Por Paulo Sampaio para revista Joyce Pascowitch de fevereiro
No fim de janeiro de 2012, pouco mais de uma semana antes de ser assassinada a facadas em um condomínio de luxo na região metropolitana de Belo Horizonte, a procuradora mineira Ana Alice Moreira de Melo registrou queixa contra o marido, o empresário Djalma Bugnara Veloso, em uma delegacia próxima à residência do casal. Ana Alice afirmou que vinha sendo ameaçada por Djalma e pediu proteção. A medida protetiva foi deferida pelo juiz Juarez Morais de Azevedo às 18h30 do dia 2 de fevereiro, véspera da tragédia, tarde demais para evitá-la. No mesmo dia o empresário esfaqueou a mulher e, horas depois, pôs fim à própria vida, sem dar tempo à polícia de localizá-lo ainda vivo. O casal deixou dois filhos, de 3 e 7 anos.
À primeira vista, a história de Ana Alice, que tinha 35 anos, e Veloso, então com 49, é um clássico do crime passional. Moça de família burguesa, criada em colégio religioso, boa aluna, formada em direito na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ela se apaixonou pelo bon vivant 14 anos mais velho ainda na faculdade. “A gente ficou horrorizada quando eles começaram a namorar. O Djalma era um playboy conhecido em Belo Horizonte desde sempre, daquele tipo que ninguém sabia muito bem o que fazia, mas estava sempre nas melhores festas e chegava em carros importados. Isso, nos anos 1990, definia as pessoas”, lembra uma amiga de Ana Alice. Considerado boa-pinta, o empresário costumava frequentar a saída de escolas de elite, como o Loyola, de padres jesuítas, mesmo quando já contava 30 anos de idade. Muito namorador, sofria de um efeito colateral bastante comum nessa categoria: era doentiamente ciumento.
Traição e Falcatruas
Entretanto, depoimentos concedidos na época dão conta de que o crime não foi necessariamente passional. Uma pessoa próxima à família de Veloso revelou ao jornal Estado de Minas que a causa mais provável seriam documentos em poder de Ana Alice que comprovavam irregularidades nos negócios do marido – além de casos extraconjugais. “Ela descobriu que o Djalma não tinha nada no nome dele e o confrontou, pedindo explicações. Eles estavam casados desde 2001 e possuíam um patrimônio em comum. Quanto ao adultério, posso assegurar que ela recolheu evidências de muitos relacionamentos fora do casamento, e não apenas uma”, disse a pessoa, que não quis se identificar. Em 22 de janeiro, durante uma briga séria com a mulher, Veloso quebrou o celular e o notebook de Ana Alice e se apropriou de um modem e um pen drive dela. A discussão começou à tarde no clube e terminou à noite na casa deles no condomínio Vila Alpina, onde ela seria morta dias depois. Na ocasião, Ana Alice prestou queixa na delegacia do bairro onde moravam e pediu proteção.
Filho de um médico e de uma dona de casa, Veloso vinha de uma família de classe média e vivia bem, mas não a ponto de satisfazer seus sonhos de consumo. Segundo amigos próximos, ele gostava de esbanjar e, para manter o alto padrão, teria cometido as irregularidades descobertas por Ana Alice, incluindo golpes financeiros no próprio pai. Apesar disso, os pais dos amigos de seus filhos no colégio onde estudavam, o Santo Agostinho, afirmaram depois de sua morte que Veloso era ótimo com os meninos, muito presente, simpático e educado com todos. “Ele fazia tudo pelos dois, os adorava”, afirmou um dos pais.
Fim do Encanto
Em casa, o clima era outro. As brigas do casal se tornavam cada vez mais frequentes – e violentas. “A verdade é que a Ana Alice era muito correta e, apesar de ter sido avisada de que o marido era mulherengo, não sabia até que ponto – e nem que havia também o rolo financeiro. Aos poucos, ela foi tomando conhecimento e perdendo completamente o encanto por ele”, declara uma amiga muito próxima. Na véspera do crime, em uma reunião de pais e mestres no Santo Agostinho, Ana Alice teria conversado com a professora de um dos filhos para explicar que estava se separando de Veloso, que o marido não podia se aproximar dela nem buscar os meninos na escola quando bem entendesse.
A notícia da separação do casal pegou os amigos de surpresa. Os dois aparentavam ser alegres, animados e carinhosos com os filhos. O procurador Élvio Gusmão, sócio do clube frequentado pelos dois, disse no enterro de Ana Alice que Veloso nunca demonstrou ser violento com a mulher. “Éramos colegas desde a faculdade, mas ela não comentou nada de violência comigo.” O empreiteiro Milton de Souza, que construiu o casarão onde a família morava, disse que em seis anos nunca presenciou qualquer discussão entre os dois. “Eles viviam muito bem, o Djalma era tranquilo.” A procuradora do Ibama Cláudia Pessoa, com quem Ana Alice trabalhou dez anos, também parecia estarrecida. “Foi chocante para todos. Estou sem respostas.”
Pedido de Proteção
A delegada Renata Fagundes, que na semana anterior ao crime registrou a queixa de Ana Alice contra o marido, disse depois que no mesmo dia foram solicitadas à Justiça medidas de proteção à procuradora, como o afastamento do marido de casa ou a saída temporária dela. O advogado de Ana Alice, Murillo Evandro de Andrade, pediu a Juarez Morais de Azevedo, titular da Vara Criminal da Infância e da Juventude de Nova Lima, onde fica o condomínio, que julgasse a medida protetiva com urgência. Azevedo disse que tentaria atender o pedido, apesar de ter ainda outros sete processos para julgar. Quando deferiu a medida, na véspera do crime, tentou encaminhar ao advogado da procuradora, mas, segundo afirmou, ele já não se encontrava no escritório. De acordo com o advogado, Veloso soube da intimação e esse foi o motivo pelo qual foi tirar satisfações com a mulher.
O empresário chegou ao condomínio por volta das 20h30. Ana Alice estava em casa com os dois filhos e a babá, Girlene Fastor, 34 anos, principal testemunha do horror que se seguiu então. Segundo Girlene, Veloso já entrou no local transtornado, falando alto com a mulher. Ana Alice passou a gritar por socorro e pediu à babá que chamasse a polícia, dizendo que ia ser morta. Girlene contou que sua primeira reação foi trancar-se no quarto com as crianças, para protegê-las. As agressões de Veloso ainda levaram algum tempo, até que já não se ouviam reações de Ana Alice. Um tempo depois de os gritos cessarem por completo, a babá saiu do quarto. Encontrou a patroa deitada na suíte do casal, sobre uma poça de sangue.
Salva a Minha Mãe!
Em seu depoimento na polícia, o segurança que estava de plantão na portaria do condomínio, André Luiz dos Santos, 30 anos, contou que a babá interfonou para ele minutos depois que Veloso deixou o condomínio. “Ela estava muito nervosa, dizendo que ia chegar um carro da polícia e que era para deixar entrar. Perguntei o que tinha acontecido e ela respondeu: ‘Sobe aqui pelo amor de Deus’. Quando cheguei lá, apontei a lanterna para a porta principal, que estava com manchas de sangue, e empurrei. Tinha rastros de sangue no chão da sala e, pelo tamanho das pegadas, vi que eram de um homem. Fui seguindo os passos até o quarto deles, e dei com a Ana Alice caída no chão. Ele a machucou muito.” Santos lembrou emocionado o desespero do filho mais velho do casal, que completava 7 anos naquele dia: “Ele estava aos prantos e me pedia: ‘Moço, salva a minha mãe, moço, tem um homem matando a minha mãe’. Acho que ele não sabia que o pai tinha estado ali. A criança menor também chorava muito e a babá a abraçava, para tentar acalmá-la, mas não conseguia”.
Sozinho no Motel
Vários parentes e amigos de Veloso tentaram entrar em contato com ele naquela quinta-feira, 2 de fevereiro, sem sucesso. De acordo com a polícia, às 4h39 ele deixou o condomínio e seguiu para um motel às margens da BR-356, em Olhos d’Água, bairro da Grande Belo Horizonte, onde deu entrada às 4h47. Por volta das 18h, depois de um bom tempo sem pedir nada para beber nem comer, levantou suspeitas nas camareiras. Duas delas bateram várias vezes à porta e, como não obtiveram resposta, resolveram entrar. Encontraram-no todo ensanguentado, com 28 perfurações no corpo, vestindo apenas roupas íntimas e deitado com a barriga para cima. Havia ainda três latas de cerveja consumidas. O exame pericial revelou que uma lesão no coração provocou sua morte. O inquérito apurou que ele havia se suicidado. Para se matar, o empresário usou uma faca de cozinha identificada depois como a mesma com que matou a mulher.
Por quê?
O assassinato seguido de suicídio foi um escândalo na cidade e virou o assunto do dia. Parentes e amigos elucubravam as mais diversas teses para justificar o desatino de Veloso. O irmão dele, o médico Flávio Veloso, disse à época que “foi um momento de descontrole emocional”. “Ele foi um bom pai, um bom marido, um bom irmão e um bom filho. Meu irmão amava a família, tanto que não conseguiu suportar o que fez e acabou se matando.” Uma tia, Maria Durvalina Veloso, definiu o episódio como uma tragédia por amor. “Eles se amavam muito, isso levou à morte.” Os enterros de Ana Alice e Veloso foram no mesmo dia, 4 de fevereiro. O dela no fim da manhã, no cemitério Bosque da Esperança, o dele, à tarde, no Parque da Colina. A família da procuradora não falou com a imprensa, preferindo soltar uma nota em que dizia que a tragédia serviria de reflexão sobre a violência contra a mulher, “bem como a violência como um todo”. “Acreditamos que essa conduta é a melhor forma de homenagear a memória de Ana Alice e retribuir seu amor”, lia-se na nota. O sepultamento foi às 13h.
Quatro horas depois, às 17h, último horário para enterros no cemitério Parque da Colina, foi a vez de Veloso. Durante o velório, dezenas de pessoas se despediram dele com aplausos. Familiares e amigos se irritaram com a presença da imprensa, não autorizando a produção de nenhuma imagem. A Polícia Militar foi chamada para acompanhar o cortejo e evitar a aproximação de estranhos. Com o suicídio comprovado de Veloso, tornou-se “extinta a punibilidade do autor”. O inquérito foi encerrado, mas o sofrimento da família, não. De acordo com amigos, a dor de todos, em especial do pai da procuradora, José Roberto Moreira de Melo, que perdeu alguns quilos e ficou visivelmente abalado por muito tempo, é indizível. “Meu amigo sempre foi alegre, tinha orgulho da filha, uma menina vitoriosa, gloriosa. Tudo isso é inexplicável, incompreensível, revoltante”, disse na ocasião o empresário Ronaldo Machado Corrêa.