Por Paulo Sampaio para J.P Janeiro de 2017 | Fotos Yuri Sardenberg e Aninha Monteiro
Cláudia Raia já é uma mulher grande, 1,78 metro, mas quando começa a falar fica ainda maior – pelo volume da voz, o tom grave com que emite as palavras e o conteúdo histriônico das falas. Gestos amplos, queixo empinado e gargalhada sísmica, o timing de vedete de teatro de revista prevalece sobre tudo ao redor. À sua chegada no estúdio, de óculos escuros Louis Vuitton e tubinho preto, alguém elogia sua pele. Ela: “Eu me trato, mas tem a genética, amor. Mamãe está com 93, maravilhosa. E lavou o rosto a vida toda com bucha e sabão de coco!”. O exagero é uma constante: “Vou fazer 50 anos daqui a meia hora”, informa ela, cujo aniversário seria dali a uma semana. Todos a elogiam: “Sério?”, “Não é possível!”. Ela explica que mantém o corpo em forma porque cuida da alimentação: “Comi uma tapioca agora de 40 gramas, não dava nem pra fechar”. A claque, formada especialmente pelo “público gay”, ri, fiel. Ela entrou informando que, naquele momento, ainda estava dormindo e que o que todos viam (ela) não passava de um sonho. Mais risadas.
Prevenida, Cláudia Raia abraça o repórter antes da entrevista e elogia suas matérias. “Gosto de pessoas inteligentes.” Que bom. A conversa começa do início, quando ela tinha 13 anos, concorreu a uma bolsa para estudar no American Ballet, em Nova York, e ganhou. Só que, em 1979, ela morava em Campinas com a mãe, Odete, a irmã, Olenka, e a avó, Ernestina – o pai morrera quando ela tinha 4 anos – e nenhuma delas tinha condição de acompanhá-la aos EUA. Dona Odete argumentou que não dava para mandar uma menina da idade dela morar fora sozinha. Cláudia, que, segundo ela própria, era um “demônio”, avisou: “Se você me impedir, eu fujo”. A escola de dança ficava no Harlem (“eu era a única branca do bairro”), ela estudava oito horas por dia e a bolsa mal dava para sua sobrevivência. Procurou trabalho, primeiro em uma lanchonete chamada Beagle End: “Eles me colocaram na cozinha, e de saída eu arranquei um pedaço do dedo com a faca. O gerente disse que não ia dar. Propus ser hostess. Eu falava muito pouco inglês, mas, como era muito animada, foi um sucesso”. Depois, ela passou a trabalhar num lugar chamado Cachaça, onde se apresentava num show de samba “nas pontas”. Ganhava US$ 150 por semana.
Nessa época, sofreu uma tentativa de estupro. Alugava um quarto na casa de um casal que tinha um bebê. Um dia, a mãe saiu com a criança, e o pai, que era bailarino, foi até seu quarto. Perguntou como estava a vida dela, o curso, se já tinha feito amigos: “Em dado momento, ele se sentou ao meu lado, na cama, e colocou a mão na minha perna. Como nós, bailarinos, somos muito físicos, não levei para a maldade. Só que aí ele me agarrou pelos ombros e pá, veio para me dar um beijo. Eu fiz isso (levanta a perna no movimento de um empurrão com o pé), ele caiu, eu peguei uma coruja de vidro que estava numa mesinha ao lado da cama e quebrei na cabeça dele”. Segundo Cláudia, o locatário caiu desmaiado: “Peguei minha mala, juntei o máximo de roupa que pude, coloquei dentro e saí”. Já lá fora, ela diz que voltou para deixar o dinheiro que ainda devia ao casal. Todos no estúdio se admiram de, num momento daqueles, ela ter lembrado de acertar as contas. Exaltam sua índole: “Fantástico. É a coisa da honestidade que não abandona a gente, mesmo numa situação difícil”.
Com a mala e sem destino, Cláudia caminhou, caminhou, chorando, até que resolveu dar uma parada para descansar. Sentada na escadinha que levava ao porão de um prédio do Soho, ela se distraiu acompanhando os passos das pessoas que caminhavam na calçada. “Até que dois pezinhos passaram… e voltaram. Eu ouvi: ‘Cláudia!’. Quando olhei, era uma bailarina amiga, do Stagium, que me perguntou o que eu estava fazendo ali. Contei, ela me levou para o apartamento de 50 m2 que dividia com outras quatro mulheres, todas completamente drogadas.” Não havia muito espaço para Cláudia ali. “Eu dormia na banheira, côncava, em cima da mala e de um edredom velho”, lembra. O perrengue durou apenas alguns dias. Logo se mudou para um lugar pequeno, mas seguro. A virgindade ela perdeu aos 14, em um relacionamento que ela não considera relevante.
Romeu e Julieta
Finda a temporada em Nova York, ela voltou para o Brasil e, um tempo depois, embarcou para a Argentina com a avó, que queria morar por um tempo em Buenos Aires. “Ela foi para passar um ano, e eu, um mês. Ela ficou um mês, e eu, um ano.” Lá, Cláudia conseguiu, por meio de um amigo chamado Rubén Terranova, que era primeiro bailarino do Teatro Colón, participar da audição para uma montagem de Romeu e Julieta. Na época, ela acompanhava Terranova “em todas as apresentações de dança na cidade”. Certa noite, um coreógrafo de teatro de revista perguntou se ela queria fazer um teste. Cláudia pegou o papel de Julieta e o de vedete. “Quando terminava o espetáculo no Colón, eu corria pela Corrientes arrancando o coque e as pérolas da Julieta, para vestir o figurino do teatro de revista. Chegava, colocava o maiô cavado, a sandália plataforma e entrava em cena.” Há algo de épico nos relatos de Cláudia Raia. Tudo vira aventura em suas narrativas.
No teste para A Chorus Line, aos 15 anos, ela conta que chegou às 4 da manhã para pegar um bom lugar na fila. “Eram 1.500 candidatas, minha inscrição era 001.” Na hora em que foi chamada, informou ao diretor Walter Clark que tinha dois problemas: 1) era menor de idade; 2) não sairia dali sem o papel de Sheila Bryant (protagonista). “Ele me disse que, em relação a idade, dava-se um jeito; mas para fazer o papel de Sheila, eu teria de mostrar que podia a um dos americanos da banca.” Ela acabou ganhando o papel. Será que já propuseram a Cláudia o teste do sofá? Ela dá uma risada técnica e responde com timing de comediante: “Não, porque eu nunca coube em nenhum sofá”. Walter Clark tornou-se um grande amigo, diz ela, que a ensinou inclusive a “descobrir seu verdadeiro tamanho”. “O Walter me dizia que eu tinha de diminuir um pouco. Então eu fui tirando brinco, ombreira, cabelo…”
A propósito de teste do sofá, sua personagem na atual novela das 9, A Lei do Amor, é uma dona de posto de gasolina que assedia sexualmente os rapagões interessados em trabalhar no local. Apesar do apelo sexual de Salete, Cláudia se diz impressionada com o “encaretamento” do mundo: “Gravei uma cena de sexo com o Daniel Rocha, dentro de uma picape amarela, eles fizeram com chuva e não apareceu nem alça de sutiã. A gente era mil vezes mais moderno nos anos 1980. Em Sassaricando, eu me lembro de uma cena em que eu estava perdida na praia e o Alexandre Frota me achava com a cabeça enfiada na areia, só de biquíni fio dental. Ele me reconhecia pela bunda”. Ela lamenta que atualmente “não se pode dizer mais nada, o mundo é politicamente correto, uma chatice”. “O curioso é que na internet, onde ninguém mostra a cara, todo mundo tem coragem de falar tudo.”
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Em relação ao momento político do país, Cláudia, que em outros tempos se viu associada à campanha eleitoral de Fernando Collor de Mello (que também sofreu impeachment), o classifica como “vergonhoso”. Ela acredita que os escândalos mobilizam a atenção da opinião pública justamente por seu caráter desagregador: “Em qualquer obra de ficção, o que dá mais ibope é o conflito. Se você colocasse tudo o que a gente assiste no noticiário de política em uma novela, as pessoas iam dizer que só mesmo na TV para acontecer uma coisa daquelas”. E então, ela se levanta da cadeira do camarim, maquiada, coloca por cima da hot pant um colete bordado com cristais coloridos Giorgio Armani, sobe em um vertiginoso sapato Dior e fica… completamente à vontade, como se estivesse de penhoar e sandália Havaianas. Já no set, faz um movimento de sopro com a boca, fecha ligeiramente os olhos e posiciona o pernão bezuntado de óleo em cima de um pedestal de madeira.
E vai falando. Explica que é difícil dizer o papel que a consagrou para o grande público, uma vez que ela estourou já na estreia, em Roque Santeiro, na pele da prostituta Ninon, que fazia dupla com Rosaly (Ísis de Oliveira). “Na época, as novelas davam 90% de audiência, imagina isso. Tinha uma banca de jornal em frente ao prédio onde eu morava, na esquina da avenida Atlântica com a Souza Lima, e um dia, quando eu vi, estava nas capas de absolutamente todas as revistas.” Desde então, ao longo dos últimos 30 anos, ela alternou comédias, dramas, musicais, mocinhas e vilãs. Entre as passagens mais representativas está a escalação para o humorístico TV Pirata, uma espécie de Porta dos Fundos dos anos 1980, que a levou a trocar o papel da boazuda burrinha de Viva o Gordo pelo hilariante sapatão Tonhão. Ali, rolou um upgrade. O programa a instalou no panteão de comediantes do primeiro time da emissora, ao lado de Luiz Fernando Guimarães, Debora Bloch, Guilherme Karan, Regina Casé, Louise Carsoso e Ney Latorraca. “Eu virei cult”, lembra.
Guel Arraes, diretor do TV Pirata, se tornou uma de suas principais referências, junto com Silvio de Abreu, Miguel Falabella e Jô Soares – com quem namorou durante três anos. Na vida real, seu primeiro casamento oficial foi com Alexandre Frota, em 1986, na Candelária. Apesar de a cerimônia ter parado o centro do Rio, os dois ficaram juntos apenas três anos. O relacionamento mais longevo foi com Edson Celulari, pai de seus dois filhos, Enzo, 19, e Sophia, 13. Ela e Celulari se casaram em uma cerimônia budista, em 1993, e se separaram 17 anos depois. Em 2012, conheceu o bailarino gaúcho Jarbas Homem de Mello, que contracenava com ela em uma versão do espetáculo Cabaret. Em 2014, eles ofocializaram a união em uma cerimônia “secreta”.
No dia em que posou para a capa da J.P, Cláudia falou com animação da festança que os amigos estavam organizando para comemorar seus 50 anos. Apesar de a data do aniversário ser 23 de dezembro, eles preferiram adiar uma semana para dar tempo de preparar tudo na casa dela, em Itanhangá, Barra da Tijuca. Entre os primeiros na lista de 300 pessoas convidados estavam Paolla Oliveira, Mariana Ximenes, Fernanda Souza e Cauã Reymond, a quem ela chama de “filhos postiços”. A prole agrega também a geração mais nova de atores, que ela adota com a maior alegria: “Eu sou tipo Xuxa, tô sempre cheia de criança em volta”. Todos a tratam com o respeito que uma veterana merece: “Quando vejo que eles não estão no set, mas no WhatsApp, dou pito! Digo: ‘Gente, tomem seu rumo! Isso não é brincadeira, é de verdade!” Pior que é.