Por Chico Felitti para a revista PODER de março de 2018
Às oito da manhã do dia 4 de janeiro, o presidente Michel Temer colocou uma camiseta cinza-chumbo da Nike e foi caminhar pelos jardins do Palácio do Jaburu – antes, porém, tomou o cuidado de avisar a imprensa que estava saindo para uma sessão de exercícios aeróbicos com dois seguranças.
Nos meses que antecederam a caminhada, ele havia passado por duas cirurgias – uma na próstata e uma angioplastia, procedimento para reverter o entupimento de artérias do coração. O exercício era uma tática para mostrar que estava “perfeito, recuperadíssimo, graças a Deus”, como fez questão de frisar aos jornalistas, que caíram da cama para documentar o cooper. “Essa caminhada dele não foi fruto do meu planejamento. Mas poderia ter sido”, diz um ex-chefe de segurança da informação de um órgão ministerial que, de um ano para cá, está fazendo um trabalho diferente. “Pode me chamar de ‘médico de reputações’”, explica, completando que sua função é manter longe dos olhos da população em geral a ficha médica de mulheres e de homens públicos. Por motivos óbvios, ele não revela seu nome nem o de seus clientes.
Esse doutor de reputações não tem exatamente o charme de George Clooney em seus bons tempos de ER nem o de Patrick Dempsey, que in¬terpreta o doutor Derek Shepherd em Grey’s Anatomy. No dia em que se encontrou com PODER em um McCafé para discutir seu ofício, nosso entrevistado vestia uma polo branca, jeans de lavagem clara e tênis de cor¬rida. “Eu nunca sonhei fazer isso. Aconteceu”, conta ele, que está na casa dos 40 anos, é formado em matemática e era responsável por manter 20 sites do governo à prova de hackers. Até que um dia um parlamentar de um estado do sul do país o convocou. “Ele disse que um ministro tinha me recomendado. Contou que estava se tratando de um câncer de próstata e que tinha aberto exames em computadores e celulares oficiais e agora es¬tava preocupado com a segurança dessas informações.”
A primeira providência do nosso homem de TI foi fazer uma varredura on-line para descobrir eventuais dados perdidos na rede. De cara, encontrou no Google resultados de exames de colesterol e de registros de um mapa de pressão arterial. Como não é possível retirar uma página da ferramenta de pesquisas sem ordem judicial, usou táticas de SEO (Search Engine Optimization, ou otimização de ferramentas de busca) para jogar essas menções para baixo de outras notícias. O político ficou satisfeito com o resultado. “Eu só não sabia quanto cobrar.” Acabou fechando o trabalho por R$ 15 mil, valor que mantém até hoje.
ENTRE E FIQUE À VONTADE
A clientela cresceu com o boca a boca. Meses depois, ele recomendou a dois parlamentares pedir na Justiça a retirada dos resultados de exames que ficam armazenados em sites de laboratórios que podem ser acessados por uma senha alfanumérica. “Isso funciona como uma porta aberta. É um convite para qualquer hacker de 18 anos entrar”, comenta, emendando que conhece mais dois experts em TI que fazem um trabalho parecido. No meio do ano passado, ouviu de um cliente que era paranoico. “Ele me disse que o Brasil não era House of Cards.” Não demorou nem seis meses para nosso entrevistado rir por último: em janeiro, o jornal Folha de S.Paulo noticiou que o aplicativo Mais Saúde, do Ministério da Saúde, revelava a qualquer pessoa munida do CPF de políticos (disponibilizado pelo Tribunal Superior Eleitoral e rastreável com uma simples busca no Google) o histórico dos remédios retirados na rede pública, as consultas marcadas em hospitais estaduais e uma versão eletrônica da carteirinha do SUS.
A reportagem teve acesso aos dados de saúde do presidente Temer, dos presidentes do Senado e da Câmara e de ex-presidentes. Após a publicação do texto, apontando a brecha de segurança no aplicativo, o Ministério da Saúde mudou o sistema de cadastro para seu aplicativo. Agora, é necessário configurar uma senha num posto de saúde, munido de documento original. “Mas era tarde demais. Imagine se descobrem a lista de remédios que a Marina [Silva] toma?”, fala o profissional, que não tem a sonhática da Rede em sua lista de clientes.
Para explicar a brincadeira: Marina Siva teve leishmaniose e sofreu envenena¬mento por metais pesados. Lula e Dilma já enfrentaram o câncer. Michel Temer se digladia com problemas de próstata. Em 2014, Geraldo Alckmin levantou suspeitas ao se internar no Incor, em São Paulo, para tratar uma infecção bacteriana no intestino, ou seja, o episódio não teve nada a ver com o coração. Essas são as informações que vieram a público pela imprensa. “É a famosa ponta do iceberg. Mais de 90% das doenças não existem porque ninguém fica sabendo delas”, diz o ex-lobista.
Até porque esse tipo de dado pode ter um uso político importante. “A campanha do Trump [para a Presidência dos Estados Unidos] lançou mão desse tipo de coisa”, explica Rafael Moreira, cientista político da Universidade de São Paulo (USP), dizendo que usar informações como essas para derrubar o adversário do palanque não é uma prática exatamente democrática. Moreira ilustra sua linha de raciocínio com o que aconteceu na última eleição presidencial norte-americana. Trump insinuou que Hillary Clinton era débil demais para assumir o governo, depois de ela ter tido um princípio de desmaio em uma tarde quente. Até o pigarro da ex-secretária de Estado era discutido em público pelo atual presidente dos EUA. Ao falar sobre o caso, o brasileiro especialista em sigilo médico apela para uma famosa frase do imperador Júlio César: “Não basta ser saudável. É preciso parecer saudável”.
Hilton Cesario Fernandes, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), vê crescimento do uso eleitoral de dados de saúde dos políticos: “É uma invasão da privacidade, do direito do sigilo. Independentemente de estarmos falando de políticos, trata-se de invasão”, pontua. Nicole Hemmer, professora de ciência política em Columbia e na Universidade da Virginia, nos EUA, faz parte do time que defende a ideia de que doenças não devem ser usadas como termômetro para prever quanto tempo um político vai conseguir se manter no cargo. “Mesmo assim, hoje em dia, a saúde de um candidato está mais no foco do que nunca. Acontece que tratamentos de ponta podem curar ou, pelo menos, conter, praticamente todas as doenças durante um mandato”, afirma.
MÉDICO DE FAMÍLIA
E se engana quem pensas que os poderosas têm acesso à melhor medicina do planeta. O historiador americano Matthew Algeo passou em revista a relação entre o poder e o prontuário médico no livro The President Is a Sick Man (algo como O Presidente É um Homem Doente, em português), e afirma que há profissionais de saúde questionáveis cuidando de vários deles. “Tende-se a achar que políticos vão ter o melhor tratamento médico. Mas não é assim. Porque muitas vezes esses políticos preferem se tratar com médicos de família”, diz. Para o historiador, a preferência se explica pela confiança do sigilo e ultrapassa a preocupação em se submeter a um tratamento de ponta. Algeo pinça o exemplo de John F. Kennedy, que presidiu o país mais potente do mundo entre 1961 e 1963, sem ser tão potente quanto parecia. O presidente precisava tomar esteroides e doses cavalares de testosterona para lidar com a doença de Addison [o mal causa deficiência na produção de adrenalina, entre outros hormônios, e os sintomas ainda incluem cansaço e perda da memó¬ria]. Kennedy, que desmaiou em público duas vezes por causa disso, era percebido como um dos presidentes mais saudáveis da história, como mostrou pesquisa feita em 2000 pelo Pew Research. “E ele lutava para que fosse desse jeito”’, conta o historiador.
Porque não é fácil remediar os danos quando o prontuário médico de alguma celebridade política – ou de alguém de sua família – vem a público. Em fevereiro de 2017, uma médica divulgou em seu grupo de WhatsApp informações sobre o estado de saúde da ex-primeira-dama Marisa Letícia Lula da Silva, que acabaram viralizando. Na época, ela estava internada no Sírio-Libanês, em São Paulo, após sofrer um acidente vascular cerebral (AVC). O hospital demitiu a médica e dona Marisa faleceu naquele mês.
A profissional pode até ter perdido o contracheque, mas não foi punida. O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) abriu uma sindicância para apurar violação do Código de Ética – o que poderia culminar na cassação do registro. Um ano depois, porém, a investigação ainda está em andamento. “A sindicância leva, em média, de seis meses a dois anos para ser concluída e tramita em sigilo processual”, escreveu o Cremesp a PODER. “Vai ser mais fácil ver todos os faixas pretas de Brasília sendo presos na Lava Jato do que ver essa médica indo para a cadeia por causa disso”, afirma o homem responsável por evitar vazamentos de informações sobre a saúde de políticos, antes de desafiar a recomendação de seu cardiologista e comer seu segundo croissant em uma hora de entrevista.
“A saúde dos políticos está em foco. Mas tratamentos de ponta podem curar ou conter quase todas as doenças durante um mandato” (Nicole Hemmer, professora de ciência política)