O ator e roteirista Pedro Cardoso é um dos mais eloquentes contestadores de sua geração. Se não teve a formação acadêmica clássica, como o primo e ex-presidente Fernando Henrique, usou o fracasso no vestibular para se jogar de cabeça no teatro. Em entrevista a PODER, debateu sobre tudo o que lhe foi perguntado, mas fez uma ressalva: pagar sua conta. Avalia ser essencial para sua livre expressão
POR FÁBIO DUTRA PARA A REVISTA PODER
FOTOS PAULO FREITAS
“Espero que suas perguntas constem na matéria e com o mesmo peso de minhas falas: é uma questão sobre ética e verdades jornalísticas, pois o que digo é mesmo uma resposta à sua pergunta. Tento ampliar o horizonte do que você me perguntou, não é um pensamento espontâneo. É necessário deixar claro ao leitor que aqui se passou, antes de tudo, uma conversa, muito mais do que um discurso.” Sempre analítico, crítico, perspicaz, prenhe de teoria – que nega conhecer –, e um tanto ácido sem perder a elegância nem a animação dignas de um adolescente debochado, Pedro Cardoso respondeu a cada uma das perguntas de PODER sem fugir, jamais, de nenhum tabu. Ao contrário: buscava sempre puxar o assunto para o indizível que merece reflexão a seu ver – mormente se houvesse a chance de pincelar suas opiniões sobre o significado e a distribuição do dinheiro, os privilégios de berço, o serviço doméstico sem dignidade nem direitos que ainda existe país afora e outras violências que a sociedade brasileira é mestre em produzir e em evitar discutir. Como este parágrafo deixa claro, não fomos capazes de reproduzir as perguntas da reportagem, talvez por falta de espaço – foram quase três horas de reflexões complexas e cheias de ilustrações por parte do gajo –, ou talvez por falta de vontade de obedecer suas diretrizes editoriais – o que, paradoxalmente, se fia em seu exemplo de rebeldia elegante. Nos restringimos, pela praxe da ética, sempre patente nestas páginas, e em homenagem ao convidado, um dos personagens mais ricos a ser retratado por aqui, a mantermos o sentido do que ele disse e a narrar sinceramente o clima e os acontecimentos do convescote. É o que dá, Cardoso.
Pedro Cardoso nasceu em berço de ouro. Se o desenvolvimento do Brasil republicano estabeleceu que a pujança econômica vinha de São Paulo e a supremacia cultural e o centro político caberiam ao Rio de Janeiro, apelidado de corte em referência à vinda da família real portuguesa em 1808, Cardoso teria morado em um palácio na infância se a Cidade Maravilhosa fosse de fato um reino. Primo de Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República, neto de Carlos Cardoso, que foi presidente do Banco do Brasil e bem-sucedido no mercado financeiro privado após deixar o cargo, além de bisneto de marechal e de parente em diversos graus de várias figuras importantes da vida pública brasileira do século 19 para cá, chama a atenção o apurado senso crítico que mantém ao olhar para a sociedade brasileira e a seus aspectos injustos. Isso haveria de irritar a família, não? “Eu fui criado com liberdade e para a liberdade. Diante de qualquer sistema opressivo, seja de esquerda, de direita, eu me sinto muito desconfortável. Meus pais, cada um a seu modo, eram defensores do livre-arbítrio e incutiram em mim desde cedo essa noção”, explica. Cardoso conta, por exemplo, que não ter passado no vestibular para jornalismo não foi nenhuma crise. “A conversa foi racional e me foi explicado que quem não vai à universidade entra no mercado de trabalho mais cedo e, portanto, eu deveria trabalhar”, exemplifica. Tampouco haveria de haver rusgas com outros familiares, nem mesmo com o primo mais famoso: “Eu e o Fernando Henrique nos damos muito bem, ele é cultíssimo, tem apurado senso de humor, e eventuais divergências de opinião não geram qualquer conflito ou atrapalham nossa relação afetuosa”, pontua civilizadamente.
Se não teve uma educação acadêmica clássica, Pedro Cardoso definitivamente foi muito bem formado – ainda que insista que é disléxico e que tem dificuldade para ler “industrialmente”. Extremamente reconhecido como roteirista desde o extinto TV Pirata, ele revela ter problemas homéricos com a ortografia e diz que seu diálogo com a teoria se deu meio que por osmose, discípulo do teatrólogo Amir Haddad que é, e na convivência com sua mulher, Graziella Moretto – a quem ele se refere a todo tempo, seja para falar das diversas parcerias profissionais que tiveram ao longo da vida, seja para prestar reverência à influência intelectual dela sobre si. Paradoxalmente, ele escreveu O Livro dos Títulos, romance em que de certa forma explica a relação heterodoxa com os clássicos e com a academia. “Tenho três livros do Walter Benjamin olhando para mim, que eu nunca li além da contracapa e do prefácio, mas converso com minha mulher, que é muito bem formada intelectualmente e me contou algo, de modo que se você fala de Benjamin eu sei, mais ou menos, o que você está falando”, elucida, sobre a ausência em sua formação de uma educação formal e sistemática.
Foi o fracasso na admissão na faculdade, aliás, que permitiu que Cardoso pudesse se jogar de cabeça no teatro. E ele acredita ter sido mesmo a melhor escolha: “Sou muito amigo do Hermano Vianna e do Marcelo Tas e lembro que os dois liam 20 revistas por semana, eles sabiam – e sabem – muita coisa. A vida do jornalista exige um tipo de curiosidade dispersa e eu fico aflito de pensar a quantidade de coisas que eu precisaria saber para ser jornalista”, divaga humildemente.
Pedro Cardoso é ator celebradíssimo, consagrado pelo público por diversas atuações e carimbado pelo personagem Agostinho Carrara, o genro todo enrolado do seriado A Grande Família, da TV Globo, sucesso de audiência e crítica que foi ao ar semanalmente por mais de dez anos. Talvez por isso tenha atraído olhares e gerado torcicolos quando atravessou o salão d’A Figueira Rubaiyat para encontrar a reportagem de PODER. Meio rouco, logo afastou a hipótese da mesa escolhida e foi por conta própria procurar outra numa área do restaurante que sequer estava sendo usada aquele dia. Mas nada de mau humor, que fique claro. O ator está em cartaz com três peças simultâneas no Morumbi Shopping, em São Paulo – um monólogo, um espetáculo adulto e outro infantil, esses em dobradinha com Graziella –, e no dia sofria com uma faringite, fato corriqueiro toda vez que vem à capital paulista. O ambiente silencioso, portanto, era exigência profissional de um ator que leva seu ofício com disciplina de soldado.
Ele atende um fã com atenção aqui, come uma bela picanha acolá, entrevista de volta o repórter, se espanta com o pedido de uma massa com molho de tomate bem simples com tantas opções mais “sensuais” no cardápio, discute o viés comercial que há por trás de toda e qualquer profissão – algo que segundo ele deveria ser explicitado e debatido abertamente –, critica a deficiência de serviços públicos no Brasil e elogia Portugal, onde vive atualmente, e refuta a ideia de que só tenha se colocado com mais ênfase no debate público e passado a criticar o showbiz após não ter tido o contrato renovado na televisão. “Eu ganhei um bom dinheiro porque participei de atividades nas quais há muito dinheiro dentro de uma empresa bem organizada, e essa estabilidade econômica leva, sim, à conquista de alguma liberdade, ainda que eu esteja longe de poder parar de trabalhar, tenho quatro filhas. Mas acredito, e eu me autoelogio aqui, que nunca ocultei o que eu pensava.”
Sobre a televisão em si, ele não compra aquela ideia de deformação moral e intelectual de um meio alienante: “O ser humano é um animal gregário que evoluiu em grupos em que a experiência comum, seja a chuva na aldeia, seja a morte de alguém da comunidade, era o fio que embasava a ideia de sociedade. De modo que a tevê é um meio poderoso de comunicação por gerar uma experiência comum a todos num país de milhões de habitantes separados por grandes distâncias”. E sobre a emissora para a qual trabalhava tampouco tem críticas específicas: “Não tenho inclinação para pensamentos paranoicos. Não quiseram renovar o contrato por uma decisão administrativa que possibilitou o corte do grande custo que eu representava, algo correto. Há uma perplexidade em relação aos rumos da publicidade, ainda mais com a en-trada de Google e Facebook, e a Globo traça suas estratégias. Não creio que tenham nenhuma ressalva comigo, como eu não tenho com a empresa. Apenas fiquei magoado com os diretores artísticos que ignoraram bons projetos que apresentei”, raciocina, antes de parar bruscamente: “Mas a sua revista é do Grupo Globo? Porque eu não me sinto confortável para criticar a empresa em um veículo externo sem que seja publicada a minha opinião sobre esse outro órgão de comunicação. Perguntei a um repórter da Folha de S.Paulo se ele teria liberdade editorial para escrever o que eu penso sobre o jornal, já que ele queria tanto que eu falasse sobre a minha antiga empregadora”, conta, para em seguida avançar: “Quanto a PODER eu nunca li… Aliás, você tem liberdade para falar que eu nunca li? Põe na manchete: ‘Pedro Cardoso nunca leu a PODER’. É honesto com o leitor!”, ri.
Já estamos nos finalmente. Cardoso conta que acredita que é tão magro aos 50 e poucos por não beber, não fumar e por se exercitar regularmente, enquanto encara uma respeitável fatia de torta de maçã com sorvete. Ele joga futebol e até prometeu aparecer para a pelada da redação, o que não ocorreu. Diz que o Rio de Janeiro e Salvador, além do interior de Minas, são os lugares que mais o emocionam no país atualmente, justamente pela brasilidade que exalam. Sempre agitado, pausa o que está falando quando vê o garçom perto de si para indagar se os pratos do cardápio são os mesmos que são servidos na refeição dos funcionários e não fica nada alegre com a negativa. Ele conta como a questão do trabalho doméstico no Brasil, com seus resquícios de escravidão, é talvez a maior questão da sua vida, mais uma vez por influência de Graziella: “Ela me fez perceber que sem abolirmos o trabalho doméstico integral as pessoas não terão que ir de encontro à realidade de suas vidas. Isso cria uma ilusão de tempo livre ao beneficiário”.
Cafezinho e amenidades na ordem do dia e eis que chega a dolorosa, que Pedro Cardoso faz questão de pagar, apesar de termos insistido que estava tudo acertado. Ele nem quer conversa e lembra que também é interesse dele divulgar sua peça. A relação entre entrevistado e imprensa, nesse caso, é isonômica e nada mais justo que a divisão. Contamos ao ator que ele é o segundo personagem dessa seção a pôr a mão no bolso – o outro foi Paulo Maluf. “Mas eu estou dividindo, ele pagou para todos para demonstrar poder, é diferente. O ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot, de quem eu tenho boa impressão, pagou sua conta em entrevista à Folha de S.Paulo outro dia e eu achei que ele tem toda razão, devo essa a ele: como eu vou, eventualmente, falar mal do restaurante ou de vocês se eu fui convidado? É essencial à minha livre expressão conferir minha parte”, problematiza. Com liberdade para a liberdade. Tivesse avisado antes e também teríamos ido de picanha.