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Da esq. para a dir.: Jorge Adib, Jorge Serpa, José Mario Pereira e Ronald Levinsohn // Crédito: Marco Rodrigues

Morreu no domingo, 20, aos 96 anos, Jorge Serpa, uma das figuras mais influentes da República. Interlocutor entre empresários, como Roberto Marinho, de quem era ‘assessor’ e amigo, e o poder público, era considerado ‘o maior lobista do Brasil’. Sempre muito discreto, pouco aparecia apesar de ser bastante próximo de poderosos de diferentes épocas, como Juscelino Kubitschek, João Goulart e Fernando Henrique Cardoso.

Lembramos aqui entrevista que Jorge Serpa deu à revista PODER em novembro de 2015:

O Sombra

Jorge Serpa já foi chamado de o maior lobista do Brasil. Mas sua época de influência para derrubar ministros e recompor governos passou. Que articulador hoje em dia preferiria carro usado a jatinhos e prezaria mais a própria lenda do que o dinheiro?

por Paulo Vieira (revista PODER novembro/2015)

Ele é considerado o maior lobista do Brasil. Mas nos tempos em que sua atuação foi mais decisiva, no século 20, a
atividade parecia ter algum romantismo. O jantar-com-vinho-ostentação no previsível estrelado Michelin dava lugar ao imutável frango desossado com arroz e água no almoço do vetusto restaurante Mosteiro, no apinhado centro velho do Rio. Táxi ou carro usado era preferível a jatinho. Avesso a fotos e entrevistas, erudito e cortês no limite do caricato, tratava de “meu bem” todos os seus interlocutores – dos mais xucros, como PC Farias, aos mais ilustrados, como Fernando Henrique Cardoso. Se sua vida virasse filme, o que só aconteceria à revelia do personagem, o casting seria um problema: como escolher um ator para retratar alguém que ninguém sabe dizer se é anjo, demônio, nacionalista utópico ou ávido por dinheiro? Mais fácil encontrar os atores coadjuvantes para encarnar João Goulart, Roberto Marinho, Juscelino Kubitschek, FHC, Samuel Wainer, Maílson da Nóbrega e Delfim Netto.

Multifacetado, misterioso, refinado, cativante, Jorge Serpa vive hoje, aos 92 anos, praticamente recluso em sua casa na Gávea, no Rio de Janeiro. Seus poucos interlocutores dizem que o imóvel precisa de reparos. Sua extensa biblioteca com muitos volumes de filosofia e de teologia vem sendo passada nos cobres. Mais ou menos como se dá com João Gilberto, Serpa, um dia chamado de “Cardeal”, em alusão ao poderosíssimo Richelieu (cardeal francês que foi ministro de Luis XIII de 1628 a 1642), assiste, solitário, ao fim da própria lenda, cultivada com esmero ao longo de cinco décadas. A débâcle se deu com a morte de Roberto Marinho, em 2003, de quem Serpa foi o que os antigos chamavam de “eminência parda”. “Acontece que ele não cultivou os ‘meninos’”, na observação de uma velha raposa do poder nacional – os “meninos” são os filhos de Marinho que hoje dirigem a Globo.

Como cabe a um personagem lendário, o legado de Serpa no futuro talvez seja transmitido pela história oral e dele
se conheça apenas o estritamente inverossímil. Apesar de sua ação constante nos bastidores do poder, dele pouco se escreveu. Quem privou de sua intimidade prefere falar em off. Quando malfeitos lhe foram explicitamente atribuídos, como nas biografias de Samuel Wainer e de Maílson da Nóbrega, preferiu o silêncio: replicar na mesma moeda com sua versão dos fatos jamais esteve em discussão. O modus operandi não mudou em 2015: Serpa chegou a atender um telefonema da reportagem da PODER e, na ocasião, pediu que a possível conversa acontecesse em outro momento. Simplesmente deixou de responder às ligações seguintes.

FOBIA AÉREA

Em torno de Serpa, apelidado tantas vezes de “bruxo”, há uma mitologia divertida, que passa pela propalada fobia de avião – ele ia do Rio a Brasília por terra, mas há relatos de que viajou de turboélice com Juscelino Kubitschek e de jato para a Itália, convidado que foi por Naji Nahas para uma festa em Veneza; que vai também da inabilidade com o dinheiro (e de sua família perdulária) às enormes somas que teria movimentado desde o governo JK (1956-1961); sua decisiva atuação na articulação pela queda ou pela promoção de ministros é confirmada ou desmentida com veemência,
de acordo com a fonte consultada. A longa amizade com Roberto Marinho, seu lastro-ouro durante os governos José Sarney (1985-1990) e Fernando Collor de Mello (1990-1992), se solidificou com as primeiras concessões de TV conseguidas para o jornalista. Na passagem mais dura de sua vida, em julho de 1965, quando foi espancado pelos homens do secretário de Segurança da Guanabara, Gustavo Borges, por conta do chamado Escândalo Mannesmann (emissão de papéis fajutos do conglomerado alemão com sua assinatura), teve o apoio decisivo de Marinho – e do jornal O Globo.

ONIPRESENÇA
Cearense formado em direito no Rio, aluno do emérito San Tiago Dantas, o homem que lhe abriria as portas na política, foi nos anos 1940 trabalhar no gabinete de Ângelo Mendes de Moraes, prefeito do Rio de Janeiro. Água e óleo: Moraesera dado a dar espadadas na mesa e tiros do próprio gabinete para matar gambás; na época, Serpa cultivou amizades com os publishers Paulo Bittencourt (do Correio da Manhã) e Roberto Marinho, além de se aproximar de João Goulart, que seria ministro do Trabalho de Getúlio Vargas em 1953. Foi muito influente no governo seguinte, o de Juscelino Kubistchek, em que Jango era vice, e finalmente teria sido um ministro sem pasta no governo Jango (1961-1964) e, como tal, com tanta ascendência sobre o presidente quanto o então chefe da Casa Civil, Darcy Ribeiro.

Entre as proezas afirmadas por uns e desmentidas por outros, há a de que teria escrito o discurso de posse do general Emílio Garrastazu Médici na Presidência da República em 1969 (se Serpa guardou mesmo a cópia do manuscrito como sustenta o amigo pessoal José Mario Pereira, dono da editora Topbooks, o documento não teria ido embora junto com sua biblioteca); e também redigido “O Choque do Capitalismo”, discurso que o então senador Mário Covas proferiu na tribuna do Senado para se tornar mais palatável ao empresariado (e principalmente a Roberto Marinho) nas eleições de 1989; Serpa também teria amealhado poder suficiente no Ciclo Militar para decidir quem deveria receber as “prioridades”, as linhas de financiamento especiais que ajudavam as empreiteiras. Nas reuniões em que Roberto Marinho recebia poderosos, Serpa era sempre o condutor, talvez ajudado pelas dificuldades auditivas do anfitrião. Sabedor dessa deficiência, um convidado, José Serra, falou alto demais em um desses encontros, o que irritou o advogado. Onipresente, podia estar tanto no gabinete de Jânio Quadros, quando este foi prefeito de São Paulo pela segunda vez (1953-1955), organizando um pleito junto à Caixa, quanto numa articulação em Brasília. “Serpa é um sujeito fantástico, consegue rapidamente encontrar a solução de um problema complexo e apresentá-la ao interlocutor”, define o economista Delfim Netto, czar da economia no regime militar, que disse a PODER jamais ter recebido um pedido do lobista. “Não acredito no que se fala, de que tenha escrito o discurso de posse de Médici e exercido grande influência sobre Roberto Marinho.”

Sua sobrevivência na transição do governo Jango, de quem seria um dos mais próximos interlocutores, para a ditadura, é controversa. Serpa, que colecionava dossiês, aproximou-se da linha dura da Marinha, mas ao mesmo tempo cuidou do envio de bens do presidente deposto para o Uruguai. Mas o grande número de pessoas lesadas pelo Escândalo Mannesmann não o livrou da polícia e do espancamento, em 1965. “Fui colocado nu e eles fizeram o serviço de acordo, batendo em locais que não deixam marca”, disse à época.

Em um mundo político polarizado, em que um ai não fica sem réplica e a réplica não fica sem tréplica, é surpreendente que Serpa não tenha se indisposto com a família do jornalista Samuel Wainer, que na autobiografia póstuma, Minha Razão de Viver (Editora Planeta), diz ter recebido uma proposta do advogado que hoje seria considerada bastante constrangedora (veja boxe acima). Levaria Serpa a extremos o nobre ensinamento cristão do perdão? “Profundamente religioso, Serpa tentou que eu voltasse ao catolicismo militante. Rezando à Nossa Senhora, sentiu que ela sorria para ele”, disse a PODER o escritor Carlos Heitor Cony, para quem Serpa foi uma das pessoas “mais impressionantes” que conheceu.

O economista Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda do governo Sarney, também cita Serpa em sua autobiografia, Além do Feijão com Arroz (Civilização Brasileira). “Este poderoso lobista, respeitado e temido, era também muito discreto e misterioso. Não se deixava fotografar e, em Brasília, só ficava no hotel Carlton e se recusava a viajar de avião”, registrou o ex-ministro.
Em 1988, Serpa tentou negociar com o ministro uma operação de US$ 1 bilhão, de venda de casas pré-fabricadas, que seria paga com títulos da dívida externa brasileira. Uma empresa californiana da área de gás estaria interessada no produto. Desconfiado dos atores do acordo, Maílson abriu uma investigação e encontrou enormes inconsistências. Por abortar o negócio, ele entrou para o rol de desafetos do lobista. O ministro, como se sabe, durou até o último dia do governo Sarney, em março de 1990. No ano anterior, no dia 4 de agosto, saiu nos jornais: “Inflação derruba Maílson”. Menos do que uma barriga (jargão para erro jornalístico), a nota foi plantada para tentar ejetá-lo do Palácio do Planalto.

Em algumas aparições em páginas dos jornais ou revistas, a lenda chegou antes do personagem. Para a revista Veja, em matéria sobre a operação de US$ 1 bilhão, Serpa era o profissional do lobby de quem “nunca se sabe o que pensa, faz ou diz – até porque é capaz de desmentir que tomou um copo d’agua”; no Jornal do Brasil, alguns meses depois, o jornalista Etevaldo Dias viu em Serpa o conspirador que tentou derrubar “de uma só vez” dois ministros do governo Sarney, Maílson da Nóbrega e João Batista de Abreu (Planejamento). Não faltaram na descrição do advogado os toques mitificadores. “Bruxo incansável” que dispara “poções mágicas sobre todas as frentes da política” e que “tem fobia por avião”, por exemplo.

No livro ‘Notícias do Planalto’, Serpa foi, na definição do autor, o jornalista Mario Sergio Conti, uma “eminência-discreta-mas-nem-tanto”. “As eminências trafegavam entre donos de jornais, políticos e banqueiros, apartavam brigas entre eles, promoviam reconciliações, azeitavam acordos, faziam amigos e influenciavam pessoas ricas e poderosas”, escreveu. Serpa, contudo, já havia repelido a pecha muito tempo antes: “Não sou eminência parda, vermelha, nem cinzenta”. Por fim, no recém-lançado Diários da Presidência (1995-1996), Fernando Henrique Cardoso viu em Serpa alguém que “tem sempre ideias grandiosas”, ainda que “repetitivas” (veja boxe ao lado). FHC concede ao advogado certa visão do mundo, visão que prefere usar na expressão alemã, weltanschauunge, “para falar pedantemente, como Serpa gostaria”, diz o ex-presidente.

Refinamento intelectual não é a coisa melhor partilhada nos bastidores do poder hoje em dia, mas é lícito imaginar que recupere certo espaço, momentâneo que seja, com o último ato de Serpa, que, mais cedo ou mais tarde, irá ocorrer. Epílogos, como se sabe, têm sempre algum alcance midiático. Não significa, contudo, que tenham o poder de ajudar a esclarecer o que existe por trás das brumas. Ponto para elas, ponto para ele.

À Mesa com FHC

Jorge Serpa é citado sete vezes no recém-lançado Diários da Presidência (1995-1996), livro da Companhia das Letras em que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso divulga as anotações – na verdade, gravações em áudio – de seus dois primeiros anos no Palácio do Planalto. Em sua primeira “entrada”, Serpa fala ao presidente em nome de Luiz Antônio de Medeiros, ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e opositor da Central Única dos Trabalhadores (CUT); depois Serpa volta a fazer gestões junto a FHC em nome de um grupo interessado numa usina hidrelétrica de Goiás, a Serra da Mesa; mais à frente tem uma conversa de “meia hora” por telefone com o presidente, quando este estava em visita oficial ao Paraguai, para “divagar sobre o mundo”. Almoços são dois: um a sós com o presidente, em que “deu informações preciosas sobre eventuais malandragens que podem, indiretamente, implicar o governo”, e, em outra ocasião, em companhia também do empresário Benjamin Steinbruch, já à frente da CSN; Serpa posiciona o presidente sobre a exploração de gás natural no Amazonas, algo que o ex-governador Amazonino Mendes preferia abrir para empresas privadas e “a Petrobas avançou”; por fim, fala a FHC “uma porção de coisas sobre as articulações que estão sendo feitas na compra da Vale” e também sobre a Petrobras. O ex-presidente, que, informado sobre o teor da reportagem, não quis falar com PODER , é suave com o lobista: “Serpa nunca me propôs nada que não fosse uma coisa aceitável e nunca fez nada que não fosse aceitável”.

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