Um passeio pela obra de Sylvia Plath, musa cult e ganhadora de um Pulitzer

Sylvia Plath | Foto: Faber Book

Musa cult e ganhadora de um Pulitzer, a poeta Sylvia Plath causou alvoroço na cena intelectual na década de 1960. Sua obra é carregada de elementos autobiográficos, como os traços da depressão que a levou à morte precoce. Neste ano, ela volta a ganhar destaque com o anúncio de um filme dirigido por Kirsten Dunst.

Por Natália Albertoni para Revista J.P de outubro de 2016

“Eu via minha vida se ramificando à minha frente como a figueira verde daquele conto. Da ponta de cada galho, como um enorme figo púrpura, um futuro maravilhoso acenava e cintilava. Um desses figos era um lar feliz com marido e filhos, outro era uma poeta famosa, outro, uma professora brilhante, outra era Ê Gê, a fantástica editora, outro era feito de viagens à Europa, África e América do Sul, outro era Constantin e Sócrates e Átila e um monte de amantes com nomes estranhos e profissões excêntricas, outro era uma campeã olímpica de remo, e acima desses figos havia muitos outros que eu não conseguia enxergar.

Me vi sentada embaixo da árvore, morrendo de fome, simplesmente porque eu não conseguia decidir com qual figo eu ficaria. Eu queria todos eles, mas escolher um significava perder todo o resto, e enquanto eu ficava ali sentada, incapaz de tomar uma decisão, os figos começaram a encolher e ficar pretos e, um por um, desabaram no chão aos meus pés.”

Ao criar imagens literárias para questões rotineiras e desconfortáveis, Sylvia Plath (1932-1963) possibilitou aos leitores o reconhecimento de experiências que atravessam o tempo. Não por acaso, o famoso trecho do livro “A Redoma de Vidro”, lançado em 1963, após o suicídio da autora norte-americana aos 30 anos, é lembrado no último episódio de “Master of None”. A série cool, exibida na Netflix desde 2015, acompanha o dia a dia banal de um grupo de amigos da geração dos anos 1990 enquanto encara a vida adulta. O questionamento ainda faz sentido mais de 50 anos depois. Os 30 são de decisões. Fazer nada também é uma escolha. E o tempo acaba.

“Alguém ainda fala de ‘Cinquenta Tons de Cinza’? Não. Porque era ralo. A febre passou. Sylvia Plath é importante porque foi capaz de dar concretude a uma experiência histórica e subjetivamente significativa. Falou sobre algo que está debaixo do seu nariz, mas você não consegue ver. Ela é um Beethoven entre os que gostam de literatura”, diz Maria Elisa Cevasco, professora titular da Universidade de São Paulo.

O único romance de Sylvia é carregado de referências autobiográficas. Publicado na Inglaterra, onde morou, sob o pseudônimo Victoria Lucas após as rejeições de algumas editoras, o livro apresenta a história de Esther Greenwood, uma jovem que ganha um estágio em uma revista feminina em meados dos anos 1950, em Nova York, e tem um futuro promissor, mas é acometida de uma grave depressão. Uma tentativa de suicídio e a subsequente internação em clínica psiquiátrica esquentam a narrativa.

Embalado por toda a mística criada em torno do paralelismo com a vida da escritora, o livro alcançou o status de cult. Mas são os poemas dela a sua produção mais notória. Por “The Collected Poems”, ela ganhou um prêmio Pulitzer em 1982, o quarto entregue postumamente na categoria. Já “Ariel”, escrito pouco antes da sua morte e publicado em 1965, é considerado uma obra-prima por publicações como o “New York Observer”. Segundo o jornal, o livro é “composto de poemas tão originais em estilo e surpreendentemente realizados em seu tom confessional, que ajudou a mudar o rumo da poesia contemporânea”.

Representante da poesia confessional, a exemplo de Robert Lowell (1917-1977) e Anne Saxton (1928-1974), influências para o seu trabalho, Sylvia leva experiências pessoais como traumas e vivências em relacionamentos para a sua produção. Não é coincidência que 1962 seja seu ápice criativo. É o ano que marca a sua separação do poeta Ted Hughes (1930-1998), com quem teve dois filhos. É também o período que ela mais se dedicou à escrita, já fixada em Londres, após deixar de lecionar língua inglesa e literatura no Smith College, nos Estados Unidos, onde se formou.

A relação quase indissociável entre a vida e a obra de Sylvia contribui para o contínuo interesse pela poeta. Ao menos seis grandes biografias foram escritas sobre ela – sendo a mais recente de 2015 (“Ísis Americana: a Vida e a Arte de Sylvia Plath”, de Carl Rollyson). Cartas, desenhos, diários e anotações são revelados pouco a pouco, e um fluxo de artigos e ensaios alimentam a fome por segredos sobre a vida dela.

Sylvia Plath posa na praia em 1955 | Foto: Reprodução

#LEIAMULHERES

A recente sofisticação do debate acerca do feminismo a colocou novamente em pauta. A tradução de “Ariel”, esgotada em livrarias, chega a custar R$ 300 na Estante Virtual ou em sebos físicos como o Espaço do Livro, em Pinheiros.

Já a leitura de “A Redoma de Vidro” inaugurou os encontros do Leia Mulheres, criado em 2015. O clube do livro de Juliana Gomes, Juliana Leuenroth e Michelle Henriques é inspirado no projeto da escritora Joanna Walsh #readwomen2014, e como sugere a alcunha, incentiva o público a ler mais mulheres. “As pessoas choraram na primeira reunião. Compartilharam suas histórias com a depressão e a maternidade”, diz Michelle a J.P.

O início dos encontros paulistanos, hoje com adeptos pelo Brasil, coincidiu com a notícia do relançamento das obras completas da autora em português pelo selo Biblioteca Azul, da Globo Livros. A editora, que detém os direitos da obra de Sylvia no Brasil, notou um aumento de 15% na procura de “A Redoma de Vidro” em julho deste ano. A constatação está interligada ao anúncio de uma nova adaptação do mesmo para o cinema pelas mãos da atriz Kirsten Dunst, que estreia na direção. Ao que tudo indica, o longa, previsto para 2017, será protagonizado pela musa teen Dakota Fanning em uma versão bem mais glamourosa que a de Larry Peerce (“Paixão de Primavera”) lançada em 1969. Aproveitando o embalo, a Biblioteca Azul confirma a reedição do esgotado “Os Diários de Sylvia Plath” para o início do ano que vem.

O teatro também mergulha no universo da poeta. Em cartaz em junho no Sesc Consolação, a peça “Pulso”, dirigida por Vanessa Bruno, enfoca o último dia da escritora em vida. Teve todas as sessões esgotadas. Da plateia, a sensação era a de ter encontrado a porta da casa de Sylvia entreaberta e entrado para espiá-la. O que se assiste é um episódio de crise aguda da artista, estafada entre lembranças, devaneios e os cuidados do lar, como fazer um bolo. O sucesso foi tanto que prorrogaram a apresentação por duas semanas. Em agosto, o espetáculo migrou para o Viga Espaço Cênico, em Pinheiros. Em setembro, o solo de Elisa Volpatto ganha novo palco, a sala Carlos Miranda, na Funarte, nos Campos Elíseos.

“Ilhada em Mim”, encenada pela primeira vez em 2014, teve apresentação única em agosto, no Itaú Cultural. Com direção de André Guerreiro Lopes, o espetáculo é um poema cênico inspirado nos escritos pessoais de Sylvia Plath, com texto de Gabriela Mellão. A ação se passa em um espelho d’água onde objetos congelados derretem progressivamente, dando a impressão que o cenário e os atores parecem afundar, acompanhando a jornada emocional da personagem. “Nosso interesse foi o de trazer para a cena o universo único de Sylvia, paradoxal. A mente e a personalidade genial e destrutiva dela, mais do que a sua história, foi o que nos atraiu”, conta Lopes.

Para a professora da USP Maria Elisa, o recente interesse pela autora está ligado a um processo de subjetivação feminina a partir da ideia revolucionária que uma mulher se torna mulher, como sugere Simone de Beauvoir. “O significado muda de acordo com o momento histórico. Ou você acha que é mulher como quer ser?”, provoca. “Você vai introjetando uma subjetividade que é sua, mas ao mesmo tempo calcada em valores sociais. Antes, se discutia o feminismo com base na luta por igualdade. Hoje, o debate é mais sofisticado. Se discute a condição feminina.”

Sylvia entra de cabeça nisso. “A Redoma de Vidro” é um livro sobre como se tornar mulher dentro de um contexto repressivo que é a sociedade norte-americana dos anos 1950. No limiar dos anos 1960, pré-revolução sexual, ela antecede questões que vão ser abraçadas pelo movimento feminista. “A Redoma é exemplar de um gênero raro, que é o romance de formação feminino. Narra como se forma uma pessoa, da adolescência até a vida adulta. Existem muitos romances de formação, mas quase todos são masculinos, porque é o processo hegemônico”, elucida Maria Elisa.

Com consciência do seu papel, Sylvia escancara as emoções com domínio da linguagem. Compartilha angústias e fala de morte ao mesmo tempo que instiga o leitor a sair da sua zona de conforto, a encarar o seu lado sombrio ou a escolher um dos frutos daquela figueira antes que seja tarde. Como ela fez, talvez sem perceber, carregando quase todos numa cesta da sua existência.

AUTORES PARA LER

Referências literárias de Sylvia PlathAnne Saxton, Dylan Thomas, Robert Lowes, William Blake, William Yeats, W. H. Auden

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