Ney Matogrosso, Caetano Veloso, David Bowie: segundo o colunista Antonio Bivar, a androginia faz parte do show – até mesmo no Congresso em Brasília
Por Antonio Bivar para revista Joyce Pascowitch de novembro
Dia desses, zapeando os canais, parei no Canal Brasil ao dar de cara com um close do Ney Matogrosso na explosão dos Secos & Molhados. O ano era 1973. Logo me dei conta de tratar-se de um documentário sobre a vida e a carreira de Ney. Imagens exóticas em cores que suplantavam as tecnicoloridas dos filmes de Maria Montez. Se levarmos em conta que ele detonou em plena ditadura militar e agora, assistindo àquilo acontecido há 41 anos, fiquei passado com a audácia do artista. Ney foi um divisor de águas.
Antes dele tivemos, no meio musical, no que tange à androginia, o sutil Mario Reis nos anos 1930, o popularíssimo Cauby Peixoto, e o chansonnier Ivon Curi, ambos nos anos de ouro da Rádio Nacional, e o falsete de Agostinho dos Santos, na virada da década de 1950 para 1960, todos instigando a pergunta: “Será que ele é?”. Não se chegava a uma conclusão. Nos anos do regime militar, o cara tinha de ter postura de açougueiro e fazer parte da luta armada para sobreviver. Daí que nem na jovem guarda e nem nos festivais da MPB ninguém se atrevia a androginar. Isso até Caetano ousar. Na cafonália camp da tropicália muitas plumas se soltaram do boá que Caetano usava para épater o caretismo reinante. Mesmo os colegas do meio musical se mostravam incomodados com a coragem. Ou porque a atitude de Caetano era uma agressão ao arraigado machismo ou por não terem tido a ideia antes. Caetano, Gil e Gal tiveram o empresário Guilherme Araujo, gênio libertador de tudo que fosse original em suas personas. Caetano, além do talento de poeta, letrista e compositor, tinha o dom élfico de captar expressões de espírito ditas por gente engraçada, de seu meio social. “Nem morta!” era uma dessas frases captadas por ele.
Caetano ousou, mas logo casou, com a encantadora Dedé Gadelha. No que casou, limpou a barra. Era um casal jovem e perfeito no espírito pop do zeitgeist. Por sua subversão, os anos confinado no exílio não impediram que na volta, com alegre atrevimento, incorporasse “a filha da Chiquita Bacana”. Não demorou e o espírito da época fez surgir Ney Matogrosso à frente da banda Secos & Molhados. Era a coisa mais brasileira no rock que rolava. João Ricardo, responsável pelo grupo, genial, mas sem o carisma de Ney, captou o que estava acontecendo de novo no pop (Bowie, Roxy Music, Kiss e outros) e o moldou numa jogada bem nossa. O impacto foi tamanho que os shows tiveram que ser transferidos para os estádios. Ney, no rigor de seu ultraje, feito um feiticeiro do além do centroeste, conquistou a nação e principalmente a juventude que o apoiava pela audaciosa subversão dos valores até então travados. O público que ia ver Ney e os Secos & Molhados não era dessemelhante do que hoje acampa na calçada para a chegada do One Direction.
FIGURINO, POSE E NATURISMO
Em termos de figurino, Ney nunca deixou de ser inventivo. Mas é outro o Ney, no seu sítio fluminense, que o documentário mostra. O artista parece perfeitamente integrado aos mundos vegetal e animal. Numa intimidade não só de céu aberto no meio de mata e cascata, mas também na intimidade doméstica de quarto, sala e cozinha, ele convive, de igual para igual, com cobras e lagartos. Maquiadíssimo no palco ou nu e despojado na corredeira, Ney tem tantas histórias que ele próprio é uma célula viva da história do Brasil. No palco, ele diz, é tudo personagem. Entidades que baixam e ele deixa baixar. Mas mesmo sincero com o que fala e conta, Ney ainda consegue manter toda uma aura de mistério. Mistério indecifrável até para ele mesmo. Deitado no sofá, a serpente desliza sobre seu corpo, enquanto a lesma, trazendo o caramujo no lombo, repousa nos lábios do vocalista. Em termos de naturismo nem Luz del Fuego foi tão natural.
Ney Matogrosso está assegurado no rol dos nossos melhores cantores. Na espontaneidade de sua construção, ele tem, também, muito das grandes vedetes. De Carmen Miranda na infância, à atriz americana Theda Bara. Em carreira solo, então, o cantor extrapolou as últimas consequências assumindo a postura elevada que remete às divindades gregas Hermes e Afrodite. Ney é, autêntico e genuíno, um hermafrodito.
Um sociólogo inglês, cujo nome agora não me ocorre, disse num artigo de jornal que os ingleses são todos hermafroditas. Se formos conferir o que ele disse, dando uma olhada no rock e no pop do Reino Unido, a gente já repara que tudo começou no tempo dos Beatles, não com os Beatles, mas com os Rolling Stones. Depois de Mick Jagger, o hermafroditismo pop inglês passou a explodir. Em 1972, na virada da moda hippie para o glam rock, David Bowie foi o mais extremado, apresentando uma androginia ao mesmo tempo jovem e quilometrada. Foi um tsunami. Sua explosão na Inglaterra atingiu confins planetários. Exatamente um ano antes da explosão de Ney Matogrosso no Brasil. Mas é bom lembrar que, antes de Bowie, nos Estados Unidos surgira Alice Cooper enrolado numa jiboia. E esse nome, Alice, num rapaz, levou à confusão. Nos States, antes de Alice e depois, teve o Lou Reed, os New York Dolls, Michael Jackson e Prince. Todos andróginos.
Voltando aos ingleses, Bowie liberou geral e não demorou para surgirem Freddie Mercury e o Queen. A banda era tão boa e a guitarra de Brian May tão fabulosa que nem passou pela cabeça do público que a “queen” (rainha) do nome da banda fosse Mercury. Na virada dos 70’s para os 80’s e daí em diante a Inglaterra despejou dezenas de popstars andróginos. O mais fechativo foi Boy George. George Michael o mais espada. E entre eles o Duran Duran e o Morrissey dos Smiths.
A PORÇÃO MULHER
Gilberto Gil é o mais cool dos baianos de sua geração. Tão cool que, sem o menor esforço, virou ministro da Cultura do governo Lula. No tempo em que o tema foi pauta, ele fez uma música falando da porção mulher que o homem tem. Chico, de formação rígida quatrocentona, já vinha manifestando sua porção mulher em composições. Virginia Woolf já dizia que todo grande artista é andrógino. De modo que são todas modernas cantoras do rádio. Rita Lee, também andrógina, cantava “e o Sidney Magal rebola mais que o Matogrosso”.
Indubitavelmente Sidney Magal é outro gênio da legenda do hermafroditismo na MPB. Ele estourou uns cinco anos depois de Ney, na persona gitana, do figurino ao gestual, de fato rebolando mais que o Matogrosso, e levando o mulherio à perdição, ao interpretar, pleno de caliente salerosidad, seu carro-chefe “Sandra Rosa Madalena”. Mães batizavam recém-nascidas com o nome Sandra Rosa Madalena.
Hoje, Sidney Magal é pura felicidade, casado e pai, morando em Salvador. Tem aparecido na televisão rindo, mas orgulhoso daquilo tudo. Entrevistado por Hebe Camargo pouco antes dela morrer, respondeu, à pergunta sobre se ele ia à praia sem camisa, que àquela altura sem camisa não dava: ele teria de usar sutiã. (Gargalhada de Hebe.) Maravilhoso, Sidney Magal.
Mas aquele tempo foi mais audacioso e subversivo que hoje. E em plena ditadura! E o pai de Ney Matogrosso era militar! Ney foi reprimidíssimo por ele, na infância, por já denotar tendência pouco militar. Depois de se rebelar, se vingou, soltando todas as feras. Uma atitude freudiana levada em grande estilo no mundo do espetáculo espetacular. Hoje, Ney até canta as músicas que o pai cantava.
Em síntese: essa coisa de androginia faz parte do show. Seja em que palco for, e até mesmo no Congresso em Brasília. Até Tiririca tem um lado “menina brejeira”. E foi esse lado que o reelegeu.