Ana Flávia Cavalcanti é resistência: mulher bissexual, afrodescendente, filha de empregada doméstica, que se tornou atriz da Globo, não esquece de suas raízes e faz questão de lutar por suas verdades. Aos 36 anos, ela é voz ativa no Instagram contra o ódio velado e o preconceito, e viaja o mundo com a suas performances ‘A Babá Quer Passear’ e ‘Serviçal’, que falam justamente sobre racismo estrutural e a questão hierárquica no Brasil. Já já Ana será vista na série ‘Sob Pressão’, a partir do oitavo episódio, no papel da dependente química Diana. “Não quero julgar a Diana e nem tantos outros que acabam nas drogas por estarem nas ruas, ou por outros motivos. Vivemos em uma sociedade tomada pela ansiedade e depressão, e não temos um sistema de saúde ou de educação que cuide da cabeça do ser humano”, diz ela, que não tem medo de dizer o que pensa sobre a situação sociopolítica do Brasil e aproveita as redes sociais para falar sobre sua vivência e brigar pelo direito do povo negro. “No meio artístico, as pessoas escrevem e fazem trabalhos de acordo com a sua vivência. E a maioria dos diretores e escritores são brancos, e escrevem para pessoas brancas”. Glamurama bateu um papo ótimo com Ana Flávia. Vem!
Glamurama: A sua personagem em ‘Sob Pressão’, Diana, é diferente de tudo o que você já fez. Como está sendo encarar esse desafio?
AF: Foi muito legal! A Diana é uma moça do interior que decide tentar a vida no Rio de Janeiro, mas nada acontece como ela pensava. Por conta dessa situação, ela começa a ter contato com a cocaína. Essa personagem é muito importante pra mim porque está distante da minha realidade. Não tenho vícios. E isso fez com que eu saísse completamente da minha zona de conforto e tentasse entender as motivações e dificuldades da Diana. Optei por não julgá-la. Os episódios de ‘Sob Pressão’ tem sempre um personagem que entra para discutir tabus. A série já falou sobre feminicídio, homofobia, tudo com muita responsabilidade, e estou muito feliz de fazer parte disso.
Glamurama: Como foi o processo de construção da Diana?
AF: Li bastante sobre os motivos que levam ao vício. Ouvi psiquiatras, pesquisei sobre possibilidades de tratamento, como a ayahuasca, que ajuda demais na cura do vício, mas não é um tratamento muito disseminado aqui no Brasil. Li até mesmo sobre o uso da maconha como ‘redução de risco’ em casos extremos. Realmente estudei muitos casos e tentei ampliar meu discurso sobre o assunto. Não quero julgar a Diana e nem tantos outros que acabam nas drogas por estarem nas ruas, ou por outros motivos. Vivemos em uma sociedade tomada pela ansiedade e depressão, e não temos um sistema de saúde ou de educação que cuide da cabeça do ser humano.
Glamurama: Como é trabalhar com Júlio Andrade, Marjorie Estiano, Drica Moraes e Andrucha Waddington?
AF: É muito legal. Todos são muito sensíveis e acolhedores. Essa não é a primeira temporada de ‘Sob Pressão’ e a minha personagem entra no episódio 8 e fica até o 14, peguei o bonde andando, mas mesmo assim todos foram incríveis. Sem contar que aprendo demais com essa série, é como uma escola de atuação.
Glamurama: Além de ‘Sob Pressão’, você tem outros projetos?
AF: Eu tenho dois trabalhos pessoais, que são minhas performances. Em ‘Serviçal’, convido o público a falar suas histórias ou qualquer outra coisa que queiram compartilhar. Com esse trabalho, as pessoas tem a oportunidade de ter voz, falar sobre as situações como racismo estrutural, preconceito. Outra performance que também faço é ‘A Babá Quer Passear’, que trata a questão das empregadas domésticas no Brasil. Com ela participo de manifestações, como a pró-Bolsonaro que teve dia desses na avenida Paulista. Além disso, estou no elenco da série ‘Onde Está Meu Coração’ e fui escalada para a próxima novela das 9 da Globo.
Glamurama: Como concilia tantos trabalhos?
AF: Ah, tá rolando. Estou trabalhando bastante, mas estou focada. Comecei como atriz aos 26 e hoje estou com 36. De cinco anos pra cá, estou colhendo muitos frutos e espero continuar assim, me esforçando sempre. Não faço questão de luxo, mas não quero que falte nada. Profissionalmente falando, sou hiperativa.
Glamurama: Quando você decidiu ser atriz e como foi esse processo até fazer sua primeira novela?
AF: Resolvi ser atriz nos anos 2000 quando me mudei para São Paulo. Mas demorou para acontecer. Eu queria muito fazer um curso de atuação, mas era muito caro e eu não tinha condições. Depois de algum tempo, fiz um curso técnico de enfermagem e também entrei para o mundo da publicidade, quando comecei a ganhar algum dinheiro. Foi com isso que paguei meu curso. Então fui chamada para interpretar a Carola, na novela ‘Além do Tempo’, e emendei um trabalho depois do outro. Foi incrível. É um sonho e um lugar difícil de chegar, principalmente para uma mulher negra.
Glamurama: Como é ser mulher negra dentro do meio artístico? A televisão, o teatro e o cinema estão abrindo mais as portas para os negros?
AF: Sou negra de pele clara. Dentro da estrutura, as coisas são mais fáceis para mim do que para pessoas com a pele retinta, por exemplo. Mesmo assim, é complicado. O preconceito está por aí e não existem tantas oportunidades assim. No meio artístico, as pessoas escrevem e fazem trabalhos de acordo com sua vivência. Mesmo que em várias produções o negro não ocupe mais apenas aquele papel inferiorizado, falta história em que o núcleo protagonista seja um núcleo de pessoas negras. O empoderamento negro existe, mas ainda não somos protagonistas.
Glamurama: Como você analisa a atual situação social e política do Brasil?
AF: É difícil, estamos em um tempo de retrocesso, uma tristeza. Ele (o presidente da república) representa o que tem de pior. É uma ameaça não só para o Brasil, mas para o planeta. Apoia ações como o desmatamento e não dá importância para as minorias. Na verdade, a população negra é maioria no Brasil, e mesmo assim temos menos direitos. Fiquei feliz quando o STF oficializou que homofobia como crime. Tenho certeza que Bolsonaro não foi a escolha da maioria, muitos estavam confusos, ou só com ódio do PT.
Glamurama: No Instagram, você se posiciona politicamente. Já foi alvo de represálias?
AF: Já roubaram a minha conta no Instagram três vezes. Durante a campanha, apoiei o Haddad. Acho ele uma pessoa incrível e isso não tem nada a ver com o partido. Nessa época, muitas pessoas denunciaram o meu perfil. O ódio velado na internet existe e muito. Eu não ligo para negatividade, mas vou lutar contra isso. Sou uma mulher afrodescendente, filha de empregada doméstica, 36 anos de idade e tudo o que eu puder fazer por meu povo, vou fazer.
Glamurama: Com sua experiência, que conselho daria para tantas garotas que vivem a mesma realidade que você viveu?
AF: A primeira coisa é um clássico: estudem. Tenho muitas críticas à educação brasileira, mas é o que temos e é necessário estudar. Não tem como parar. Fiz escola pública a vida inteira e entendo a agonia do jovem periférico. Sobre atuação, também tem que se especializar. Mas uma coisa que sempre gosto de falar é: as pessoas querem ser atores, ou querem ser atores da Globo? Eu amo meu local de trabalho, é incrível e eles estão tentando fazer a parte deles na sociedade, mas você pode ser um ator renomado sem trabalhar na Globo. De qualquer forma, o importante é não desistir. Demorei seis anos para chegar aonde estou. Para as pessoas brancas, é mais fácil, tem toda a questão da diferença racial. Mas manter o foco é tudo. E é bom lembrar sempre: o que ninguém tira de nós, nem o governo, é o conhecimento. (por Jaquelini Cornachioni)