Uma entrevista com o mais famoso pianista brasileiro: João Carlos Martins!

O mais famoso pianista brasileiro, João Carlos Martins é conhecido pela perseverança com que se reinventa a cada tropeço da vida, prepara-se para o lançamento de um filme sobre sua trajetória e aproveita para repassá-la neste almoço: música, mulheres, política – nada é tabu

Por Fábio Dutra para a Revista PODER de agosto | Fotos Beatriz Chicca

Jovem pianista, prodígio brasileiro incensado na imprensa internacional, se apresenta em Cartagena. Na plateia, ao lado do pároco local e do governador, nos assentos reservados à família do artista, algumas das moças mais notórias da zona boêmia local. Na primeira nota, em contraste ao silêncio habitual, sobe um grito feminino histérico, típico dos shows de rock: “Juaniiiito!”. E segue o jogo. Essa é apenas uma das saborosas histórias da movimentada vida de João Carlos Martins, pianista aposentado e regente para lá de ativo – são 200 apresentações de sua Bachiana Filarmônica por ano –, que acaba de virar filme pelas mãos de Luiz Carlos Barreto, com roteiro e direção de Mauro Lima. Talvez acostumado com a notoriedade desde sempre (ele já é famoso por pelo menos 60 de seus 77 anos), não demonstra timidez ao contar essa e outras histórias do baú. Ao contrário, e graças às amigas colombianas: o filme sustenta que foi justamente os três dias morando com elas em regime de Carnaval que o fizeram deixar de ser reprimido. Mas como fica sua relação com Ives Gandra Martins, seu irmão mais velho e um dos juristas mais respeitados do país, católico fervoroso: “O Ives é a pessoa com quem eu mais me dou na vida, falamos diariamente pelo telefone quando ele volta da missa às oito da manhã; eu costumo dizer que ele é Opus Dei e eu sou opus night!”, diverte-se, ressalvando que há muitos anos já está “aposentado”.

Está difícil conseguir um espaço na agenda do maestro. Para além dos diversos compromissos com sua orquestra, que forma músicos de comunidades pobres com o apoio do Sesi, ele já começa a se dedicar aos eventos de lançamento de João, o Maestro, estrelado por Alexandre Nero – que imita os maneirismos do músico filho de portugueses de forma impressionante. Mesmo assim, ele não parece ter pressa para almoçar com PODER no Rodeio, em São Paulo. Entre um pastel e outro pastel, e mais um – “acho que eu vou ficar só no couvert mesmo e comer uma saladinha”, rendeu-se, encantado, com as deliciosas entradinhas que são marca registrada da casa –, ele contou tudo sem modéstia ou papas na língua. Os diversos acidentes que o obrigaram a largar o piano, a amizade com o economista Roberto Campos, a paixão pelo futebol e pela combalida Portuguesa de Desportos, as mágoas que ficaram da malograda incursão na política e o projeto social que toca, sua alegada volta por cima. João Carlos Martins, ladies and gentlemen.

LIVRO DE JÓ
A história de vida de João Carlos Martins parece ficção, não só pela celebridade internacional merecidamente precoce como pela quantidade de linhas tortuosas que a levaram a mudar de rumo. Aos 25 anos, jogando futebol com os jogadores de sua amada Portuguesa, em Nova York, onde vivia e o time excursionava, caiu e lesionou o cotovelo justamente na altura do nervo que comanda os dedos da mão direita. Com muito esforço, obsessivo notório que é, voltou a tocar com dedeiras de aço, mas logo o esforço hercúleo gerou lesões periféricas. Aposentou-se e foi ao mercado financeiro – tempos de militares, milagres e muita especulação –, mas não aguentou muito tempo e voltou à música, mãos consertadas pelo descanso. Na Bulgária, quando gravava as obras completas de Bach, sua grande especialidade, sofreu um assalto: paulada na cabeça, lesão cerebral, bye-bye piano. Foram 23 operações para voltar a ter alguns movimentos e enquanto isso os dedos esquerdos eram forçados ao máximo. O famoso concerto para mão esquerda que assombrou plateias levou a companheira a também se fechar. Hoje ele toca algumas peças com os polegares e indicadores de forma admirável e rege sua orquestra de cor e sem sacudir a baqueta – não é mais capaz de trocar as páginas ou verter o pauzinho no ar com a velocidade necessária. “Eu acredito em reencarnação, eu tive de passar por tudo isso para dizer no fim que a música venceu”, diz ele, paciente feito Jó para o provável orgulho do irmão Ives, com a mão já fechando. “Por conta da lesão cerebral, falar muito faz piorar; saindo daqui tenho de deitar por duas horas num quarto escuro”, explica.

AQUARELA DO BRASIL
É certo que Nelson Freire é o pianista brasileiro de maior notoriedade atualmente. João Carlos Martins o elogia, mas ressalva: “Aquela verve, aquela chama natural mesmo quem tinha era o Arthur Moreira Lima. Aos 22 anos, ele possuía uma coisa que ninguém no Brasil teve igual. Mas ele quer viver a vida, faz uns concertos de caminhão por aí, mas é um gênio”. O maestro também comenta ter visto a mesma qualidade em Guiomar Novaes, “a maior pianista mulher que já surgiu no mundo inteiro”. Tom Jobim também merece menção: “Ao lado de (Astor) Piazzolla, (Ennio) Morricone e John Williams, ele foi um dos compositores populares de relevância, é um talento grandioso”, defende. A falta de orquestras ele crê ser falta de apoio e de iniciativa. Lembra o trabalho do maestro Julio Medaglia em promover orquestras onde não as há, como no Amazonas, e tece vários elogios à chegada de Roberto Minczuk ao Municipal de São Paulo, mas diz que ainda é pouco. Misterioso, diz que tem grandes planos para aumentar a produção de música clássica e popularizá-la no país. Nada modesto e até megalomaníaco, como parece ser sua tônica. Mas a tomar por sua biografia, talvez seja o caso de observar antes de duvidar.

MAIS UM! MAIS UM!
João Carlos Martins é praticamente sinônimo de obsessão. Ele credita a memória prodigiosa à genética, mas é difícil acreditar que saber de cor a obra completa de Bach – algo como três dias ininterruptos – ou reger um concerto de três horas sem consultar partituras seja mera vocação. Ele mesmo admite que talento representa apenas 2% de qualquer atividade, “o resto é disciplina do atleta”. Que o digam seus companheiros de voo nos tempos de pianista: são famosas as histórias de um homem que atravessava o Atlântico a praticar na pianola sem descanso. Durante nosso almoço, entre as várias histórias que conta com riqueza ornamental de detalhes, ele dedilhou por cacoete na mesa, comeu bastante, fez diversos telefonemas para perguntar a assessores e parentes sobre algum ponto obscuro do que relatava sem interromper a inteiração conosco, um hábito assaz desconfortável, e cumprimentou um sem-número de passantes. Um homem de hipérboles.

DARIA UM FILME
A ideia de ter sua vida retratada nas telas do cinema começou a ser esboçada há cerca de dez anos pelas mãos de amigos, jura o maestro. Um deles, jazzista próximo de Clint Eastwood, queria porque queria que o famoso diretor e ator norte-americano pusesse o projeto de pé. Martins se sentiu lisonjeado, mas foi convencido por Bruno Barreto que sua história não faria sentido se não fosse feita no Brasil. “Veja o filme que fizeram do Pelé lá fora, a coisa se perde”, compara-se. Assim, diz que declinou de Eastwood e embarcou no projeto de Bruno, que ao fim foi dirigido por Mauro Lima. O retrato, focado somente na parte musical de sua carreira, que fique claro, é divertido, chega a ser tocante em alguns pontos, mas relata um artista amalucado com um fraco para mulheres e para a bebida que chega à beira do abismo suicida quando se vê impossibilitado de tocar. Ele assegura que não se incomodou: “Não quis me meter na criação dos cineastas, há coisa que não concordo, me põem como um pai ausente que nunca fui etc. O importante é que a essência da história é verdadeira; e fiz questão que a parte em que se toca piano não fosse claramente falsa como se vê por aí, como não o foi”, opina orgulhoso.

BOB FIELDS
Responsável pela operacionalização do alinhamento da ditadura militar aos Estados Unidos, golpista de primeira hora, ministro do Planejamento do governo Castello Branco (quando, ao lado de Octávio Gouvêa de Bulhões, na Economia, fez o ajuste fiscal que “encheu o copo” que derramou no milagre econômico do ministro Delfim Netto do governo Médici), Roberto Campos foi um dos mais poderosos e polêmicos brasileiros do século 20. Chamado Bob Fields pela esquerda, foi embaixador em Washington em 1961 (governo Jango e período parlamentarista), época em que criou laços com o poder norte-americano, incluso o presidente John Kennedy, que o adorava. Pois justamente em 1961, o jovem pianista João Carlos Martins aterrissava para uma apresentação na cidade. Ficaram amigos durante a recepção que a embaixada deu para homenagear o músico e nunca mais se separaram. Don-juans, a dupla foi bastante comentada na sociedade paulistana dos anos seguintes. Foi para o maestro que Roberto Campos primeiro telefonou quando levou uma facada de sua amante, Marisa Tupinambá, e precisava de ajuda. Martins defende com unhas e dentes que apesar de todo o poder e do banco que ele chegou a fundar, Campos morreu duro, sem nunca ter se locupletado – ao contrário do que corre no boca a boca até hoje.

FOI MALUF QUE FEZ
Nos anos 1990, João Carlos Martins viu seu nome trocar de editoria nos jornais: foi parar nas páginas de política e de polícia. Próximo a Paulo Maluf e amigo do tesoureiro das campanhas dele, Calim Eid, Martins entrou de cabeça nas campanhas de 1990 ao governo de São Paulo e, de 1992, à prefeitura, esta bem-sucedida, acreditando que seria secretário de Cultura novamente, como havia sido nos anos 1980 (governo Maluf). Emprestou sua empresa, a Paubrasil, para documentarem doações de origem incerta, digamos, e acabou acusado de laranja do mal afamado Maluf para todo tipo de fraude eleitoral, até sobre o que nem tinha o mais remoto envolvimento. Foi abandonado por todos, inclusive seus sócios na Paubrasil, e apanhou feito Geni na imprensa. Afastado da política – “encontrei com o João Doria e avisei, mesmo sabendo que ele não tem intenção de me chamar pra nada, que jamais aceitaria nem vaga de faxineiro” –, ele hoje vê a coisa toda de longe, com poucas mágoas. Garante que foi um período difícil, seu pai sofreu muito, e que apenas neste ano voltou à primeira página do jornal O Estado de S. Paulo por sua obra artística, ao lado das estrelas mirins que apadrinha. Reclama da “única coisa que não aceita” na vida, o dedo-duro, mas não avança no assunto. Reitera acreditar em reencarnação, que tudo faz parte de um todo, e que tudo isso aconteceu para que ele voltasse à sua vocação. “A música venceu!”, não se cansa de repetir quase religioso. O maestro vê a Operação Lava Jato como algo muito importante para o país, mesmo com a profusão de delações. “Júlio César dizia que se queremos paz devemos ir à guerra”, filosofa, satisfeito com a derrocada do PT.

Primeiro Amor
Um homem de inúmeras paixões, com uma biografia vasta, desses que se emocionam à toa: assim é João Carlos Martins. A sua amada Portuguesa de Desportos, equipe que já foi do primeiro escalão do futebol nacional e hoje pena para não fechar as portas, é uma delas. Ele diz que até tentou ajudar a minorar o sofrimento do clube, propondo uma fusão com o Audax, time do banqueiro Mário Teixeira, mas a diretoria, conservadora, refutou. Em outro campo, os corações femininos que fez suspirar por aí também parecem ter bom lugar e acolhida em seu espírito, apesar de ele não confirmar nem negar, tal qual um agente da CIA. Por fim, a orquestra que montou com jovens carentes lhe faz brilhar os olhos, é fato, e ele atualmente só fala disso. Mas nem mulheres, nem futebol nem projetos sociais: é o piano que está tatuado no peito de João Carlos Martins. Ele admite: “Jamais abandonei meu velho companheiro… todo dia, às cinco e pouco da manhã, eu sento lá, mesmo sem poder tocar, e fico tentando por umas duas horas… às vezes sai alguma coisa”, diz, em tom quase melancólico.
profecia

João Carlos Martins conta que teve muitas dificuldades em aceitar que suas mãos jamais seriam as mesmas após o assalto na Bulgária. Tentou de tudo, fez das tripas coração, submeteu-se a 23 cirurgias e, quando achava que a laranja terrena não tinha mais onde ser espremida, virou-se aos céus: entre várias andanças ecumênicas, tal qual seu velho pai que sempre foi aberto a diversas crenças, foi parar num pai de santo. O sujeito ouviu o relato, analisou bem os dedos direitos do pianista e deu de ombros: “mão direita é sempre mais fácil”, garantiu. Após vários passes e rezas, o sacerdote avisou que não costumava errar. Em no máximo dois anos ambas as mãos estariam na mesma condição. “Não deu outra: passou dois meses e a esquerda também fechou!”, gargalha o maestro.

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