradas, muitas. De todas as tribos. Diz a lenda que o ator Richard Gere ficou possesso quando ele foi visitar Sylvinha Martins em Nova York e Petraglia estava lá. Lady Francisco também conheceu os encantos dele.

LGBT

Os gays sempre babaram por ele. “Guilherme Araújo foi um que queria que eu fizesse Rocky Horror Show, mas tinha de dormir na casa dele. Saí fora.” Porém, foi vivendo um homossexual na primeira montagem de Bent, no fim dos anos 1970, que arrebatou a crítica e o público. Conseguiu pelo teatro virar um nome nacional. Bent trata da perseguição dos homossexuais pelos nazistas. Petraglia já havia assistido à peça em Nova York e conseguiu viver o personagem que queria: Horst. O ator protagonista era Kito Junqueira, mas uma crítica do jornalista Telmo Martino, no Jornal da Tarde, deixou um ambiente insuportável. Martino dizia que a interpretação de Petraglia era uma peça dentro da peça.

Na década de 1980, Petraglia se muda de vez para o Rio e mora em um apartamento na rua Von Martius, a mesma onde ficava os estúdios da Globo. Faz participações em novelas e marca em Malu Mulher, e filma Gabriela, ao lado de Sônia Braga e Marcello Mastroianni. De Mastroianni, aliás, fica amigo, de “mijar juntos” e, não muito tempo depois, vai morar em Roma, onde fica dois anos, no dolce far niente. Pretendia montar Bent por lá, mas não consegue. Mastroianni o apresentou a cidade. “Além de grande ator, era extremamente humano, gentil, sem pedantismo.” Perguntado quais os programas que faziam juntos, responde: “Ah, sei lá”, diz, com seu estilo único.

Cita com extremo orgulho a peça que dirigiu em 1985, A Maconha da Mamãe É Mais Gostosa. “Foi lá que tudo começou”, referindo-se à militância pela liberação da cannabis. Nas décadas seguintes foi dono do badalado restaurante Botanic, no Jardim Botânico, atuou como diretor do Museu do Teatro no Rio e ainda teve um programa no rádio.

Na TV, passou alguns anos na Record, mas desmente mais uma vez a internet numa matéria em que diz que a novela Poder Paralelo foi seu melhor trabalho. “Mentira! Foi Manoel Carlos o responsável pelo meu renascer na TV.” De Manoel ganhou Sinval Xavier, na novela História de Amor e marcou ainda mais vivendo Trajano em Por Amor, de 1997. Depois de sua união com Lilia Cabral, em 2003, montou um monólogo escrito por ele mesmo, O Rei dos Escombros, no qual relata a falência de um homem e fica mais uma vez nu: “Só tem vergonha de ficar nu quem tem pau pequeno”, já declarou uma vez.

Em 2005, conhece a atual mulher, Marilia, numa feira de orgânicos no Hotel Glória. O encontro foi dentro do elevador, numa paquera meio desastrosa. Mas deu certo. Há mais de dez anos residem no sítio, onde ele sai apenas para compromissos profissionais e olhe lá. Um dos projetos do casal é lançar o perfume Da Lata, referência ao verão de 1987, quando mais de 15 mil latas de maconha foram encontradas no litoral do Brasil.

Se diz aposentado da carreira de ator. “Hoje sou um ativista canábico, me aposentei ideologicamente. Parei de ser ator, já vendi muita porcaria fazendo comerciais e não aguento mais alguém me mandando ir para direita ou para esquerda.” Se algum dia gostou de atuar? “Não muito”, finaliza ele, rindo petragliamente.

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