Depois de elogiar os dotes de Dona Silene, uma mulher negra que vende cocadas, a apresentadora lhe entrega uma bandeja com os doces e pede que ela faça as honras da casa, servindo os demais convidados. Rapidamente, um dos seus colegas no programa se levanta e anuncia que vai fazer o papel de garçom enquanto pega de volta a bandeja, dizendo que a convidada “não vai servir ninguém”.
A cena no programa “É de Casa”, num dos sábados da Globo, poderia ter passado despercebida para a maioria, não fosse o apresentador em questão Manoel Soares. Nos últimos anos, todas as vezes em que o jornalista de 42 anos intervém para corrigir –sempre com elegância– algum comportamento que revela nosso entranhado racismo, ele invariavelmente vai parar nos assuntos mais comentados das redes. Foi assim também recentemente, quando questionou uma atriz convidada do “Encontro”, onde estreou na apresentação em julho, pelo uso da expressão “ovelha negra”.
Manoel assegura, no entanto, que não quer carregar o título de principal voz do antirracismo dentro da maior emissora do país, como já foi apontado. “A última coisa que eu quero é ter que conversar com as pessoas só sobre a questão racial. Gosto de falar de música, de beleza, de moda, mas não tenho como falar disso enquanto um policial que pisa no pescoço de uma mulher negra, em uma cena gravada, é absolvido”, diz, referindo-se à absolvição pela Justiça Militar de São Paulo, em agosto, do PM que agrediu uma comerciante em 2020, em Parelheiros.
“Gosto de falar de música, de beleza, de moda, mas não tenho como falar disso enquanto um policial que pisa no pescoço de uma mulher negra é absolvido”
O apresentador também não permite que sua trajetória, de quem sobreviveu ao improvável, fique marcada pelos episódios de violência e exclusão. Nascido na Boca do Rio, no subúrbio de Salvador, viu a mãe sofrer com a violência do pai antes de fugir de casa, com os filhos, rumo a São Paulo. Em Porto Alegre, para onde se mudou na adolescência com alguns irmãos em busca de trabalho, dormiu embaixo de um viaduto, época em que seus quase 2 metros de altura o ajudaram a conseguir alguns trocados como segurança de travestis que faziam ponto por ali.
Depois disso, trabalhou vendendo válvula de gás, como zelador, jardineiro e um sem número de atividades até conseguir uma vaga como contínuo na TV Educativa gaúcha, onde sua capacidade inquestionável de comunicação – adquirida nos anos em que a mãe, Testemunha de Jeová, o incentivou a ler e decorar trechos inteiros da Bíblia – o levaram rapidamente para a frente das câmeras, de onde não saiu mais.
Um homem de família
Em vez de discorrer sobre sua vida, Manoel prefere exaltar a história da mãe, Ivanete. Em plenos anos 1980, para fugir da violência do marido, um conhecido chefe do tráfico na região, ela distribuiu sacolas de supermercado com roupas entre as vizinhas para deixar a casa com os filhos sem chamar a atenção. Mais tarde, o grupo de mulheres se reuniria na rodoviária, de onde a família partiu. Segundo de seis filhos, ele nunca mais viu o pai, assassinado anos mais tarde. Saber onde ele está enterrado e “fechar o ciclo” é um dos seus desejos de vida: “Tento todos os dias me tornar o pai que eu desejava ter”.
O bem-estar da família, que pontua quase todas as suas falas, é a principal preocupação do apresentador. “Fiz um pacto com minha mãe que eu iria batalhar com ela para que não enterrássemos nenhum de nós. É isso que eu defino como vitória na vida”, afirma. Os cinco irmãos estão vivos, assim como Dona Ivanete que, aos 62 anos, ganhou a primeira casa própria do filho famoso. Manoel também se tornou pai de seis filhos, dois de uma primeira relação que teve aos 22 anos, dois enteados e os caçulas Ezequiel e Izael, de 3 e 2 anos, da sua relação com a administradora Dinorá Rodrigues, com quem está casado há 17 anos.
“Fiz um pacto com minha mãe que eu iria batalhar com ela para que não enterrássemos nenhum de nós. É isso que eu defino como vitória na vida”
Os filhos são sua plateia mais exigente, além de fonte permanente de aprendizado: puxam a orelha do pai se escorrega em alguma expressão machista ou homofóbica, avaliam seu comportamento em frente às câmeras e nas redes sociais. São eles também que dividem, no melhor conceito de comunidade, as tarefas em casa, incluindo os cuidados com os dois pequenos, diagnosticados com espectro autista.
Ser a melhor versão de si para eles é, segundo Manoel, uma responsabilidade muito maior do que encarar a audiência diariamente. Mas ele acredita estar cumprindo bem o compromisso que se propôs diante da ausência paterna. “Tenho muito orgulho da minha galera. Eu produzi meus melhores amigos.”
*A reportagem completa está na edição de setembro da revista PODER, em breve nas bancas.