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Felipe Hirsch || Créditos: Annemone Taake

Poucos falam com tanto entusiasmo de cinema latino-americano como Felipe Hirsch, um dos diretores de teatro mais rebeldes do pedaço – e mais recentemente com incursões vem sucedidas na telona também. Com menos de 50 anos, já coleciona mais de 150 prêmios. Nesta quinta-feira, entra no circuito nacional dentro do projeto Sessão Vitrine Petrobrás “Severina”, novo longa de Hirsch produzido por Rodrigo Teixeira (indicado ao Oscar deste ano por “Me Chame pelo seu Nome”). Rodado no Uruguai e falado em espanhol, o filme – que teve sua première mundial no festival de Locarno, na Suíça, em agosto de 2017 – traz um elenco vindo de várias partes da América do Sul: os atores argentinos Javier Drolas, Carla Quevedo (de “O Segredo de Seus Olhos”) e Alejandro Awada, o chileno Alfredo Castro e o uruguaio Daniel Hendler. Por já ter passado por 14 festivais de cinema pelo mundo chega experimentado, com um histórico de salas cheias e críticas positivas, o que dá uma certa tranquilidade ao diretor.

Também assinado por Hirsch, o roteiro do filme foi baseado no original do escritor guatemalteco Rodrigo Rey Rosa e começou a ser produzido durante a criação da peça “Puzzle”, feita para a Feira de Livro de Frankfurt (Alemanha), em 2013. O longa conta a história de um livreiro melancólico e aspirante a escritor (Javier Drolas), que tem sua rotina abalada pelas aparições e sumiços de sua nova musa, uma mulher misteriosa que rouba na sua livraria (Carla Quevedo). Logo, ele descobre que ela faz o mesmo em outras livrarias. Ele então começa a viver um delírio amoroso, na fronteira entre a ficção e a realidade. (Assista o trailer abaixo).

Com um portfólio muito maior no teatro do que no cinema, Felipe nos promete muitos outros filmes daqui pra frente. Confira abaixo a conversa com Glamurama.

Escritor interpretado por Javier Drolas em “Severina” || Créditos: Divulgação

Glamurama: O trunfo do filme está relacionado à multiculturalidade dele?
Felipe Hirsch:
“Acredito nessa multiculturalidade porque a gente tem essa desculpa de que o idioma é uma grande barreira entre o Brasil e a América Latina, o que não é verdade. Existe, principalmente nas classes mais ricas, uma certa apreciação do ‘way of life’ americano e uma sensação de que o Brasil não pertence à America Latina, que é considerada kitsch. Por conta disso, perdemos um tesouro cultural, assim como a possibilidade de debates sócio-políticos importantíssimos pois passamos por coisas muito semelhantes por aqui. Essa barreira precisa ser quebrada até mesmo porque hoje o cinema é feito de co-produções. É daí que vem a grandeza do cinema, dessa capacidade de viajar por todos os países e conversar com a cultura deles. A verdade é que o mundo quer saber de coisas novas e nós temos isso na América Latina a todo momento.”

Glamurama: Como foi trabalhar com argentinos, brasileiros, chilenos, guatemaltecos e portugueses ao mesmo tempo? O que os une e o que os separa culturalmente falando?
Felipe Hirsch: “Na Argentina e Uruguai existe uma predominância da classe média, portanto eles falam da classe em que vivem, enquanto no Brasil não se fala só da classe média e sim de ‘n’ classes, até porque elas se interligam e produzem efeitos às vezes graves entre elas. Há uma desigualdade social absurda aqui, então como não falar da classe mais pobre e como não falar da classe mais rica? E também como não falar da classe média que, de alguma maneira, tem ditado algumas decisões políticas do país? Só não digo que o Brasil é o país mais complexo da América Latina porque posso sofrer o revés de escutar que alguém acha que a Colômbia ou México sejam mais complexos, o que faz sentido. Mas acho que, no geral, temos mais semelhanças do que diferenças.”

Glamurama: Conte-nos uma curiosidade de bastidores sobre “Severina”. 
Felipe Hirsch: “Quando se fala em América Latina você não imagina que possa filmar num frio como o que filmamos, com sensação térmica de 11 graus negativos. Os atores estavam sempre congelados. Uma noite a gente foi filmar no meio de um bosque e tinha uma forte chuva cenográfica. Eles tiveram que tomar a aquela chuva sob as baixas temperaturas. Nesse momento pensei ‘vou matar esses caras!’ Enquanto o Javier cavava um buraco na terra, a gente falava: ‘chuva mais forte!’ E o que quero te dizer é que somos bons amigos ainda.”

Javier Drolas e Carla Quevedo em cena de “Severina” || Créditos: Divulgação

Glamurama: Como foi a experiência de filmar no Uruguai? 
Felipe Hirsch: “Foi um prazer indescritível. O filme se passa 80% no bairro Velho, em Montevidéu, entre o Porto e o Centro – um local que enche durante o dia e esvazia à noite. A cidade parece um pouco com Porto Alegre, tem algumas livrarias de rua, diferente de São Paulo que é muito cosmopolita.

Glamurama: O filme explora muito o universo dos livros em um momento em que eles estão desaparecendo…
Felipe Hirsch:
“Estive na última edição da feira do livro de Frankfurt e a percepção foi de que se vendeu mais direitos autorais do que livros. É uma despedida lenta do papel. Difícil de aceitar, mas as pessoas têm cada vez menos intimidade com leituras mais profundas. A gente tem uma ideia de que ler tá ligado a questão de ser alfabetizado mas é mais complexo. O que sempre digo quando me chamam para fazer um workshop ou palestra é: ‘você sabe ler?’ Ler tem a ver com seu repertório, sua profundidade, com a capacidade de analisar e de criar. Ler é uma atitude crítica e ao mesmo tempo prazerosa, já que é onde as coisas continuam em você. Por isso às vezes você vê um filme ou lê um livro que a principio são difíceis de compreender, mas eles continuam com você para sempre.”

Glamurama: A estética dos filmes argentinos e uruguaios são suas fontes de inspiração?
Felipe Hirsch:
“De maneira nenhuma. ‘Severina’ não é nada uruguaio e nem argentino, é um filme híbrido. O cinema desses países nunca foi uma influencia mas tenho um enorme respeito e adoro os diretores de lá, assim como o que eles produzem. O brasileiro adora amar o cinema argentino e acho isso ótimo, sinto até um orgulho estranho. É uma prova de que eles [argentinos] construíram uma narrativa em cima da classe média fascinante. O cinema brasileiro tem uma riqueza imbatível e nesse momento a gente tá aprendendo a deixar de seguir a cartilha norte-americana e descobrindo mais o nosso DNA. Filmes como o “Arábia”, “Rifle” e “Era o Hotel Cambridge” são retratos desse ótimo momento.”
Glamurama: Você pretende investir mais no cinema ou seu lance ainda é teatro?
Felipe Hirsch:
“Sinto que todas as vezes que fiz cinema foi uma consequência do meu momento artístico no teatro. Ainda vou fazer um filme que parta do próprio filme, entende? Eu sempre parti, de uma maneira ou outra, do lugar onde eu estava e do tema que eu tava pensando naquele momento. Por isso até eu tenha filmado pouco… quero filmar mais.”

Glamurama: E o que podemos esperar desse seu aprofundamento no cinema?
Felipe Hirsch: “Cada vez mais quero refletir sobre o Brasil, porque se existe uma benção de ter nascido aqui, mesmo com todos os problemas que a gente enfrenta, é o fato de que beleza e temas não faltam. Então porque não se dedicar a isso? Com certeza é por aí que eu vou. Existem histórias maravilhosas no país que não são contadas e que são melhores do que qualquer série do Netflix. As muitas opiniões emitidas sobre o passado do país são muito superficiais. Escrever sobre o Brasil com maturidade, inteligência, capacidade de absorção, de entender exatamente como é esse país não é fácil, mas dá pra fazer muita arte com isso. O cinema tem muito a fazer pela historia do Brasil.”

Glamurama: Assiste séries?
Felipe Hirsch: “Não vejo séries, gosto de cinema. E mesmo quando fiz a minissérie ‘A Menina sem Qualidades’, que foi superbem, me perguntaram como eu fiz e eu disse ‘Não tenho a menor ideia.’ Não sei fazer uma série americana, prefiro fazer uma série nossa, no nosso jeito de fazer.”

Glamurama: Muitos acham que o cinema nacional ainda se pega em problemas como a temática um pouco repetida. O que pensa sobre essa crítica?
Felipe Hirsch:
“Há uma repetição da temática na nossa vida como um todo. O Brasil não resolveu feridas profundas. Na temática do Holocausto, por exemplo, também há uma repetição e no entanto veja a quantidade enorme de dinheiro que foi colocado pra discutir essa questão no cinema. Quantos filmes sobre escravidão ou extermínio indígena você viu serem feitos no Brasil? Muito poucos. Claro que há muitos filmes sobre morros e comunidades, e isso é uma consequência de uma historia antiga de perversão relacionada à documentação histórica brasileira. Nós temos um discurso pronto sobre o que é o Brasil e é esse, inclusive, meu trabalho atual: estudar documentos brasileiros e saber exatamente o que houve lá atrás. Nem quem descobriu o Brasil a gente sabe. Duas pessoas passaram por aqui antes de Pedro Alvares Cabral. Enquanto repetirmos esses clichês e não aprendermos a pensar diferente vamos cometer os mesmos erros.”

Glamurama: Quais são seus próximos projetos?
Felipe Hirsch: “Em 2019 vou produzir uma peça para o Teatro Frankfurt, um projeto que foi combinado há dois anos, como pede o prazo longo de lá. Neste ano tenho que sugerir o tema da peça e em 2019 fico de três a quatro meses na Alemanha, ensaiando com o elenco do teatro deles – diferente daqui, onde montamos as peças com atores livres, freelas… Lá é um teatro de repertório onde a peça é ensaiada e fica em cartaz por dois, três anos ou até mais.”

Glamurama: Qual tema você pretende sugerir?
Felipe Hirsch: “Eu quero falar sobre Brasil e América Latina, mas tenho que pensar o que um alemão, no palco, falaria sobre isso.”

Glamurama: Quem você considera o melhor ator, atriz e diretor do cinema? 
Felipe Hirsch: “Difícil escolher apenas um entre tantos bons… Entre diretores destaco o português Miguel Gomes, o chinês Jia Zhangke, os irmãos Luc e Jean-Pierre Dardenne, Mike Leigh e os irmãos Cohen, que fazem um cinema muito incrível. Já entre atores e atrizes, é um pecado escolher apenas um entre um escopo tão grande e bom, mas vou falar Wagner Moura, um grande ator brasileiro, um dos melhores do mundo. Já como atriz, poderia dizer Isabelle Huppert mas vou citar Crista Alfaiate, uma atriz portuguesa genial que integrou o elenco de minha última peça [“Selvageria”].

Glamurama: E da nova geração de artistas e diretores, quem você destacaria?
Felipe Hirsch: “Continua sendo injusto escolher apenas um! (Risos) Mas destaco João Dumans e Affonso Uchoa, os diretores de “Arábia” – o último grande filme brasileiro. Como ator, Julio Andrade, que é um gênio brasileiro, um ator fora de série, e Camila Márdila, uma grande atriz de cinema que ainda vai fazer grandes trabalhos.”

Glamurama: Em ano eleitoral, qual é seu recado pro povo brasileiro? 
Felipe Hirsch: “Free Lula! (Risos) Deixem esse homem se candidatar porque ele tem que se candidatar, ele merece isso. Falando isso, de maneira nenhuma estou ignorando tudo que está envolvido no processo contra Lula e o PT, assim como também não consigo esquecer que tantos outros políticos brasileiros de outros partidos estão envolvidos em crimes gravíssimos. Não to entrando no que tange à questão jurídica de foros privilegiados, de [Sérgio] Moro ou da Lava-Jato, que sem dúvida nenhuma é importante pro país. To entrando na questão histórica e ideológica de que existe um macro a se ver, e o Lula fora dessas eleições é a conclusão de um grande golpe – e eu não sou um ‘lulista’, nunca fui um petista exemplar. Dentro dessa eleição ele [o Lula] tá ali pra ganhar ou perder, possivelmente até perca, mas isso vai fazer muito bem pra democracia do Brasil.” (Por Julia Moura)

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