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"Nativos" e "integrados" esperam o ônibus da Viação Águia Azul, que hoje faz trajeto até Porto Seguro
“Nativos” e “integrados” esperam o ônibus da Viação Águia Azul, que hoje faz trajeto até Porto Seguro | Foto: João Farkas
Foto: João Farkas
Foto: João Farkas

Há 40 anos, quando não se falava ainda em protetor solar, retirantes alternativos de várias partes do planeta enfrentavam um pedregoso caminho para alcançar o paraíso. Travessias de rio, estradas enlameadas, trechos grandes a pé. Aproveitamos a aproximação do verão para publicar um ‘recuerdo’ fotográfico do mais luxuriante balneário do Nordeste

Por Paulo Sampaio | Fotos João Farkas

Até o fim do século passado, só um “louco de ácido” seria capaz de imaginar que no futuro os visitantes de Trancoso chegariam à cidade em seus próprios aviões, andariam de rasteirinha Hermès pelo gramado do centro da vila e pagariam até R$ 1 mil em um jantar. Antes de se tornar o balneário mais bombado do nordeste, o inóspito paraíso ao sul da Bahia exigia muita disposição de quem queria alcançá-lo. Nos anos 1970, 1980 e até a segunda metade dos 1990, os interessados tinham de navegar de canoa, subir na boleia de um caminhão, trafegar por estradas intransitáveis, atolar no lamaçal em caso de chuva e resignar-se a percorrer o resto do trajeto a pé – incluindo morros íngremes – com o mochilão nas costas.  Se o tempo estivesse bom, levava-se por volta de 1h30. A alternativa era ir pelo mar, a bordo do barco de algum pescador, numa travessia de aproximadamente três horas. Ao fim do percurso, o cansaço era vencido pelo sentimento de “integração com a natureza”, relatado especialmente por paulistas e cariocas bem de vida, que se diziam inadaptados aos avanços da civilização. Curiosamente, muitos desses forasteiros ainda moram em Trancoso, só que, contrariando todas as expectativas, tornaram-se grandes empresários do ramo imobiliário, hoteleiro, gastronômico e de entretenimento.

“Ninguém que foi pra lá naquele tempo esperava ficar rico. Eu não tinha ambição nenhuma. A gente morria de rir quando alguém falava de brincadeira que o McDonald’s ainda ia chegar ali”, lembra a empresária Claudia Pizzimenti, 51 anos, 28 de Trancoso. “Comprei um terreninho sem a menor pretensão, e vendi agora por uma puta grana. Jamais me passou pela cabeça que isso pudesse acontecer.” A princípio, quando ainda cursava comunicação em São Paulo, ela costumava ir para o Nordeste apenas nas férias. Até que, na volta de uma temporada na Europa, quando emendou outra em Trancoso, aceitou a proposta de um rapaz da cidade e abriu com ele a baladinha Paradise. Ficava no famigerado Quadrado, um campo coberto de grama que faz as vezes de praça da cidade. Cercado por um casario colorido, esse centrinho tem duas traves nas extremidades e funciona também como campo de futebol. É limitado ao fundo pela Igreja de São João Batista, que recentemente tornou-se palco de uma lucrativa indústria de casamentos. Oito anos depois de abrir o Paradise, Claudia fechou suas portas para inaugurar o Para-Raio. “A gente tocava gravações feitas em fita cassete de rock nacional, Paralamas, Titãs, Cazuza, reggae, Stones… Bem mais recentemente, era música eletrônica.” Axé? “Não!! Isso veio junto com os playboys, já nos anos 2000. Nós íamos na contramão!”

Casario colorido | Foto: João Farkas
Casario colorido | Foto: João Farkas

CABINE TELEFÔNICA

Na ocasião, havia apenas duas cabines de telefone para atender a cidade inteira. Claudia lembra: “Todo mundo sabia da vida dos outros, porque a gente tinha de falar em voz alta para nos ouvirem. Se minha mãe ligasse, e quisesse me deixar um recado, uma telefonista informal anotava em um papelzinho e deixava numa caixa de sapato que ficava na cabine”. Segundo Claudia, não raro se registravam “linhas cruzadas”: “No dia em que o Ayrton Senna morreu, meu marido estava no telhado da casa tentando posicionar a antena da TV para melhorar a imagem, e de repente entrou uma interferência do cabo do telefone, a gente começou a ouvir uma ligação”. Pouco tempo depois, cerca de duas dezenas de alternativos se cotizaram para comprar aparelhos de telefone para todos. Mais ou menos por aquela época, Claudia adquiriu um jipe Lada, russo, e passou a ser uma das únicas com veículo na cidade, ainda por cima com tração nas quatro rodas. Quando se deu conta, havia virado motorista de emergência: “Tinha parto, eu era ‘ambulância’ e levava a mãe para o hospital. Gente doente, lá ia eu. Dentista? De novo”.

O dress code harmonizava com a atmosfera luxuriante da região: biquíni e canga, ou bermuda, camiseta e chinelo. O aquecimento global era coisa de ficção científica, e a neura do filtro solar ainda não assolava o mundo, mas de qualquer maneira não haveria farmácia nem supermercado na vila que os disponibilizasse para venda. O fotógrafo João Farkas, 62 anos, foi um dos mais aplicados observadores da natureza verde, quente e úmida da região. “Até os anos 1980, tudo lá virava uma aventura. Chegar, comer, dormir, tomar banho…” Tirar fotos, inclusive, já que era preciso revelar os filmes antes que a umidade os embolorasse. E onde revelar? Essas perguntas parecem especialmente descabidas hoje, já que ninguém precisa sequer de filme para tirar uma foto.  Era necessário fazer todo o pedregoso trajeto até Porto Seguro, a quase 50 km, para, com sorte, conseguir algo com um mínimo de qualidade. Isso torna o arquivo da época ainda mais valioso. E por que escolher Trancoso para viver, e não, por exemplo, Búzios, que era um lugar igualmente deslumbrante, inexplorado, e com a vantagem de ser muito mais acessível? Farkas: “Mas aí é que está, a gente queria justamente o isolamento. Fugir da ressaca da luta política, de toda aquela desilusão. A ideia era a de uma sociedade alternativa mesmo. Ali não havia dinheiro, tudo se passava como em um romance do Gabriel García Márquez”. Assim como os outros personagens desta matéria, Farkas se refere aos nascidos em Trancoso como “nativos”. Os de fora seriam os  “integrados”. “Os nativos nos ensinavam muitas coisas, inclusive a construir casas. Nos ajudavam a fazer as nossas sem pedir nada em troca. Quando se perguntava a eles quanto era o serviço, diziam que nunca venderam um dia de trabalho. Havia uma poesia, uma pureza muito grande na vida ali.”

RETIRANTES GLOBALIZADOS

Com o tempo, a região foi ocupada por uma mistura globalizada, digamos, de retirantes, e isso tornou a atmosfera da vila muito peculiar. Chegava gente de todas as partes do mundo. A sueca Helena Rosén, 50 anos, habitante da cidade há 21, esteve pela primeira vez em Trancoso em 1983. Subiu o litoral a partir de São Paulo, com o pai, o “explorador” John Rosén, que havia chegado ao Brasil um tempo antes. Em 1985, ela veio de novo de Estocolmo, mas dessa vez acabou se fixando na cidade. Casou-se duas vezes, teve dois filhos; Christian, hoje com 17, e Theo, 15. “Eu me apaixonei de saída por esse lugar. Podia ter escolhido Nova York, Londres, mas eu vi que meu negócio era o mato mesmo.” Alta, loira, olhos azuis, Helena deixou os nativos sem rumo. Em determinado momento, quando passou a circular de moto pela região, ganhou o apelido de “miragem de caminhoneiro”. O felizardo ganhador do coração de Helena “Sueca”, como ela passou a ser chamada, foi o carioca  Carlos Eduardo “Calé” Regis Bittencourt, 62 anos, pai de Christian. Calé deixou o curso de comunicação na Faculdade Armando Alvares Penteado (Faap), frequentada pela jeunesse dorée paulistana, para viver de brisa em Trancoso.  Era para quem podia.  Os alternativos traziam sempre “uns trocados”, suficientes para comprar um “terreninho” – no caso de Calé, em frente à praia – e construir uma “casinha”. O futuro, porém, reservou para boa parte desses amantes do mato uma vida de grandes empresários (até para os padrões do asfalto). Embora Calé tenha passado por alguns perrengues – como o dia em que acertou um machado na perna e quase morreu depois de perder “litros de sangue” e ser socorrido já quase sem vida em Porto Seguro –, ele sobreviveu com louvor. Hoje, é sócio do aeroporto da região e tem “negócios em diversas áreas”. “A gente precisa se virar, né?”, diz o empresário, pai de quatro filhos com três mulheres.

"Nativos" e "integrados" esperam o ônibus da Viação Águia Azul, que hoje faz trajeto até Porto Seguro | Foto: João Farkas
“Nativos” e “integrados” esperam o ônibus da Viação Águia Azul, que hoje faz trajeto até Porto Seguro | Foto: João Farkas

Outro que também prosperou no mato foi o ceramista João “Calá” Calazans Luz, 66 anos, que tem uma fazenda e seis filhos de três mulheres. Pode-se dizer que Calá “achou” Trancoso. Em 1973, quando ele chegou, a estrada que conduzia ao lugar era pouco mais que uma trilha. Nem mesmo Porto Seguro, a cidade “grande” mais próxima, era pavimentada. “A gente queria sossego, dormia debaixo do coqueiro, tinha uma mulherada, era o máximo.” Algum tempo depois, Calá passou a criar gado. Hoje, é proprietário de uma área de 30 hectares no Espelho, região megavalorizada que fica distante do centro da cidade e é decantada pela extraordinária beleza. Ali, se o visitante tiver sorte, vai assistir na maré baixa à formação de piscinas de corais que espelham à luz do entardecer. Calá mantém o hábito de se isolar, só que agora na própria cidade que outrora escolheu como refúgio: “Domingo tem muito turista em Trancoso. Fico na floresta”, diz. Há cerca de dez anos, ele construiu uma pousada no Espelho e entregou sua administração a Helena “Sueca”, que é de fato bem mais comunicativa.

SEGUNDA LEVA

Entre o fim de 1980 e começo de 1990, a região recebeu uma “segunda leva” de alternativos modernos, na qual o empresário paulistano Fernando “Jacaré” Droghetti se inclui. Em 1990, Jacaré estava com 32 anos, trabalhava no mercado financeiro e tinha acabado de se tornar pai pela segunda vez: “Tirei uma semana de férias para ficar só. Pensei no Pantanal e no Amazonas, mas um primo meu estava em Trancoso e me chamou para ir pra lá”. Ele acabou passando um mês e já saiu proprietário de terra.  “Vem que vale a pena”, disse à mulher. Ela foi. O casamento ainda durou oito anos, e por um bom tempo Jacaré se manteve na ponte aérea entre a Bolsa de Valores de São Paulo e os negócios de Trancoso. “Um dia, meu primo me propôs sociedade em uma loja de produtos de decoração. Perguntei com quanto eu teria de entrar, ele me disse que o aluguel era R$ 5 mil, divididos por dois, R$ 2.500. Eu falei que não era do ramo, não entendia nada daquilo, mas ele explicou que eram R$ 2.500 por ano. Aí eu entrei de farra, né?” Com o tempo, ele investiu em um projeto imobiliário grande, depois abriu uma pousada e um restaurante no Quadrado. Jacaré classifica a leva dos anos 1990 como uma versão “chic” do hippie que havia chegado lá em 1970.  “A gente curtia o rústico, mas não achava que pra viver essa experiência precisava passar desconforto.” Ele conta que sua pousada inaugurou na região o estilo “butique”, e foi a primeira a ter piscina. “Fazia parte do paisagismo”, conta ele, que chamou o arquiteto paulista Sig Bergamin para orientá-lo no projeto. “A simplicidade da construção foi preservada, mas à noite você deita em um lençol de 400 fios, dorme no ar condicionado, tem internet, wi-fi.  No meu restaurante, a gente come salada com azeite, não com óleo.”

Falésias, coqueiros e algas da praia de Trancoso | Foto: João Farkas
Falésias, coqueiros e algas da praia de Trancoso | Foto: João Farkas

No auge do glamour, estrelas do showbiz se apaixonaram por Trancoso (ou por seus habitantes, o que dava quase na mesma). Sonia Braga passou na vila como um vento bom; Bruna Lombardi, Elba Ramalho, Débora Bloch e Vanessa da Mata compraram suas próprias casas. Hoje, socialites, modelos e playboys de todas as latitudes invadem a cidade no Réveillon. Há quem diga que o upgrade na infraestrutura da região não operou mudanças radicais na essência de Trancoso: “É a mesma proposta, só que com uma roupagem diferente”, acredita Calé, que tem bons motivos para defender o progresso.  Sócio do cinco-estrelas Terravista, um complexo com 2 km de frente para o mar, por 7 km para o interior, chegou a adquirir um avião pequeno. Claudia Pizzimenti também empreendeu. Depois de 21 anos,  derrubou o Para-Raio para construir no terreno um conjunto de casas tipo incríveis, em sociedade com a empresa francesa de arquitetura Triptyque. Mas não abandonou a militância pela preservação da vila. “Continuo revoltada”, diz ela, sem raiva. “A gente passa anos lutando pelo fechamento do Quadrado, aí vê uma van despejando turistas bem ali no meio.” João Farkas deixou a cidade quando se pegou falando demais do passado. “Trancoso ficou muito ‘apaulistada’, eu me tornei nostálgico e resolvi ir embora. Agora, volto só como turista.” Desde que continue registrando o paraíso em grandes imagens, a gente deixa.

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