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Tchau querida
Tchau querida || Créditos: Bruna Bertolacini/Revista PODER
Tchau querida  ||  Créditos:  Bruna Bertolacini/Revista PODER
Tchau querida || Créditos: Bruna Bertolacini/Revista PODER

Repórter aproveita dia da votação do impeachment para fazer um apanhado sociológico na Câmara dos Deputados.

Por Paulo Sampaio para a Revista PODER de maio
Ilustração: Bruna Bertolacini

Botox no rosto, vestido Calvin Klein, bolsa Chanel e sapatos Valentino, a dermatologista pernambucana Luciana Lócio está indignada com o abandono da saúde e da educação pelo governo do PT. “Gente, é um absurdo!”, revolta-se ela, sem rugas de preocupação. “O Brasil está sofrendo com epidemias de doenças do sexto mundo. Doenças africanas! E aí o governo importa médicos cubanos, que completam o curso em três anos! São sub-médicos!”. Luciana caprichou no look porque o momento pedia.  A Câmara Federal votava naquele domingo o impeachment da presidente Dilma Rousseff, o que catapultou o 17 de abril de 2016 à categoria de data histórica. PODER foi a Brasília fazer um apanhado sociológico na casa legislativa. Tratava-se de uma oportunidade raríssima: não é sempre que 511 dos 513 parlamentares se reúnem no plenário para trabalhar. Se já é difícil em dias úteis,  imagine em um domingo de sol. A circunstância era tão excepcional que precisaram ceder credenciais de jornalistas para parentes de parlamentares, que vieram em comitiva.

Credenciais ||  Créditos: Bruna Bertolacini/Revista PODER
Credenciais || Créditos: Bruna Bertolacini/Revista PODER

E foi assim que Luciana entrou. “Sou prima da mulher do deputado (José Bezerra) Mendonça Filho (DEM-PE, que se tornou ministro da Educação no governo interino de Michel Temer)”, explicou ela, afundando o saltinho do Valentino no carpete fofo do Salão Verde. Era ali que se concentravam os jornalistas, a parafernália técnica das emissoras de TV e parte dos infiltrados. Kim Kataguiri, do Movimento Brasil Livre, de apoio ao impeachment, assistia à sessão sentado em frente a um dos dois telões instalados no lugar.  O plenário,  contíguo ao Salão Verde, estava superlotado. Segundo a assessoria da Câmara,  cada deputado tinha direito a levar quatro aparentados.  O problema é que o lugar não acomoda tanta gente.  Segundo a assessoria, a fileira central tem capacidade para 396 pessoas;   as laterais, somadas, para 51 –  os assentos são reservados para assessores de deputados, jornalistas e, naquele 17 de abril, para familiares. Se todos aparecessem, a audiência somaria mais de 2 mil pessoas. Questionada sobre o esquema adotado naquele dia pela segurança, a assessoria da Câmara não retornou até o fechamento desta edição. De acordo com o que informou, uma parte dos familiares assistiria ao evento do telão do auditório Nereu Ramos, que tem capacidade para 294 pessoas sentadas. PODER esteve lá em diferentes ocasiões e nunca encontrou mais do que cinco pessoas, contando os guardas. Os cônjuges, filhos, cunhados, concunhados, primos dos irmãos etc. que não quiseram ficar no plenário refestelaram-se nos gabinetes das lideranças, onde garçons uniformizados serviam finger food (canapés), bolinhos, bolachinhas, refrigerante, chá e cafezinho.

Os jornalistas estrangeiros que cobriram o evento pareciam apavorados com a algazarra na hora da votação. Na Inglaterra, por exemplo, o Parlamento está aberto para cidadãos comuns, mesmo em dia de sessão, mas só é permitido participar como ouvinte. Jamais se manifestar, muito menos torcer. O consulado britânico em São Paulo informa ainda que parlamentares e ouvintes ficam separados. Nos EUA, as galerias do Capitólio estão abertas para visitantes em eventos especialíssimos, como no discurso do Estado da União, proferido anualmente pelo presidente do país. Nada que se compare ao psicodrama coletivo que caracterizou a votação do impeachment. O deputado pernambucano Dudu da Fonte (PP) quis colocar o filho de 15 anos para dizer o “sim” no lugar dele. Até o presidente da casa, Eduardo Cunha, denunciado pelo Ministério Público Federal por acusação de receber propina de mais de US$ 5 milhões, achou excessivo. “É melhor do que Copa do Mundo”, comentou Pablo Roman, de 22 anos, filho de Evandro Roman (PSD-PR), também favorável à saída de Dilma Rousseff.

Blá, blá, blá  ||  Créditos: Bruna Bertolacini/Revista PODER
Blá, blá, blá || Créditos: Bruna Bertolacini/Revista PODER

Deputado Bolsonaro!
Os repórteres que estavam fora do plenário durante a votação tinham de lutar com cinegrafistas, fotógrafos e colegas da imprensa para tentar chegar perto dos deputados nas raras vezes em que eles deixavam a sala. Ou quando saíam depois de votar. Luciana, a prima de Mendonça Filho, estava falando sobre sua insatisfação com a educação quando o deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ), que homenageou o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, expoente da ditadura militar, foi cercado por holofotes e microfones. Sem conseguir se conter, ela correu até ele e o puxou: “Deputado Bolsonaro, deputado Bolsonaro!”, chamou, meneando a progressiva. “O senhor faria uma foto comigo?” Luciana afirmaria depois a PODER que a foto era para uma amiga fã do deputado.

Todo mundo reconhece que educação, no Brasil, vai mal.  Muitos acreditam que o sinal mais evidente disso está na própria Câmara dos Deputados. A forma com que a maioria se expressa é tão caricatural que evoca personagens como o lendário Odorico Paraguaçu, prefeito criado por Dias Gomes para sua peça – e depois novela – O Bem-Amado. “Pelo fim da vagabundização remunerada”, bradou Alceu Moreira (PMDB-RS). Para dar solenidade às suas falas, Paraguaçu apelava para um português extravagante, cheio de, digamos, retumbâncias. “Vai ter uma confabulância político-sigilista sobre nossas candidaturas”, dizia. Ou: “Pare com esse perguntório e essa cara de desinteria. Temos é que tratar dos providenciamentos inauguratícios do cemitério”.

Odorico Paraguaçi
Odorico Paraguaçu || Créditos: Bruna Bertolacini/Revista PODER

Naquele domingo, os deputados até podiam se considerar criativos, mas não era engraçado, era apavorante. Em suas justificativas para um voto tão importante, faziam homenagens esdrúxulas. “Por todos os corretores de seguro!”, gritou um; “Pela BR-429”, soltou outro; “Pela minha tia Eurides, que cuidou de mim quando eu era pequeno!”, encheu o peito o terceiro. O professor Victório Galli, deputado pelo PSC do Mato Grosso, citou em seu voto o ensaísta ultraconservador Olavo de Carvalho: “(O Olavo de Carvalho) já dizia que o PT ia dar ‘perca’ total no Brasil!”. Por sua vez, Eduardo Cunha dava o tom e convocava os parlamentares para a votação como se estivesse apresentando um concurso de miss. “Vamos chamar agora Santa Catarina!”

Eduardo Cunha ||  Créditos: Bruna Bertolacini/Revista PODER
Eduardo Cunha || Créditos: Bruna Bertolacini/Revista PODER

Empada ‘Jovair’
Às 13 horas, com fome, me arrisco na lanchonete que serve o Salão Verde. O que se oferece por ali é tão indigesto que mais parece uma metáfora gastronômica do que se passa no plenário. Impossível olhar para a vitrine dos salgados, cheia de enroladinhos gordurosos, e não fazer um paralelo com a tez de Eduardo Cunha; me detenho numa empada amarronzada e só consigo enxergar nela o tom da tintura dos cabelos de Jovair Arantes (PTB-GO), relator do processo de impeachment. O bolo de chocolate “diet” é tão difícil de engolir quanto um argumento do PMDB. Tento discretamente ejetá-lo da boca (cuspir tornou-se politicamente incorreto, mesmo quando não se quer atingir alguém) em uma lata de lixo, mas a massa é muito seca e está grudada na parte interna da bochecha. Quem já tirou molde da arcada dentária sabe do que estou falando. Jogo fora o que sobrou no prato. Na segunda investida, pergunto à atendente o que as pessoas mais pedem. Ela aponta para algo com uma salsicha dentro. Acho significativo, mas prefiro partir para uma empada “Jovair” e um refrigerante. A digestão pede ar. Arfo. Depois de me arrastar até um sofá, permaneço incomunicável por 15 minutos, até me sentir em condições de continuar a cobertura. Dentaduras, brilhantina, terno estilo jaquetão, os deputados são de uma falta de vergonha a toda prova. Mais indefensável que o discurso deles, só o visual. Mulheres da família saem do plenário com bolsas Chanel a tiracolo, em quantidade epidêmica. Fica mais fácil identificá-las pela bolsa do que pela credencial. Uma das que ostentavam um modelo médio – cujo preço, caso não seja uma versão pirata, é estimado em cerca de R$ 20 mil – era Carol, mulher do deputado tucano Bruno Araújo (PSDB-PE). Araújo ganhou seu minuto de fama ao proferir o 342º voto, que determinou a vitória do “sim” pelo impeachment da presidente Dilma. “Quanta honra o destino me reservou de poder sair da minha voz o grito de esperança de milhões de brasileiros”, bradou o político, um dos citados nas célebres planilhas da Odebrecht. Luciana Lócio garante que “tem muito deputado ali que não é ladrão”, e inclui Araújo entre eles. “O Bruno é gente boa, articulado, tem uma família superbonita. É gente como a gente, entende?” Seja lá qual for o ponto de vista dela, não, não entendo.

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