Revista J.P: poeta e psicanalista discutem a traição nos tempos modernos

 

Por Julia Furrer para revista Joyce Pascowitch de setembro

Quando o assunto é traição, há muito burburinho e nem mesmo as pesquisas são confiáveis. Para começar, como defini-la? Todo traidor é vilão? Mais vale um parceiro que tem uma relação passageira ou aquele que, apesar de ser fiel, passa horas falando mal do outro em uma mesa de bar?  Um flerte, por exemplo, pode esquentar um casamento ou é melhor ficar no papai e mamãe e manter a total lealdade? Será que o realismo atual, que pouco acredita no “até que a morte nos separe”, funciona quase como uma permissão na hora de trair alguém que se gosta? E ainda: no mundo contemporâneo, com a patrulha das redes sociais, estamos mais ou menos fiéis? O psicólogo e psicanalista Luiz Hanns assume que é difícil saber ao certo. “As pessoas nem sempre falam a verdade a respeito”, afirma. Para entender o que mudou – ou não – sobre o tema, J.P entrevistou Hanns, que escreveu “A Equação do Casamento – O que Pode (ou Não) Ser Mudado na Sua Relação” e o poeta e cronista Fabrício Carpinejar, especialista em causas amorosas e autor de  livros como “Canalha! e Ai Meu Deus, Ai Meu Jesus”. Ao que parece, a antiga contradição continua: ainda desejamos ser amados por um parceiro fiel, mas queremos ser livres para nos aventurar. Aos fatos…

J.P: O que configura uma traição?

Luiz Hanns: Quase todo mundo sente desejo por outras pessoas, até os mais fiéis, mas quando o parceiro fica sabendo disso, dificilmente tem a maturidade de aceitar que é uma coisa normal, a maioria já se sente traído. É preciso um pouco mais de sabedoria para entender que, se não for um desejo ardente, mas adicional, que convive com aquele sentido pelo cônjuge, nãorepresenta problema. Um flerte pode até servir para oxigenar o casamento. Falar que isso é traição é muito moralismo e não faz sentido em um mundo mais livre e igualitário como o que vivemos. Há pessoas que são inquietas, têm a libido muito borbulhante e não foram talhadas para um modelo assim. Elas talvez precisem, de vez em quando, se oxigenar. E para alguns casais isso até mantém o casamento. Porque uma relação supre um aspecto e a outra, outro.

Fabrício Carpinejar: O que mais ofende uma mulher é outra saber mais do que ela. Portanto, quando um homem corteja alguém, está rompendo esse elo sem que precise haver um ato físico. Por exemplo: homens que assistem à televisão ao lado da mulher trocando mensagens com outra. É muita falta de respeito.

J.P: A infidelidade é necessariamente um sintoma de que algo vai mal na relação?

LH: Não. Oitenta por cento das pessoas que traem dizem estar satisfeitas com os parceiros e pretender continuar a relação. Mas é uma ilusão pensar que depois de anos de casamento não vai haver desejo por outras pessoas. Homens são mais promíscuos e, em geral, traem procurando variedade. Já para muitas mulheres o que importa é a aventura. Elas preferem um amante sedutor, que desperte uma emoção diferente das que estão habituadas.

FC: Quando se está apaixonado é impossível trair. A outra pessoa é seu destino, endereço, o centro do seu desejo. Mas passada essa fase, existe a possibilidade de trair por uma crise pessoal, porque encontrou alguém com quem tem uma afinidade muito específica ou mesmo por boicote: a gente não suporta conviver com a nossa própria felicidade.

J.P: Infidelidade é sinônimo de mau-caratismo?

LH: Há uma diferença enorme entre moralismo e ética. Muitas pessoas que não traíram e se dizem virtuosas, não foram realmente testadas em sua virtude. As coisas não são tão simples. Há traições circunstanciais, como as que acontecem quando alguém se apaixona loucamente por outra pessoa. Dá para dizer que é deslealdade? Não. Pode acontecer. E normalmente quem passa por uma história assim também sofre bastante tentando reprimir um sentimento, depois com crises de consciência, culpa, vergonha, preocupação pelo cônjuge, pelos filhos… Traições sacanas são aquelas em que há um extremo egoísmo. Quando se desconsidera as necessidades e delicadezas dos envolvidos, às vezes inclusive as do amante, e há um prazer em fazer todos de bobos. Mas costumam ser minoria.

J.P: Quem mente melhor: o homem ou a mulher?

FC: O homem mente mal. Ele não se afeiçoado muito mais flagradas por e-mails, mensagens instantâneas, celulares que fotografam amantes no meio da rua e enviam fotos… Mas a tentação e as oportunidades também aumentaram. Há muito mais liberdade e erotização, modelos de gozo, culto à juventude, corpos expostos etc.

FC: Acho que elas ajudam a minar o casamento. O excesso de visibilidade nos atrapalha. Essa coisa de procurar provas de infidelidade, por exemplo, é a maior roubada. Quem procura sempre acha, porque não está à toa. Está fixado em um objetivo e vai adequar e moldar qualquer coisa que encontre a ele. Vai enxergar verdade na ambiguidade.

J.P: É possível superar uma traição?

LH: Quando a equação do casamento é boa, a primeira traição costuma ser superada. Mas para isso os casais costumam passar por algumas etapas: viver um período de luto, lidar com a questão do moralismo isentando o parceiro do papel de vilão, se refamiliarizar com aquela pessoa, adquirir de volta a convicção do amor do outro, contornar o sentimento de rejeição e, finalmente, adquirir o mínimo de confiança de que o fato não vai voltar a se repetir.

FC: Uma história pode se regenerar desde que, quem traiu, tenha paciência para recuperar a confiança. Porque não adianta voltar e não querer discutir a relação. O assunto virá à tona inúmeras vezes. O castigo para quem trai é ter de ter paciência. Saber repetir, contar, mostrar a intimidade, convencer novamente o outro do seu amor. Quem foi traído vai ser muito mais rigoroso. Vai ter liberdade de polícia. É o único jeito. Não dá para perdoar e ser a mesma pessoa. A suspeita vai existir. Você confia cegamente uma vez só, depois só o faz de olhos abertos, aquela magia do amor é corrompida.

J.P: Por que dói tanto?

LH: Entregamos tudo que temos. Sempre digo aos meus pacientes que não se deve jamais confiar. Se confiou e perdeu a confiança é porque virou adulto. O que se pode fazer é apostar. E, na vida, toda boa aposta vem com duas condições: ela tem chance de dar certo, mas é preciso saber que também pode dar errado. No casamento, é necessário que seu parceiro valha a pena e que você tenha estrutura emocional para, mesmo sofrendo, perdê-lo. Isso vale para todas as apostas da vida, no trabalho, nas amizades e no amor. Portanto, apostar de modo adulto, em vez de confiar cegamente como uma criança, significa, por um lado, não ficar paranoicamente vigiando, mas também não fechar os olhos feito um tonto. É preciso, sim, estar atento a sinais e não facilitar. Para viver, é necessário ter alguma sabedoria e astúcia.

FC: Se sentir enganado é horrível. Todo mundo que trai se envolve em uma rede de mentiras. Você começa a notar quantas vezes a pessoa contou coisas que não eram verdade e passa a rebobinar o filme da vida e perceber que não recebeu o roteiro. Viver a dois é guardar a lembrança do outro, então é como se você perdesse a memória. A traição é o Alzheimer do amor.

J.P: A monogamia é uma condição possível?

LH: É uma equação insolúvel essa tensão entre o desejo monogâmico de ser amado pelo parceiro incondicionalmente e a vida toda e a vontade de ser estimulado, se divertir e se aventurar. Mas é possível porque não há só o desejo, mas também o amor, que é o que nos torna dispostos. Ou o apego à família, à religião, o medo de ser flagrado, que são outros fatores que podem ajudar a lidar com essa tensão.

FC: Sim. É mortal quando se encontra sexo e amor ao mesmo tempo. E não enjoa, é só não colocar o pijama antes de transar, entende? Não ter ornamentos, nem horas fixas. Transar de manhã, na hora do almoço, no meio da cozinha… Sexo casual e relações fixas são uma maravilha.

J.P: Será que, em um futuro próximo, um terceiro na relação será visto de outra forma?

LH: Existe um realismo maior dos jovens, que afinal cresceram num mundo em que o divórcio é comum, quanto a saber que o casamento eternamente romântico não existe. Também sabem que as pessoas podem trair e que as tentações são cada vez maiores (mais sexo livre disponível, mais redes sociais). Isso não significa que as pessoas vão conseguir lidar com o impasse milenar: desejo ser amado incondicionalmente por um parceiro fiel, mas quero ser livre para me aventurar. O medo de ser comparado, de perder o parceiro, a dificuldade com rejeição e solidão, tudo isso continua.

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